O
filme que escolhi como tema é uma adaptação do livro best seller
de Patrick Süskind. Ele me fez pensar na questão da volatilidade
do eclipsado objeto do desejo, de difícil controle, domínio e tão
fugaz quanto os aromas. O que há por trás do objeto desejado que
tanto nos escapa? Por que é tão difícil mantermos a mesma
intensidade de desejo por algo já conquistado? Ora, se a falta que
suscita o desejo persiste a conquista do objeto desejado e, então, o
sujeito segue desejando, desejaríamos a falta?
Na
visão psicanalítica, a concepção de objeto é visto sob três
aspectos: enquanto correlativo da pulsão, enquanto correlativo do
amor ou do ódio, enquanto correlativo do sujeito. (LAPLANCHE e
PONTALIS)
O
objeto do desejo para Freud é um objeto perdido, que desliza
infinitamente numa cadeia marcada pela falta e que continua presente
como falta. Ele não constitui algo da ordem do concreto que se
oferece ao sujeito e sim da ordem do simbólico. Antes de ascender ao
plano do simbólico o desejo se realiza no plano do imaginário.
(GARCIA-ROZA)
No
transcorrer da história, o desejo de Jean Baptiste parecia ser
controlar o desejo do outro. E no final, de posse do desejo do outro,
ele se depara com a sua ausência de desejo por esse outro. Junto com
o poder permanecia a falta. Falta de que? De quem?
Cabe
aqui, então, um retrocesso.
Jean
Baptiste quando chega ao mundo não é recepcionado pelo desejo de
sua mãe. Mas de que desejo estaria eu falando? Ele é expelido como
qualquer um dos dejetos fabricados pelo corpo dela e seria recolhido
ao final do dia juntamente com as tripas dos peixes e lançado ao
rio. No entanto, ele não quis que fosse assim. Ele escolhe viver e
grita, anunciando ao mundo sua existência. Sobrevive ao parto e ao
abandono, contrariando o esperado e subvertendo a ordem. “O
primeiro som que sai da sua boca leva sua mãe para a forca”.
Xeque-mate na rainha! Jean Baptiste segue em sua aposta solitária,
carregando consigo seu primeiro crime? Uma culpa primordial e quiçá
a insígnia de assassino? Teria ele então se condenado e se calado
por cinco anos, vivendo enclausurado em sua prisão interna,
ensimesmado, recolhendo seu cheiro, sua existência, permanecendo
“incluído de fora”, como um sonâmbulo a vagar pelos espaços
que lhe eram destinados? Eu me lançaria nessa hipótese como uma das
muitas possíveis.
Quem
como ele havia sobrevivido às condições de seu nascimento não
cedia tão facilmente seu lugar no mundo. Seu corpo sobrevivia com um
mínimo de comida e de roupas e a sua alma parecia de nada precisar.
Ele se apresentava imune à dor e com a resistência de uma bactéria,
sendo visto como um “extra” terrestre. Sua presença causava
estranhamento e repugnância. Era como se pertencesse a outra
realidade; ficava ausente para as pessoas e objetos que o cercavam e
que, para ele, eram como que transparentes, desprovidos de sentido.
Sua forma de reconhecimento e relacionamento com o mundo se dava
através do olfato. Teriam os odores ocupado o lugar simbólico
deixado vago pela mãe? Sua voracidade em buscar e colecionar novos
aromas teria alguma relação com um registro mnêmico do cheiro de
sua mãe?
O
que mais poderíamos dizer do encontro de Jean Baptiste com o mundo
externo? Desde a tenra idade, suas relações foram pautadas pela
questão da utilidade x valor monetário, e, em dado momento, a
experiência de ser descartado se repetia. O mundo que vai se
descortinando além de hostil, não comporta experiências de afeto,
amor, compaixão, estabilidade. A frouxidão dos laços gerava níveis
de insegurança, propiciando a criação e o isolamento em um mundo
interno paralelo onde ele podia se sentir seguro. Um mundo com
linguagem própria (a dos odores), em que ele era o senhor absoluto,
controlando e criando novas experiências e sensações: Jean
Baptiste acumulava, no seu íntimo, uma quase infinidade de
experiências olfativas e, a partir de suas decomposições,
realizava novas combinações e criações que não existiam no mundo
real.
A
par de sua aparente renúncia ao desejo de descoberta do mundo e de
si mesmo, poderíamos considerar seu interesse e curiosidade pelos
aromas um ponto de ancoragem com a realidade dos outros seres
humanos?
Jean
Baptiste deseja vorazmente algo que ele não sabe o que é, e que eu
penso estar deslocado e condensado para essa questão do domínio do
aroma. O que ele traz em seu discurso é a necessidade de aprender a
capturar e manter o aroma, sendo este, para ele, a alma do ser
humano. Para que? Para nunca mais perder, para poder reprisar. Qual
seria a representação de alma para ele?
O
dicionário da língua portuguesa Houaiss, define alma como o
“princípio vital; a sede dos sentimentos, da vida afetiva, a
natureza moral e emocional de uma pessoa”.
De
acordo com Jean Baptiste quem controla os aromas, controla o coração
dos homens. Se pensarmos o coração simbolicamente como a sede das
emoções, estaríamos falando de um desejo de controlar o amor e o
ódio? De um modo de defesa relacionada à perda de pessoas
significativas, que de alguma forma haviam deixado uma inscrição,
uma marca em seu psiquismo?
O
que estaria por trás dessa necessidade de controle? Caberia
pensarmos em uma pulsão de dominação?
Quando
o cheiro da vendedora de ameixas invade suas narinas, ele se sente
fortemente atraído, completamente absorvido, sendo tocado de uma
forma tão avassaladora e doce como, aparentemente, nunca fora, pela
crueza de sua realidade. Algo de uma beleza tão sutil e ao mesmo
tempo com um poder tão grandioso que desperta o gigante adormecido,
que só existira de forma animalesca, voltando-lhe o olhar para o
externo. Ele, então, o persegue até encontrar a fonte, mas
inadvertidamente, “sem querer, querendo”, comete seu segundo
assassinato. O que teria nesse cheiro que o deixou tão desorientado?
Por que ele não conseguia retê-lo, sendo que tinha a capacidade de
recordar e sentir, a qualquer momento, o cheiro dos milhares de
odores específicos arquivados em sua memória?
A
experiência na caverna propicia a Jean Baptiste um maior contato
consigo a partir do qual ele se percebe como alguém sem odor e
insignificante para os outros, temendo o próprio esquecimento. A
partir desse momento, os crimes cometidos, que até então me
pareceram involuntários, passaram a ser premeditados. “Eu
simplesmente precisava dela” responde ao pai inconsolado com a
morte de sua filha. Nesse momento eu me questionei: Quem fala e de
quem se fala? Seria o Isso falando?
Cabe
aqui uma observação: o sujeito está dividido e não centrado no
eu. Temos, portanto, “o sujeito do
enunciado, (...) portador do discurso manifesto, porém desconhecedor
do sujeito da enunciação e do conteúdo da mensagem; (...) e o
sujeito da enunciação (...) que não é expresso ou significado no
enunciado, mas recalcado e inconsciente.” (GARCIA-ROZA)
Nosso
protagonista viveu a angústia de não ser conhecido por quem o
gerou, de não ser visto, de não existir. Ele, então, cria uma alma
Frankenstein, composta de treze essências femininas, que lhe
possibilitaria existir e saciar sua fome ininterrupta de ser alguém
no mundo. Por instantes, a sensação parecia ser de triunfo. “Ele
consegue criar para si a aura mais radiosa e eficaz da face da terra
sem dever a ninguém: a um pai, a uma mãe e, menos ainda, a uma
divindade benfeitora. Ele era, na realidade, o seu próprio deus”
(SÜSKIND). Aos seus pés estavam o bispo e toda a população. No
entanto, por detrás da máscara do melhor perfume do mundo,
persistia sua total ausência de odor, de desejo por si e pelo outro.
Então, qual era o sentido?
Ele
remonta a cena em que encontra a vendedora de ameixas, mas dessa vez,
ela o vê, o abraça, o deseja. A cena é bruscamente interrompida
pela imagem do corpo morto e, pela segunda vez na vida, ele chora.
Teria ele se dado conta que o objeto de seu desejo estava para sempre
perdido?
Então
ele se retira, sendo levado por suas memórias olfativas ao local do
seu nascimento. Ele derruba o perfume sobre a sua cabeça e se deixa
devorar pelos ali presentes, que se sentiram “tomados por uma
felicidade infantil, pois, pela primeira vez na vida, acreditavam ter
feito algo puramente por amor”.
Vieram
a mim as seguintes questões:
-
Jean Baptiste
quando chega ao mundo não é recepcionado pelo desejo do Outro,
mas, de alguma forma, teria ele com o perfume reproduzido no outro a
voracidade do seu desejo de ser desejado e conseguido, pelo menos,
se retirar do mundo por essa via?
-
O ato de se deixar devorar pela multidão presente no local de seu
nascimento seria uma tentativa de retorno para o ventre de sua mãe,
de se sentir completo, pertencente, parte de, na simbiose, na
alienação?
-
O que estaria
por trás, ou
na frente, da
13ª
essência?
Aline Elizabeth Marino de Oliveira é Psicóloga Clínica em processo de contaminação pela psicanálise.
5 comentários:
Isso é que é viagem! Esse filme aguça a curiosidade! Eu li o texto, obrigado!
Segundo o narrado ele não definia cheiro bom de ruim, assim como nós fora do seu mundo conhecemos o bom e o mal e assim o cheiro era pra Jean Baptiste, e ao encontrar a vendedora de ameixa ele conhece um cheiro novo, bom, diferente que lhe dava vida e significado parecendo o primeiro odor que cheira que é de sua mãe. Então o desejo que era conhecer odores novos se torna uma busca ao odor perdido da vendedora de ameixa, cujo foi se esvaindo assim como um pedaço dele foi removido.
E quando ele esteve na gruta a primeira imagem que vem em sua cabeça é da vendedora de ameixa que esta em sua frente, mas não o enxerga dando-lhe a sensação de que ele não existisse, mas nas palavras de Jean Baptiste ele diz-As almas das pessoas é cheiro delas, ele sendo igual a todos de carne e osso tem uma alma, mas não consegue enxerga por que foi perdida com a vendedora de ameixas e isso o motiva a correr a trás da 13ª essência. E quando ele vê a sexta de ameixa caindo vem a vendedora novamente em sua cabeça lhe aceitando, tocando e o amando ele chora como se perdesse algo de muito valor que é sua alma, vida, e o motivo dele querer viver. E não tendo mais ela, não a motivo de amar, ser amado e reconhecido, ele achou que tendo a 13ª essência ele poderia trazer de volta aquilo que ele perdeu mais se decepciona com a visão de que todos encontraram oque queriam, menos ele.
E em um retrocesso ele volta para o lugar de onde veio como se fosse voltar para útero da sua mãe o caminho de volta de onde ele nunca achou que podia ter saído, mesmo com tanto poder em sua mão não teria sentido viver.
A adaptação pro cinema dessa parte da orgia foi claramente deturpada do sentido original do livro, Jean Baptiste Grenouille amava somente sua obsessão por cheiros, perfumes em geral e sua obsessão por fazer o perfume perfeito e nada mais, ele amou o cheiro da ruiva e não a moça, ele queria se vingar da sociedade; e quando conseguiu subjugar todos se sentiu insatisfeito e vazio, porque ele estava mostrando todo o seu nojo e desprezo pelo povo e eles estavam não o odiando e sim o amando, ele queria triunfar sobre eles e queria o ódio deles com isso, mas o q ele conseguiu foi a adoração, então ele não queria amor e sim triunfar, mas quanto mais ele os odiava mais eles o amavam, no bacanal ele sentiu nojo e desprezo da situação, o personagem é de certa forma superior aquela animalidade sexual, achando aquilo grotesco e bestial, no filme deturparão os sentimentos e pensamentos de Grenouille assim como toda a cena, mostrando a animalidade como algo puro e elevado.
O filme ficou muito bom, Jean Baptiste Grenouille foi muito bem representado , fazendo jus ao livro, é um personagem sombrio mas que quando bem analisado se torna cativante apesar de seus crimes. O cenário da antiga Paris na história e do nascimento de Grenouille foram maravilhosamente representados também, corresponderam aos que me passavam na cabeça durante a leitura do livro. Muitos detalhes bacanas do livro foram breves demais , mas é aceitável visando que o filme tem apenas 2h27m. O final é bom sim, não é apenas uma orgia sem sentido. Grenouille descobre que mesmo com a criação do perfume as pessoas não o amam e nem vão o amar de verdade , sendo assim o sentido de sua vida acaba ali, então ele vai a um "beco" cheio de pessoas em estado de vida degradante , como prostitutas, mendigos, bandidos , e derrama todo o perfume em si mesmo , sendo comido vivo. O final me fez pensar que ele apenas queria ser amado e que este foi seu objetivo durante todo o filme.
Que viage kkkkkkk o final não foi somente um "beco", ele retornou a sua cidade natal, ele teve o amor e reconhecimento da onde ele estava e tinha em suas mãos o poder de fazer o mundo ama-lo, mas ele mesmo não tinha essa capacidade, nem de amar e nem de se sentir amado, pois ele nunca teve isso, nunca teve amor, e nem nunca foi ensinado a amar. Dado diagnóstico, ele é TPA, psicopata. Então ele retorna a cidade onde ele nasceu, ganhou o amor daqueles que o desprezou, maltratou, e como ele mesmo não se amava, a saída seria se auto destruir, reduzir a sua energia (pulsão de morte) a 0, sem desejos.
O seu final está correto, ele queria ser amado, mas também queria poder amar, queria preencher o seu vazio, o vazio de uma busca obsessiva de ter um sentido ele mesmo de sua vida.
Da onde vc tirou essa ideia? Ele não amava a vendedora de ameixa, o narrador no final deixa claro que ele não tinha a capacidade de amar e nem de ser amado... Essa parte que eles se beijam foi muito sem sentido... Deixou no ar muito coisa que talvez nem se encaixe. Talvez ele sempre se lembre dela pq foi o primeiro cheiro que ele sentiu que penetrou a sua alma e despertou esse desejo obscuro.
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