quarta-feira, 1 de maio de 2013

ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO

por Leila Oliveira

Certamente, um belo filme de Buñuel,  que revela toda a sua relação com o movimento surrealista. O movimento formado por artistas que propunham uma maneira diferente de ver o mundo, uma vanguarda artística que transcende a arte. Uma ampliação da consciência, uma liberdade de expressão, sem exigência da lógica e da razão, assim, como o mundo dos sonhos.
No sonho, sabemos, é a satisfação de desejo embora o desejo só se realiza e não poucas vezes, ás custas do próprio eu. Ele irrompe, chega sem avisar, nos surpreende e entra sem ser convidado. As formações do inconsciente, como os atos falhos, sonhos, lapsos, sintomas, são paradigmas freudianos que nos ensinam sobre o caráter essencial do desejo. Mas que desejo é esse, de Mathieu e Conchita?
Buñuel constrói e desconstrói, na ficção, um dos mecanismos mais caros da teoria de Freud. Vamos então, á nossa viagem de trem para Sevilha construindo as cenas.
No trem, um comportamento inesperado do protagonista, chama a atenção de seus amigos de viagem, e ele procura explica-lo, narrando os motivos que o levaram a tal ato, aparentemente, sem a menor censura.
Mathieu, um homem de meia idade, burguês e solitário, se apaixona desesperadamente por Conchita, uma jovem de 18 anos, meiga, doce, insolente e virgem.
E então se faz aparecer um jogo erótico, de pura sedução, onde pode se perguntar: o que quer a mulher? Qual o desejo de Conchita? E Mathieu, o que espera da mulher? Ele espera que ela lhe dê o que lhe pede, o objeto sexual.
Ele fica siderado por essa mulher, de um certo desejo, desejo do ato sexual.
Mas, Conchita oferece a Mathieu, apenas partes de seu corpo para que ele goze .”Assim, como a histérica, quer deixar insatisfeito o gozo do outro, quer um “mais-ser”, ser alguma coisa para o outro, não um objeto de gozo, mas um objeto precioso que vá sustentar o desejo e o amor. (Colette Soler)
Se eu lhe der o que me pede, não vai me querer mais”. Ela quer o amor.
Freud em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, diz que: “O que se coloca em lugar do objeto sexual é alguma parte do corpo (tal como o pé, ou os cabelos) que é, em geral, muito inapropriada para finalidades sexuais”. E, Conchita oferece a Mathieu, apenas partes de seu corpo para que ele goze.
Como explicar a atração entre os sexos se existe apenas as pulsões parciais?
Bem, sabemos que as pulsões parciais em si, ignoram a diferença sexual. A orientação do desejo sexuado, é que é passível de ser explicado.
Colette Soler, em seu livro, “O que Lacan dizia das mulheres” pergunta: Como explicar a relação sexual? O que é uma norma heterossexual? Se o macho não basta para constituir o homem, nem a fêmea, a mulher?
Podemos tentar responder então, a partir do Édipo e da descoberta do inconsciente.
Freud descobriu que, no inconsciente, a diferença anatômica é transformada em significante : ter o falo. E a partir do Édipo, responde a esta pergunta: como pode um homem amar sexualmente uma mulher? Através da renuncia ao objeto primordial, a mãe, e ao gozo referido a ela e através da castração do gozo. Já do lado feminino Freud reconheceu o fracasso de suas tentativas de explicar e daí surgiu o seu famoso: ”que quer a mulher? E conclui que o édipo produz o homem, não produz a mulher”.
Conchita nos demonstra em vários momentos, essa posição de ter e não ter o falo. Ela oscila entre a “Mulher Pobre” que é “aquela que é desprovida de todos os objetos da serie fálica”, mas rica de outros bens, (boa filha, meiga, virgem) que como diz Lacan: nada pede á fantasia do homem. Ela não está preocupada em satisfazer as fantasias, o desejo de Mathieu. Conchita pobre de amor, mas rica de outra coisa que é o gozo. E entre a “mulher abstinente”, que é aquela mulher que renuncia a sexualidade, permanecendo “virgem”, e a relação com o gozo do outro, fica indeterminada.
Ela quer apenas gozar na sedução. Serei sua amante. - Quando? Hoje? -Não, depois de amanhã. Em outro momento, ele pede:- Beije-me, ela não permite, diz:- depois. E adia mais uma vez, a se entregar como objeto causa de um desejo.
A quem são endereçadas as perguntas de Mathieu, então? Podemos dizer que á fantasia, á imagem e ao objeto
Conchita não fez a travessia para o feminino, ela recusa a verificar-se numa posição subjetiva da castração. Ser “castrada”, é, de onde parte a feminilidade da mulher que é aquela cuja falta fálica a incita a voltar para o amor de um homem. Primeiro o pai, depois o marido..
Ao se descobrir privada do pênis, a menina torna-se mulher quando espera o falo- ou seja, o pênis simbolizado daquele que o tem” C.Soler.
Mas deixa seu rastro, embora, não quer saber de nada disso. E Mathieu sempre a encontra, obsessivamente, e ela, sempre recua frente ao seu pedido.
Bem, se olharmos o que acontece nas cenas em que Conchita faz jogo da separação/retorno, presença/ausência, podemos pensar em Freud, em Além do Principio do Prazer, onde aponta a brincadeira do fort-da.
Desenvolvida por uma criança, que fazia desaparecer e aparecer o objeto, um brinquedo, que significava o “ trazer de volta, a mãe”
A criança antecipava a satisfação de um desejo- a mãe poderia estar ausente sem fazer grandes reboliços.

Jogar fora um objeto e trazê-lo de volta, era o que Conchita fazia em sua fantasia de satisfação. O mesmo mecanismo controlador, ilustrando uma ausência a ser buscada por Mathieu. Volta para ele, pra não ter a presença negada e assim continuar o jogo de gato e rato, prazerosamente controlando a situação com promessas que faz e não cumpre.
Investe em uma sensualidade infantil, fala de seus princípios, de seus valores, tendo a mãe como sua aliada, ao mesmo tempo apresenta uma liberdade estranha, dança em cabaré nua para os homens, aceita certas caricias de Mathieu.
Com essa posição, não querendo mais ser criança, mas também não querendo ser adulta, que é uma conveniência, para manter um outro jogo, que é o “negocio amoroso”, Mathieu passa a ser mais um “tesouro” que a fascina do que um objeto de amor a ser possuído. E esse se coloca nesse lugar.
O filme, rico em detalhes e enigmas, como por exemplo: a ratoeira em uma casa de classe alta, mosca no copo, um saco que eventualmente Matthieu carrega nas costas, são detalhes que sugerem uma outra narrativa, um outro momento do filme. As cenas de explosões e de terrorismo, sugerindo um suposto envolvimento de Conchita, mas que parece passar despercebido a Mathieu, são apenas sugeridas, indiciadas sem nenhuma explicação. Ou quem sabe, o explosivo movimento do desejo?
E no final, uma mulher dentro de uma vitrine, tira de um saco, varias camisolas, talvez simbolizando as recusas de Conchita, sugere o mesmo saco que Mathieu carregava, começa a remendar uma camisola suja de sangue. O desejo do ato sexual consumado? Pega suas memórias, suas bagagens, seus desejos e constrói a historia, ou repete a história?
Belo Horizonte, 06/04/2013
link para assistir o filme completo: http://vimeo.com/35092020

Leila de Oliveira é psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano- BH /MG

7 comentários:

Isloany Machado disse...

Gosto muito dessa interface Psicanálise e Cinema. Este trabalho é muito importante, pois coloca a psicanálise de uma forma mais acessível.

Anônimo disse...

Winnicott nos diz que quando o bebê no estágio de desenvolvimento inicial primitivo de integração, devido a uma falha no meio ambiente, não consegue integrar determinado fato em seu desenvolvimento primário devido a uma ligação entre a realização do desejo e a morte da fantasia que lhe dá forma, vai desenvolver, na adultice, uma relação entre a realização do desejo e morte. Assim Conchita, ao fantasiar um "tesouro" em Mathieu não podia realizar um desejo que mataria uma fantasia fantastica em sua vida... a de ter um falo poderoso, que sua mãe fálica não lhe deu.

Unknown disse...

A troca de personagem, (atriz) no papel de Conchita, esta tambem associada as indas e vindas do objeto de desejo?

edith sarmento dutra disse...

Texto excelente! Sem ser pedante, em fácil leitura, informa e desvela o que nos faz melhor apreciar o filme.
Sucesso pra vc!
Edith Sarmento Dutra

Layse disse...

Nossa essa análise me acrescentou muito. Achei muito intrigante o nome do filme e adorei assistir, um clássico!
Pensei em algo relacionado com o que a Maria Cristina comentou, sobre a mudança de personagens. Parabéns Leila, pelo texto, realmente muito bom.

Leandro RP disse...

Eu também fiquei reflexivo quanto à troca de atores que personalizam a Conchita. Qual o significado desta troca? Porque a narrativa está sendo construída a partir da visão de Mathiu. O que isso representa?

Luis disse...

Mas afinal, no final, o Fernando Rey conseguiu consumar a relação sexual com Conchita?