segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

“Alphaville” : Jean-Luc Godard (1965) e a Segregação

de Christian Ingo Lenz Dunker

Em seu texto sobre a Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o psicanalista de Escola[1], Lacan aponta três temas fundamentais para pensar o lugar da psicanálise no mundo: a identificação no Imaginário, o Complexo de Édipo  no Simbólico e a segregação no Real. Apesar da grande dedicação que os lacanianos tem prestado ao conceito real muito pouco se obteve até aqui sobre uma concepção psicanalítica da segregação[2]. Segregar não é apenas excluir ou negar, nem repudiar ou isolar. Segregar deve ser deduzido da operação de retorno no real, segundo a tese: o que não é inscrito no simbólico retorna no real. Há várias maneiras de não se inscrever no simbólico. A segregação é uma delas. Sua imagem topológica mais simples é a de um grupo psíquico separado, um círculo dentro de outro, um condomínio com muros que o separam do mundo do qual ele, contudo, faz parte.  Essa é também a visão intuitiva e ideológica do mundo como um conjunto de esferas, círculos, territórios, áreas ou disciplinas entre os quais nós podemos trafegar e aos quais nos pertencemos por origem ou direito.
Segundo Lacan a Garrafa de Klein é um modelo muito melhor para entender mundo moderno, no qual interior e exterior se comunicam, com pontos de passagem indeterminados, com sua confusão estrutural entre público e privado. Podemos pensar que a segregação tem a estrutura de uma falsa Garrafa de Klein, na qual interno e externo são determinados e concêntricos, reproduzindo a lógica do mundo a-cósmico, com suas esferas e pontos de passagem, mas sem pontos de saída.
            Alphaville: uma estranha aventura de Lemmy Caution” dirigido por Jean Luc-Godard, em 1965, é um filme sobre a segregação que descreve em detalhes a formação desta falsa Garrafa de Klein, formada por um universo fechado no qual sabendo-se tudo que importa sobre o passado, e onde todos são “escravos das probabilidades” neste presente que é a “única forma de vida”.
Godard começa a desequilibrar a redoma de Alphaville formalmente. Ele perturba a divisão habitual de gêneros, ao qual o público estava acostumado: policial noir, drama e ficção científica. Ou seja, não é apenas no conteúdo da narrativa que vamos encontrar uma solução para a segregação representada em Alphaville, mas também, e sobretudo, na forma da linguagem fílmica. Seu protagonista, Eddie Constantine, cujo nome se escreve Ivan Johnson, mas se pronuncia Lemmy Caution, o sucessor de Dick Tracy e Flash Gordon, é um espião que vem do mundo exterior disfarçado de jornalista do Pravda-Figaro, para investigar os planos de destruição feitos pelo professor Von Braun, arquiteto do programa de computador Alpha 60, que comanda e organiza Alphaville. Sua filha, Natasha Von Braun (Ana Karina), acompanha e vigia Lemmy até o ponto de se apaixonar por ele. Mas a paixão, assim como outras emoções, e tudo o que é ilógico, são atividades proibidas, puníveis com a morte. Há uma preocupação extrema com o uso da linguagem, pois “tudo está escrito, a não ser que as palavras mudem de sentido”. Para que tudo funcione é preciso dizer sempre “porque” e nunca “por quê?”.
Lemmy Caution atira contra perseguidores, com rosto impassível e sem deixar cair o cigarro da boca, como se estivesse espantando moscas. Eles aparecem no banheiro, atrás da porta, de carro no pátio, disfarçados de Sedutrizes, mas assim como os policiais de A Carta Roubada, de E.A. Poe, nada enxergam. O verdadeiro confronto entre Lemmy e Alpha 60 é um confronto de palavras e de discursos, que se concentra na cena do interrogatório. A máquina pergunta “o que você sentiu ao passar da Galáxia Exterior para Alphaville?” ao que ele responde, com Pascal “o silêncio eterno destes espaços infinitos me apavora”. “O que transforma a luz em escuridão?” pergunta a máquina. Lemmy responde: a poesia.
A trama termina com a fuga do casal Lemmy e Natasha, rumo ao exterior, enquanto Alphaville se asfixia envenenada pelo raio da morte. Final que parece ter inspirado Ridley Scott, em Blade Runner e também, antes dele, Fritz Lang em Metropolis[3]. Final que nomeia esta nossa grande utopia e forma maior da demanda, no mundo a-cósmico, que é a demanda de “sair”.
            Godard insistia que seu interesse não era tanto na ilusão de realidade, mas na realidade da ilusão. O real que se esconde ou se mostra na imagem do mundo, como uma realidade unificada e coerente, diante e nossos olhos, criando assim a perspectiva simbólica onde nos localizamos. Foi também este o ponto de partida de Lacan em seu texto sobre o Estádio do Espelho como formador da função do eu [Je] em psicanálise, de 1936 e 1949. A segregação acontece quando esquecemos o hiato entre a realidade e o Real, quando identificamos ambos ao custo de uma particularização simbólica. Logo no começo do filme somos apresentados à voz gutural de Alpha 60 que diz: “a realidade é complexa demais para sua transmissão oral”. É exatamente esta particularização simbólica que está em jogo na formação destes universos fechados, que podem ir do sistema de castas e acessos, como em Admirável Mundo Novo, publicado em 1932 por Aldous Huxley, até o próprio conjunto da terra e do espaço como em 2001, uma Odisséia nos Espaço, dirigido por Stanley Kubrick em 1968.  Ou seja, não estamos falando do espaço geométrico apenas, mas do espaço como linguagem.
            Diz-se que o cinema começou com os irmãos Lumière (1895), filmando, como um documentário, a realidade dos operários saindo de uma fábrica e com Georges Méliès (1902) usando truques de montagem, para criar a ficção científica de “Viagem à Lua”. Ou seja, ambos filmes sobre “saídas”. Saída do mundo do trabalho e saída do planeta terra. Contra esta repartição simples, Godard usa a ficção científica (no roteiro) de modo documental (sem efeitos especiais). Este processo se observará no uso da trilha musical, de Paul Miraki, que alterna o uso de artifícios tensionais, típico do suspense, usado em cenas de deslocamentos rodoviários banais, ao passo que as cenas de tiros e ação são pontuadas por uma paisagem sonora naturalista. Esta habilidade de “reunir arranjos cômicos com sonetos de amor em uma única sensibilidade singular[4] é própria do método de Godard para extrair a verdade do real.
Temos aqui as duas faces do Real, melhor dizendo, duas verdades das quais podemos extraí-lo, enquanto estrutura de ficção. Com isso argumento que o conceito lacaniano de ficção compreende tanto o que entendemos como ficção (romance, ficção-científica, drama) quanto o plano da história (documentário, descrição, fotografia). Aqui me refiro ao trabalho de Hal Foster que, usando a teoria freudiana do trauma em dois tempos e a concepção lacaniana do temo lógico, mostrou a íntima conexão entre as vanguardas dos anos 1930 e a sua retomada nos anos 1960 como uma espécie de “retorno do real”. As neovanguardas pop, retomam a temática da ilusão de realidade, enquanto os formalismos retomam o problema da realidade da ilusão. Lacan atravessou estes dois momentos, 1932 e 1966, das vanguardas e das neovanguardas, sem deixar que uma problemática do Real fosse substituída pela outra. Nosso atual estado de desgarramento entre a crítica baseada na autonomia da obra, de arte de um lado, e o sociologismo da autoria, por outro, é um efeito da incompreensão histórica da relação entre linguagem e lógica da segregação.  Lemmy ... consciência ... consciência .... destruir ... faça Alpha 60 destruir a si mesmo ... delicadeza ... salve aqueles que choram”. Esta é a mensagem cifrada que nosso herói usa para lembrar de sua missão, uma vez que outros espiões que o antecederam, esqueceram disso e ficaram perdidos em Alphaville. Esta mensagem, no fundo lembra que a arma fundamental de Lemmy contra Alphaville é a poesia. E se esta é também o antídoto contra a segregação precisaríamos saber algo mais sobre que tipo de poesia é esta.
Alphaville é organizada por uma lei, contida na bíblia das palavras que são permitidas. Um homem que chora pela morte da esposa é executado em um ritual “estético”. Há uma sala de recepção, garçons e recepcionistas, depois um camarote envidraçado de onde se vê uma piscina. O condenado faz sua declaração final, caminha na prancha e é abatido por tiros. Lindas mulheres de bikini, com facas na boca, pulam na água e estraçalham o que pode ter restado da vítima. O público bate palma. Para além da perturbação de gêneros, dos debates dos anos 1960 em meio à guerra fria e o papel do cinema no pós-guerra, Alphaville é um filme que recupera o surrealismo, não apenas como plataforma estética de investigação do Real, mas como antídoto político contra a segregação. Para isso teríamos que atentar para o volume que ele indica para Natasha, para “inocular” nela a cura.  “Capitale de la Doulor” é um dos livros principais de Paul Éluard [5], surrealista próximo do grupo de Breton, e amigo de Jacques Lacan[6]. É por meio de outro verso de Éluard que Lemmy seduz Natasha: “Por causa do amor tudo se move. Todos precisamos apenas avançar para viver, ir em frente para tudo o que você ama. Eu estava indo em sua direção. Eu estava indo perpetuamente em direção da luz”.
O problema em Alphaville é que, com a exceção dos tipos poéticos que vivem nos “setores condenados”, o que todos estão fazendo é simplesmente viver como ocupação de espaço e não “morrer” e principalmente “morrer de amor”[7]. Quando Alpha 60 pergunta: “qual é o privilégio de morrer?” Lemmy responde: “não continuar morrendo”. Para os surrealistas morrer de amor é a condição para continuar a viver, como tematizou Éluard em “Morrer de não mais Morrer” (1924). Daí que o condenado declame o seguinte trecho de Paul Éluard, antes de ser executado: “Escutem-me seus normais! Nós vemos a verdade que vocês não enxergamos mais. Esta verdade é que não há nada verdadeiro no home exceto amor, fé, coragem e ternura.” Daí também que o primeiro mandamento seja: “Alphaville: silêncio, lógica, segurança e prudência”, mandamento cuja prática é acompanhada pela ingestão contínua de pílulas pacificadoras.
Caution, torna-se assim o significante mestre para esta operação de confronto com a morte, sem medo e insegurança. Ele é o perfeito personagem surrealista. Não é o intelectual literário de gabinete enfurnado em sua erudição, mas um detetive prático de olhos atentos na transformação da realidade por meio de atos. Essa é a primeira dimensão esquecida do poema em Lacan, que aparece na década de 1930[8] e ressurge em seus últimos seminários da década de 1970: o poema é um ato de anti-crença contra o silêncio conformista. Por isso o que nele conta não é sua estrutura de ficção, mas a verdade em seu ato de produção. Se no caso da ficção extraímos a verdade do real, aqui é a verdade que cria um efeito de Real. São os dois pontos de torção invertido, das Bandas de Moebius que constituem uma garrafa de Klein.
Alhaville é a primeira reflexão sistemática sobre a vindoura vida em forma de condomínio. Uma forma de vida que antes de tudo expulsa a poesia, e recusa toda ternura, como dizia Éluard. O surrealismo em geral e Lacan em particular percebem que a segregação começa no discurso, nas estereotipias que impõe o ritmo á frase, “nas palavras, sílabas, sonoridades obsedantes e assonâncias”[9], como um automatismo no qual a linguagem não pode mais questionar o pensamento. A segregação termina nos muros, não é lá que ela começa, mesmo que seja dali que ela se reproduza. A segregação começa pelos maus tratos dedicados ao que não faz sentido, pela expulsão do não sentido para fora dos muros. E desde lá ele retornará como Real. Por isso precisamos urgentemente de menos lemas de condomínio e de mais heróis como Lemmy Caution e Lemmy Kilmister[10].


[1] Lacan, J. (1967) Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o psicanalista de Escola. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
[2] Tentei contribuir para tratar desta questão em meu livro: “Mal-Estr, Sofrimento e Sintoma” (São Paulo:Boitempo, 2015)
[3] Particularmente os trabalhadores que escapam da cidade inundada.
[4] Andrew Sarris  You Ain’t Heard Nothin’ Yet”: The American Talking Film: History and Memory, 1927-1949”.
[5] Benedick, M. (2004) Jean-Luc Godard: uma antologia crítica. Dutton, et. Ali, San Francisco: Toby Mussman.
[6] “O Sr. A (filósofo) apareceu neste sábado, não sei de onde, para me apertar a mão e fez ressurgir o título de Tzara, da época Dada, ou seja, nada da futilidade que começou com Littérature. De boa vontade é imputado a mim um surrealismo, o que está longe de seu de meu agrado. Certo, provei disso, mas apenas contribuindo de forma lateral e tardia (o que zangou Breton), no entanto devo dizer que Édouard me enternecia.” Lacan, J.  (1980) Nota A. Ornicar 20-21. Paris: Seuil.
[7] “Nós vivemos no limbo da metamorfose. Mas este eco que corre por todo dia, este eco além d tempo, do desejo e do cuidado continua a pedir. Estamos longe ou perto, de nossa consciência.” Paul Elouard, tradução do autor.
[8] Tlatli, S. (2000) Le Psychiatre et ses Poétes – le jeune Lacan. Paris: Tchou.
[9] Lacan, J. (1932) Esquizografia: escritos inspirados. In Da Psicose Paranóica em suas Relações com a Personalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1988.
[10]  Ian Fraiser Willis (1945-2015) ou Lemmy the Lurch, foi um baixista e cantor inglês, conhecido por ser o fundador da banda de rock inglesa Motörhead. Era adorado pelos seus fãs por sua postura roqueira, estilo de tocar e timbre de voz marcante. 

Trailer do filme

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de vários livros, entre eles Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012. Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros  (Boitempo, 2015)

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