sábado, 6 de outubro de 2012

Blade Runner : A estética do andróide

de Christian Dunker

Blade Runner é um filme que reinventa estilos. Combina o clima "noir" com a trilha tecno-áurica de Van Gelis; o policial, com a ficção científica; a violência, com o drama subjetivo. No entanto, é curioso que ele tenha se transformado numa espécie de Casablanca de nossa geração. O interesse reavivado por Bogart e seu estilo talvez ganhem em Blade Runner uma nova dimensão. Ao ver "Casablanca", interessava vê-lo com os olhos daquela época, onde o desenraizamento do herói o fazia único. Bogart, assim como Harrison Ford, são alheios a qualquer forma de engajamento subjetivo : sem partido, sem ideais, nem do lado da lei, nem contra ela. O tédio, a paixão moderna por excelência, é o elemento central dessa existência estetizada. O tédio, vivido num estilo de desprendimento, de "desterritorialização", constitui uma certa subjetividade modelar de nossa época. Mesmo para eles, a aventura da transgressão parece ser ocasional.

O filme certamente não teria o mesmo êxito se fosse exibido na sua versão original. Nela, está ausente a voz que expressa o pensamento do herói, quebra-se aquilo que tornava o estilo assimilável. O efeito da versão original é angustiante. O herói se torna impenetrável, a suspeita de que ele próprio é um replicante paira sobre o enredo. Os olhos do espectador hesitam em se reconhecer ou não num possível andróide. Na versão "amputada", a voz dá suporte para uma posição que o espectador acompanha. Um ser sem lugar; sem instituições; sem ideais; liberto da temporalidade que estes imprimem. É difícil dizer a que espaço pertence este personagem, talvez à cidade onde lixo e tecnologia se combinam, mas certamente a nenhum prédio desta cidade. É mais seguro afirmar que ele pertence à névoa que a envolve.
Do outro lado, encontramos a tragédia dos replicantes. Obcecados por aquilo que o herói despreza: o tempo. O tempo absolutamente determinado pela data de ativação. Sua demanda não é de imortalidade, mas de indeterminação. Lutam para efetivamente morrer. Sustentam desesperadamente uma opacidade subjetiva. Não querem ser públicos, devassáveis, atravessados por um olhar que os determina integralmente como objetos. Furta-se à condição de uma fotografia esquadrinhada por um aparato de ampliação. A máquina de detectar replicantes é uma grande lente que os capta na pupila, que os olha além do que podem ser olhados , que invade memórias, pondo sob suspeita sua consistência. Certos pacientes relatam que estão sendo olhados na alma, que não estão mais opacos ao olhar do outro, que este lhe sabe os pensamentos. É nesse momento que se dizem mortos, ou então convertidos em máquinas de transmissão ou retransmissão, ou, ainda, mudando de sexo. A transparência da alma é, nos dois casos, angustiante.
Note-se como os replicantes matam suas vítimas apertando os dedos contra seus olhos. Escute-se a fala do replicante chefe : "Você fez meus olhos, mas não pode imaginar o que vi com eles". O olhar da coruja caolha, os olhos da suspeita fervendo na água do café, índices de um desejo de reconhecimento, de serem como quaisquer outros e ao mesmo tempo únicos na memória de suas experiências. Nesse sentido, Harrison Ford, o herói sem nome, definido por sua função, é a melhor representação do replicante. O que o faz herói é ser escutado na alma, e não visto. Este olhar do Outro os põe como objeto de uma suspeita; é um olhar que diz : sem morte, sem desejo, sem estilo. Bem poderia ser o olhar que recai como um imperativo de beleza sobre os corpos contemporâneos. Que corpo quer este olhar? Mais magro, mais alto, sem estrias ou rugas, um corpo exato; um corpo de replicante é o que assedia nossas madames. É este olhar, e o corpo suposto que ele engendra, o olhar que mata a anoréxica.
Finalmente, Rachel, a replicante que não sabe. Diante de um passado que não lhe pertence. O registro de experiências e o seu acúmulo na memória talvez façam dela a mais fantástica máquina já produzida pelo capitalismo subjetivo. Experiências negociáveis na bolsa de valores humanos. Fatos brutos, consumidos, resistentes à interpretação, televisionados para o Aqui e Agora do presente eterno e sem lugar. Talvez nada seja, atualmente, mais sartreano do que a imagem jornalística da violência bruta . Contrariando Nietzsche: só fatos, sem interpretações. Rachel é sujeita a uma súbita retirada de todos os fatos. Eles não são mais "subjetiváveis", não fazem mais histórias. Não se trata de saber se ela sente ou não, não é isso que diferencia o homem da máquina. Mas, uma vez sem as pseudodeterminações desta história, o que poderia ela desprezar, do que ela teria a se desfazer tediosamente, do que poderia se libertar? Subitamente viu-se sem ter nada a perder, sem poder perder nada mais.
No final apresentado pela versão original, Rachel e o caçador de andróides descem pela porta que se fecha num estrondo, o amor da caça pelo caçador ganha uma dimensão silenciosa, impenetrável. Não há uma declaração amorosa sequer; o romance, ao contrário da sua situação desde o século XVIII, não faz mais falar. Ele se desenvolve pela interpretação de olhares, pela sua imposição contextual. Ele fundamentalmente não se realiza; ao contrário da versão que chegou aos cinemas, onde ele é absorvido numa imagem idílica, verdejante, no sobrevôo de um avião. Contrastando com a densidade do filme, esse final feliz, cuja eliminação reaproxima "Blade Runner" e "Casablanca", dá a Rachel uma imagem da qual pode se assegurar e da qual pode futuramente se desfazer. Essa imagem "territorializa" o caçador e sua presa, ata-os a uma esteira dramática que o espectador já antecipa.
Na perseguição onde se encontram herói e anti-herói, há uma alteração que faz a estética da existência evoluir para uma ética do ato. O sentido é previsto pelo espectador, que antecipa no andróide uma violência e frieza que o determinam enquanto tal. Harrison Ford, pendendo num abismo, se agarra com uma das mãos, assim como o replicante que fura sua própria mão para atrasar seu destino de desligamento. Ambos estão por um fio e a série de fatos antecipa a morte do herói. Nesse momento, o replicante segura sua mão no ar e o salva. Instante que altera toda a interpretação suposta até então. Instante ético. Ato onde não há nada a perder. Ato onde o andróide se faz Outro para o corpo pendente, estranhamento que relembra o ato de Antígona diante da cidade. Ato ético sustentado pelo puro desejo. Ali, o replicante se inscreve no tempo e ganha a possibilidade de morrer de fato. É o que torna possível a fala "Time to die".
Seria o caso de perguntar : mas qual é o filme de se trata? O filme 1, o original, o da suspeita e da angústia; ou o filme 2, com a voz (re) asseguradora de que nosso olhar pode entrar na subjetividade do outro e que nos garante a participação neste estilo? Não seria o filme que vimos no cinema pela primeira vez um replicante do segundo, um impostor que nos promete um final feliz onde há somente a indeterminação do desejo e sua angústia correlativa? Fico com Nietzsche : não há fatos, só interpretações.
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor dos livros: “Lacan e a Clínica da Interpretação” (ed. Hacker, 1996), “O Cálculo Neurótico do Gozo” (ed. Escuta, 2002) e do “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011) - agora, vencedor do Prêmio Jabuti 2012

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