segunda-feira, 20 de abril de 2015

E AGORA … AONDE VAMOS?

de Heloísa Ramirez

Os que me conhecem melhor sabem que não sou cinéfila, assisto a poucos filmes, raras vezes vou ao cinema e prefiro assisti-los no calor do sofá ao escurinho das salas de projeção! Assim, os meus comentários nunca são técnicos ou “cabeça”, como diria algum amigo, sempre digo apenas o que gosto ou não gosto nos e dos filmes que assisto. Alguns deles que, por qualquer motivo me caem às mãos, afetam-me de tal maneira que, como psicanalista que sou, eu os deixo ali bordejando minha alma, levando-me à deriva para fazer pensar, ou simplesmente para me deixar sentir! E AGORA, AONDE VAMOS? é um desses. Apaixonei-me pela forma como Nadine Labaki trata o tema central, a guerra religiosa, com muita delicadeza e bom humor, fazendo do filme uma sensível comédia dramática.

E a música? A música perpassa o filme  como se fora o fio condutor do drama ou da trama. Ela é marcante, vibrante e paradoxalmente harmoniosa, de  Khaled Mouzanar, embala a vida da aldeia fazendo dançar os personagens ao seu ritmo, dando movimento ao filme numa sucessão de sons e movimentos vibrantes que convoca o personagem à dança e o espectador à fantasia!
Outro recurso que a diretora usa é a dança. O movimento ritmado dos corpos marca algumas cenas centrais do filme, estratégia que dá a leveza, balanço e equilíbrio ao conjunto das cenas. A abertura do filme é fantástica: é a dança das heroínas. È a representação viva do esgotamento, do cansaço, da falta de esperança, da vulnerabilidade. É a sobrevivência marcada pelo acalanto! É isso que é bonito, o paradoxal!
O isolamento da aldeia do resto do mundo permite que a comunidade dividida religiosamente entre cristãos e muçulmanos, conviva numa paz relativa. A guerra deixou restos, estilhaços que atravessam a alma impondo aos seus habitantes um estado permanente de luto pelos mortos. É isso que une as mulheres: o laço de sofrimento determinado pela perda de seus homens (maridos, pais, filhos).  São suas ladainhas que às mantêm em pé.
Parece que a única paixão que movimenta esse povo é a fé e a religiosidade. Respeitam seus líderes e zelam pela igreja e pela mesquita. 

O conflito se acirra quando as notícias do mundo começam a invadir a pequena aldeia reatualizando o espírito da luta religiosa e as tensões sofridas pela guerra civil no Líbano. Sabe-se que a conquista da independência do Líbano (colônia francesa até 1943) não significou o surgimento do Estado Nacional Libanês já que a Síria não reconheceu a emancipação do país e as divisões religiosas internas inviabilizaram o exercício de um poder centralizado. Uma guerra civil que em nosso tempo foi iniciada em 1975 pelos grupos populares muçulmanos no enfrentamento aos cristãos e que durou quase dez anos. Este é o cenário!

Nesse contexto a pequena aldeia, entrelaçada por fitas que se ligam e aos seus habitantes, sobrevive, não sem o medo que ressona ao estrondo cada mina que explode. Os fragmentos da violência, muitas vezes se transformam em mais um laço, como é o caso da pequena Brigitte que serve de banquete para a aldeia em festa. O acesso às notícias de seu país começa a acordar o gigante adormecido em cada homem da aldeia e o ódio e a raiva às diferenças, se sobrepõem ao amor e a razão, impedindo à convivência pacífica. Não falamos aqui de agressividade, mas de agressão, o limite da realidade vital, de violência. Enquanto a agressividade latente era condição de fala das diferenças foi possível aos habitantes manter uma relação tranquila, a partir do momento em que isso não era mais concebível coloca-se em ato a violência. A ideia veiculada pela antecipação da morte reverbera e põe o sujeito num movimento oscilatório do qual ele não consegue sair.

É nesse momento que entram em cena nossas heroínas, mães, esposas, filhas, namoradas, cansadas de tanto horror e sofrimento que, para proteger aqueles a quem amam entram em guerra silenciosa com os homens da aldeia, numa tentativa surpreendente de diminuir a tensão religiosa entre cristãos e muçulmanos. Aí, vale tudo!!! Ardis e estratégias que fazem rir o espectador, da sedução, do sexo, do haxixe. A diretora Nadine Labaki, consegue com maestria em meio ao pano de fundo de tensão introduzir o humor e a ironia. O ponto alto do filme é o drama da mãe que diante da morte do filho se vê dividida entre o amor e ódio. Ela sabia que a morte seria o estopim para o início de uma guerra civil na aldeia e numa tentativa desesperada de salvar seu outro filho e todos os filhos do horror da guerra, mais uma vez ela se une às mulheres e aos líderes religiosos para tentar reverter à situação. O bizarro são os ardis e até mesmo a solução final que transforma o estrangeiro em semelhante. Aquilo que era sinistro, árido e inquietante se transforma, literalmente em muito familiar, retirando da sombra do desconhecido o conhecido, tornando inócuo o assustador, apaziguando os corações.


Haveria, sem dúvida, algumas críticas, principalmente se pensarmos na questão de gênero, visivelmente marcada pela diretora em sua obra, mas, esta é uma análise deixarei para os meus amigos mais afoitos. O filme é marcado pela poesia, pelo humor e pela tragédia, enfim é uma crítica a fragilidade da paz no oriente médio.
Maio 2013
Fonte com autorização do autor: http://lacanpanarius.blogspot.com.br/
Trailer do filme
HELOÍSA RAMIREZ é Psicanalista, Coordenadora do Circuito Ponto de Estofo. Mestre em Psicologia. Membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano; Membro do Fórum do Campo Lacaniano SP e Pesquisador associado ao Grupo de Pesquisa “Constituição do Sujeito na família e na clínica” junto ao CNPq. Coordenadora da Rede de Sintoma e Corporeidade do FCL-SP e de Mogi das Cruzes. Coordenadora do Projeto de Psoríase da Fundação ABC. Autora de diversos artigos clínicos em psicanálise e sobre fenômeno psicossomático. Organizadora do livro A Pele como Litoral – Fenômeno Psicossomático e Psicanálise, Ed. Annablume, 2011, juntamente com Tatiana Assadi e Christian Dunker.  Fundadora do blog LACANPANARIUS.

Nenhum comentário: