domingo, 27 de janeiro de 2013

Freud: The Secret Passion - parte II : No que se transformou o “Projeto Freud”

de Nilson Perissé
Após a emblemática deserção de Jean-Paul Sartre da produção de “Freud, Além da Alma” (Freud: the Secret Passion), de 1962, os riscos de que a saga freudiana, transformada em filme, sofresse deturpações e reduzisse a psicanálise a uma caricatura se tornaram maiores. O que veio a seguir intensificou esse temor. A inexperiência do diretor John Huston com o referencial psicanalítico, as Influências da censura e a intervenção dos atores na revisão de suas falas alterariam o legado de Sartre e levariam a produção a enfrentar perigos imprevistos. Com base em ampla pesquisa bibliográfica, esta resenha em três partes propõe-se a refletir sobre os desafios da proposta psicanalítica e a forma como é apropriada por aqueles que dela se aproximam.

Freud no cinema americano: a peste que insiste em incomodar                         
Capítulo II: No que se transformou o “Projeto Freud
Segundo o psicanalista e filósofo francês Jean-Bertrand Pontalis, a proposta que o diretor norte-americano John Huston fez a Sartre para a escrita de um roteiro sobre a vida e a obra de Sigmund Freud estipulava que a trama deveria estar centrada, “segundo uma tradição muito hollywoodiana, sobre o tempo ‘heróico’ da descoberta, aquele ‘tempo forte’ em que Freud, renunciando à hipnose, inventa, progressivamente, dolorosamente, a psicanálise”(2). Mal comparando, fosse o diretor um Spielberg, o filme seria algo como um “Indiana Freud”. Como se tratava de Huston, diretor de “O Falcão Maltês” (The Maltese Falcon, 1941), consagrado filme “de detetives” adaptado de um romance noir de Dashiell Hammett, a saga freudiana deveria retratar, no mínimo, uma trama de mistério. “A ideia básica, a de Freud aventureiro, é minha”, diria Huston em entrevista. “Eu queria me concentrar nesse episódio à maneira de uma história policial”(3).
É natural que a perspectiva de Sartre levasse a narrativa mais na direção de um filme de ideias do que de uma obra de entretenimento. Mas haviam pontos em comum. Elisabeth Roudinesco comenta: “Ambos desejavam ilustrar o momento inovador quando um cientista dá o passo que irá torná-lo o fundador de uma nova ciência”(4). Essa convergência foi o laço possível para o que poderia ser uma obra conjunta de dois homens tão diferentes.

O laço, porém, mostrou-se frágil, pois a forma como cada um pretendia narrar essa saga caminhava para direções diferentes. Na verdade, o “projeto Freud” poderia ilustrar, com rara precisão, a premissa lacaniana de que a comunicação se faz no mal entendido: se Huston vislumbrava um requintado filme de suspense psicológico associado a um retumbante sucesso comercial, Sartre visualizava “um filme de arte monumental de valor duradouro” (5). Assim, após a saída do filósofo francês do projeto, Huston e Reinhardt viram-se às voltas com um farto material que precisaria ser editado e ajustado a um filme de aproximadamente duas horas, que mantivesse o espírito de aventura proposto por Huston e ao mesmo tempo não representasse um perigo junto à censura americana.
Wolfgang e eu começamos então a trabalhar”, conta Huston. “Wolfgang (...) não sabia escrever muito bem uma cena, mas conhecia profundamente a obra de Freud e a psicanálise em geral. Gastava um tempo enorme trabalhando o dia inteiro no roteiro de Sartre, cortando, podando, sintetizando. Aos poucos ia entregando o que já estava pronto para Gladys Hill datilografar em inglês correto, fazer sugestões e passar para mim, que revisava tudo de novo. Desse modo levamos quase seis meses para redigir a versão definitiva de Freud” (6).
O resultado final foi um roteiro de 190 páginas, ainda sujeito a sofrer mudanças. Huston conta que o estúdio continuava pressionando por uma versão menor, e além disso ele sentia-se desconfortável com algumas questões conceituais. Ele admite: “O roteiro ainda tinha coisas mal-resolvidas. Por exemplo, como demonstrar o mecanismo psíquico da repressão? Uma coisa é compreender e outra, bem diferente, é conseguir mostrar isso de maneira convincente para a plateia”(7). Reinhardt relata o episódio sob outra perspectiva: “John ficava me dizendo que tudo aquilo parecia uma falácia e contestava o que Sartre e eu falávamos sobre a vida de Freud e suas teorias. Eu tinha lido todos os livros de Freud, mas John não, e isso levou a reuniões improdutivas. Ele ficava me perguntando ‘O que significa repressão?’ toda hora. Mesmo quando estávamos filmando, ele perguntaria na frente dos atores como se não tivéssemos conversado sobre isso”(8). Havia, portanto, a dificuldade de Huston em lidar com um material cujo domínio conceitual não possuía, mas a isso seria acrescentado outro problema, caracterizado pelo difícil manejo do elenco principal e pela exigência dos atores em reescrever suas falas - o que contribuiu para que o texto original de Sartre fosse sendo alterado incessantemente.
Huston contava com dois artistas de filmes anteriores seus para os personagens principais: Montgomery Clift para o papel de Freud e Marilyn Monroe para o de Cecily. Marilyn havia sido uma sugestão do próprio Sartre. Convidada, manifestou-se honrada com o convite, especialmente pelo fato de que ela própria encontrava-se em análise desde 1954. Entretanto, sua analista na ocasião era Marianne Kris, amiga de Anna Freud, que desde o início se manifestara contrária ao projeto do filme. Elisabeth Roudinesco afirma que Anna teria falado de seu desagrado à amiga Kris, que teria influenciado Marilyn a desistir do projeto (9). Em seu lugar, Huston escalou uma jovem Susannah York, atriz britânica então com 22 anos, que logo imporia desconcertantes exigências em relação ao roteiro. Invariavelmente, segundo Huston, ela recusava-se a atuar em várias cenas da forma como estavam escritas, exigindo que lhes fosse dada uma nova redação. Ele conta que ela “tinha tudo para personificar a ignorância arrogante da juventude. Não demorou muito (...) para ficar convencida de que tinha o direito de emitir opiniões científicas a respeito de um assunto do qual não entendia absolutamente nada” (10).
Mas York não estava sozinha. O ator principal, Montgomery Clift, também impactaria o texto já tão mexido por várias mãos. Ele estivera em análise por cerca de dez anos e tinha suas próprias ideias sobre Freud e sobre a psicanálise. Queixa-se Huston: “Monty queria participar das nossas discussões. Fazia análise desde 1950 e se julgava uma autoridade em matéria de Freud. Entrava na sala, tirava os sapatos e deitava no chão. Dizia que só assim conseguia se concentrar. Interrompia a conversa nos momentos mais inoportunos, com comentários simplesmente incompreensíveis. (...) Não sei como, Monty conseguiu as versões anteriores do roteiro e, juntando trechos de todas, tentou modificar as cenas. Me mostrava páginas tão cobertas de rabiscos que se tornavam completamente indecifráveis para mim e que nem ele podia ler direito. (...) Os dois (Monty e Susannah) passavam noites inteiras reescrevendo as cenas de Cecily com Freud e me apresentavam as alterações propostas cada manhã” (11).
Mais adiante, seria a mesa de edição que efetuaria novas alterações no projeto. É Huston quem conta: “Os diretores-executivos do estúdio me forçaram a cortar uma cena [integrante da primeira versão do roteiro de Sartre] que ofendia seus brios morais. Nela, uma moça hipnotizada contava, na presença do pai, a tentativa de estupro de que tinha sido vítima por ele mesmo. Eu não devia ter aceito esse corte; a cena era muito importante para a história porque mostrava uma das pistas falsas que levaram Freud a enveredar por uma linha errada de dedução. (...) Mas o corte foi feito...”(12).
Após todas essas “soluções de compromisso”, é admirável que o filme tenha preservado minimamente um enredo compreensível. Estão lá os primeiros anos de atividade profissional de Freud, realçando alguns pontos marcantes que fizeram parte do processo de descoberta: 1) a relação com o psiquiatra e anatomista cerebral Theodor Meynert, do Hospital Geral de Viena (1883-1886), com quem Freud viria a polemizar por conta de pontos de vista distintos acerca da hipnose e da histeria; 2) o entusiasmo com as práticas de Jean Martin Charcot (entre 1885 e 1886), com quem concorda que, “de modo geral, a anatomia concluiu seu trabalho e pode-se dizer que a teoria das doenças orgânicas está completa; agora chegou o tempo das neuroses”(13); 3) a convivência com Josef Breuer - a quem em várias ocasiões atribuiria o papel de descobridor da psicanálise – e a descoberta da “terapia da fala” estabelecida por aquele com a paciente Anna O. e que daria sustentação ao método catártico, 4) a utilização da técnica da associação livre (1892), 5) a elaboração da teoria da sedução e a abdicação dela (1895-1897), 6) alguns elementos que levaram ao conceito do Complexo de Édipo (1897); 7) considerações sobre os sonhos (1900), e 8) a defesa do conceito de sexualidade infantil (1905).
O que ficou do material de Sartre faz um vínculo significativo entre a vida pessoal de Freud e a formulação da psicanálise, buscando reforçar que a exploração da neurose alheia tinha estreita ligação com a busca de cura da própria neurose. Pontalis testemunha um significativo comentário de Sartre, quando este entra em contato com a biografia de Freud escrita por Ernest Jones: “Cá ente nós, diga-me, o seu Freud era neurótico até a medula”(14). Pontalis analisa que, a partir dessa leitura, Sartre iria ver, “na sucessão das hipóteses formuladas, na modificação às vezes drástica da teoria (basta lembrar o abandono da teoria da sedução), algo inteiramente diferente de um exercício puramente intelectual ou do resultado empírico de uma recensão minuciosa dos fatos: tratava-se antes do próprio movimento de uma cura de que Freud, assim como os neuróticos que ele tratava como podia, e somente como podia, era o objeto. Freud, médico doente, teria quase a contragosto descoberto a psicanálise – ao mesmo tempo, o método e seus objetos – para curar a si mesmo, para resolver os próprios conflitos” (15).
Elisabeth Roudinesco, deixando à parte inconsistências do roteiro original e do filme, opinou que, apesar das fragilidades do roteiro, “o Freud de Sartre foi ao mesmo tempo mais fiel à vida real e menos ficcional que o Freud em parte autoritário e em parte um tranquilo pai de família retratado nas páginas de Ernest Jones”(16). Na visão dessa autora, Freud foi apresentado no roteiro de Sartre como um cientista ao estilo de Fausto, uma criatura de luz e sombras, assombrado por desejo e sexualidade e em guerra contra a ordem estabelecida.
Huston respeitou uma solução que Sartre propôs ao condensar os diversos sintomas histéricos de pacientes diferentes em uma única personagem, batizada de Cecily. Simplificando assim o que seriam intermináveis cenas de Freud no contato com as histéricas em seu consultório, Sartre concentrou nessa fictícia personagem as experiências de Breuer com Anna O. e as de Freud com Elisabeth von R. (com quem iria desenvolver o processo de associação livre) e outras. Fez o mesmo com outro personagem fictício, Carl von Schlossen, compósito de vários pacientes que contribuíram para o desenvolvimento da teoria do Complexo de Édipo. Trata-se de um recurso funcional e, poderia se dizer, de inspiração psicanalítica. Freud, em sua “Interpretação dos Sonhos” (1899) explica que “a construção de figuras coletivas e compostas é um dos principais métodos por que a condensação atua nos sonhos”(17). O mesmo recurso seria utilizado por Sartre na segunda versão do roteiro - no caso, o personagem de Wilhelm Fliess, interlocutor fundamental de Freud em suas investigações preliminares, some e tem suas falas principais incorporadas ao personagem de Breuer. Assim, Breuer-Fliess, como um único homem, tem a participação ampliada, atuando no filme como um dos principais coadjuvantes de Freud.
É possível dizer que Freud, além da alma retrata o conjunto de forças – contraditórias entre si - que o geraram: o tom de mistério pretendido por Huston pode ser notado através de uma trilha sonora de suspense e pelo uso caprichado do contraste entre branco e preto da fotografia; as ideias principais de Sartre podem ser apreciadas nos diálogos densos e numa narrativa cuidadosa que preserva os principais fatos históricos do período coberto pelo filme; as preocupações do estúdio com o apelo popular podem ser identificados em detalhes como, por exemplo, o processo de divulgação - o filme, que no lançamento era simplesmente “Freud”, rapidamente foi rebatizado como “Freud: the secret passion”. No cartaz promocional pode ser lido: “Ele se atreveu a buscar além da carne...sabendo que a verdade chocante poderia arruinar sua carreira... e destruir seu casamento”. Um segundo texto trazia uma fala de Martha para Freud: “Quando você está em seu consultório eu tapo os ouvidos para os segredos íntimos que você deve compartilhar”...
Por tudo isso, é certo que “Freud, além da alma” não pode ser visto como uma biografia fiel. O crítico Norman Holland (18) observa que no filme jamais são mencionados os seis filhos de Freud e Martha no período coberto pela trama; suas pesquisas sobre a cocaína são ignoradas; foi Brücke e não Breuer quem influenciou Freud ao atendimento clínico particular ao invés da atuação em pesquisa; Anna O., representada em grande parte na personagem Cecily, jamais foi paciente de Freud; o uso do simbolismo na interpretação não era comum até 1910, período não abrangido pelo filme; a cena final em que Freud é humilhado diante de seus colegas médicos é uma ficção; o amigo Fliess e a paciente Dora, embora existam na primeira versão do roteiro, não estão no filme, tendo sua importância menosprezada na narrativa sobre Freud. Todas essas concessões para viabilizar Freud em filme levaram Anna Freud a confirmar seu repúdio à produção: “Em nossa opinião nem verdade histórica nem científica sobre a pessoa, Sigmund Freud, ou seu trabalho, podem ser ou são transmitidas pelo filme, ao contrário da pretensão de seus produtores” (19).
Apesar da postura crítica da herdeira de Freud, o filme refletiria, minimamente, um emblemático jogo de forças mobilizadas no processo de absorção da psicanálise pela cultura e – no extremo – teria a capacidade de despertar na equipe de produção comportamentos inusitados.
A SEGUIR: Freud, além da alma, deixa marcas na equipe de produção. Repercussões do filme e reflexões finais.
Freud, além da alma- parte 1, procurar nesse blog pela data: 12 de janeiro de 2013

                                            - parte 3, procurar nesse blog pela data: 17 de fevereiro de 2013

Freud, Além da Alma  (Freud: The Secret Passion)
Nilson Perissé é Mestre em Sistemas de Gestão, psicanalista em construção e bacharel em Comunicação Social. É autor da dissertação “A gente já entra se sentindo menor: impactos da terceirização na subjetividade do trabalhador”. No Cinefreudiano, publicou o artigo “O Desejo em Woody Allen”. Para correspondência: nilsonperisse@hotmail.com

sábado, 19 de janeiro de 2013

Sarau CineFreudiano é transmissão sim ?

por Henrique Senhorini

O Sarau CineFreudiano como
dispositivo de transmissão da psicanálise ?
Amigos já contaminados e amigos dispostos à contaminação
Bia Tucci e Leandro Rosa
Liz Guimarães Rosa e a Dança Mixx
Sarau este que nasceu do entusiasmo se destacou pelo meu amadorismo.
Porém, no desenvolvimento do evento, lembrei-me de um texto meu - escrevi
anos atrás - que ajudou a declinar minha superegóica severidade.
Afinal, todo analista, de certa maneira, é um amador.
Amigos já contaminados e amigos dispostos à contaminação
Amador : do latim "amatore"
é aquele que ama o que faz, na visão de Roland Barthes.
Amigos já contaminados e amigos dispostos à contaminação
Liz Guimarães Rosa e a DANÇA MIXX
Liz Guimarães Rosa e a Dança Mixx
É o amante que, segundo Sonia Leite, se dedica a uma arte ou ofício
por prazer e que visa tão somente ao gozo do fazer sem se preocupar em
expor uma imagem pública. Seria algo próximo do desejo do analista ?
Amigos já contaminados e amigos dispostos à contaminação
Mariana Giorgion apresentando texto de Liz Guimarães Rosa

Isso sem falar do entusiasmo, do entusiasta. Daquele que mantém sempre
o mesmo frescor de sua primeira experiência como analista, pois o que
ele já sabe não lhe serve de nada para escutar um novo analisando.
Amigos já contaminados e amigos dispostos à contaminação
O poeta Rodolfo Coelho e seu amigo, também poeta, Joel

Esse frescor também seria constituinte do desejo do analista
e imprescindível na transmissão da peste ?  Acredito que sim !
Amigos já contaminados e amigos dispostos à contaminação
Walkyria Spinelli - Feitos Religioso do Nepal e a Neurose Obsessiva 1
Walkyria Spinelli - parte 2 com fotos
Neurose Obsessiva 1
Entendo que na psicanálise a transmissão sempre está em questão. É algo
que passa não só na relação privada analista-analisando, na supervisão,
nas instituições psicanalistas, mas também na cultura, na sociedade,
no blog cine freudiano assim como no sarau.
Amigos já contaminados e amigos dispostos à contaminação
E o Sarau, com o auxílio da minha fantasia,
poderia ser este lugar de intersecção do público com o privado.
Do sagrado com o profano ? Ou seria no entre ???
Amigos já contaminados e amigos dispostos à contaminaigos já contaminados e amigos dispostos à contaminação
Alexandre Holtmann Pastore

Para Philippe Julien, a transmissão da psicanálise se dá de duas maneiras,
em dois lugares distintos: um dentro (relação analista-analisando) e outro
fora (relações que os psicanalistas mantém com a sociedade em que vivem).

Amigos já contaminados e amigos dispostos à contaminação
Amigos já contaminados e amigos dispostos à contaminação
Amigos já contaminados e amigos dispostos à contaminação
A história da transmissão da psicanálise, ainda com Julien, é 
a história da relação entre esses dois lugares conflitantes.
Liz Guimarães Rosa e a Dança Mixx
Também poderia pensar o sarau como uma forma de sublimação e ou
reinvenção da transmissão - diria - mais ortodoxa.
Liz Guimarães Rosa e a Dança Mixx
comentários sobre "Nossa Música" de Jean-Luc Godard:
Christian Dunker  e  Arnaldo Domínguez
               Arnaldo Domínguez - parte 1 à contaminação
Arnaldo Domínguez - parte 2: "Nossa Música" de Godard… 

Além disso, ficou a impressão que, durante o sarau, ocorreu
uma espécie de lampejo, de fagulha desse enigmático desejo que
Lacan chamou, segundo Didier-Weill, de "desejo X".
Seria o desejo X que nos levou a ser analistas?
Desejo X, algo do entusiasta e do amador?
comentários sobre "Nossa Música" de Jean-Luc Godard:
comentários sobre "Nossa Música" de Jean-Luc Godard:
Christian Dunker  e  Arnaldo Domínguez
Christian Dunker - parte 1
Christian Dunker : parte 2 - "Nossa Música" de Godard
Christian Dunker - parte 1
Enfim, no Sarau CineFreudiano
a vida até pareceu uma festa
foi diversão sim
foi transmissão pra mim 

sábado, 12 de janeiro de 2013

Freud: The Secret Passion - parte I : Bastidores de um encontro inusitado

de Nilson Perissé
O filme “Freud, Além da Alma” (Freud: the Secret Passion), de 1962, é uma experiência cinematográfica intensa, e ainda hoje uma referência em festivais de cinema que celebram a psicanálise. Não tão bem conhecidos são os bastidores da produção e as soluções encontradas para sintetizar em pouco mais de duas horas os primeiros tempos da descoberta freudiana. O que essa história tem a nos dizer sobre a forma como o mundo se apropria da psicanálise e faz dela uma narrativa ? Com base em elementos colhidos da autobiografia do realizador John Huston, de uma biografia do ator Montgomery Clift, de análises de Elisabeth Roudinesco e J.-B. Pontalis, entre outros, esta resenha em três partes propõe-se a refletir sobre os desafios da proposta psicanalítica e a forma como é apropriada por aqueles que dela se aproximam.

Freud no cinema americano : a peste que insiste em incomodar
Parte I - Bastidores de um encontro inusitado
Era um trio inusitado, porém não menos brilhante. Freud, médico vienense, criador da psicanálise; Sartre, filósofo francês, expoente do existencialismo; Huston, cineasta americano, diretor de filmes clássicos de aventura. Esse encontro improvável teve inicio no final da década de 1950, quando John Huston solicitou a Jean-Paul Sartre um roteiro sobre a vida e obra de Sigmund Freud. Nessa ocasião, Freud já havia falecido há quase vinte anos, mas permanecia vivo - para uns, através da obra; para outros, através do mito. Huston, famoso realizador de clássicos como “O Falcão Maltês” (The Maltese Falcon, 1941), “O Tesouro de Sierra Madre” (The Treasure of the Sierra Madre, 1948) e “Uma Aventura na África” (The African Queen, 1951), fazia parte deste último grupo. Ele olhava a vida de Freud através do mito, e isso significava para ele um potencial roteiro de aventura. Afinal, o percurso de idas e vindas, de erros e acertos da descoberta freudiana não se assemelhava a uma trama investigativa ou, no limite, a uma boa história de suspense pedindo para ser filmada? Ele já vinha pensando nessa perspectiva há muitos anos. Em sua autobiografia conta que, desde 1940, já discutia essa perspectiva com o produtor e roteirista alemão Wolfgang Reinhardt, embora só viesse a pensar seriamente na ideia quase vinte anos depois. “Chegamos à conclusão de que precisava ser algo que cheirasse a enxofre; a descida de Freud ao inconsciente teria que ser tão aterradora quanto a de Dante ao Inferno”, conta ele(2). Por outro lado, a despeito de seu entusiasmo com Freud, Huston não escondia sua incapacidade de acreditar no conceito do inconsciente. Em uma carta para Simone de Beauvoir, Sartre alega ter ouvido Huston dizer: “No meu (inconsciente) não há nada!”(3). Mais que isso: Huston tinha críticas ao tratamento psicanalítico: “O consultório de um psicanalista competente vive com as horas tomadas por pessoas entediadas e filhos problemáticos de gente rica. O preço das sessões é exorbitante e o tratamento, em geral, leva vários anos. As pessoas muito ocupadas ou ativas não têm tempo para isso e as que mais precisam de orientação psiquiátrica são exatamente as que não se podem dar ao luxo de tê-la”(4).

Sartre e Huston
Sartre também nutria restrições quanto a Freud. Para ele a psicanálise tinha limitada expressão social, características burguesas e pouco potencial para transformar o status quo. Além disso, admitir um inconsciente com poder suficiente para influenciar ou até determinar o comportamento implicaria na necessidade de repensar a liberdade do sujeito em suas escolhas, premissa cara ao existencialismo. Conforme analisa a historiadora francesa Elisabeth Roudinesco, aos olhos de Sartre “o inconsciente freudiano era um conceito inútil, por demais mecanicista e biológico”(5). A autora conta que Sartre acusava a psicanálise “de negar a dialética e desconhecer a essência da liberdade”, o que o levava a defender uma espécie de psicanálise existencial, que teria a “capacidade de abolir o inconsciente e de afirmar que nada existe antes do aparecimento original da liberdade”(6).
Com a restrição de ambos ao conceito de inconsciente – basilar para a psicanálise - o que fez laço entre Huston e Sartre em torno de Freud?
Huston havia dirigido em 1946 uma montagem de “Entre Quatro Paredes” do filósofo francês, e guardava a impressão de que Sartre “entendia de psicologia a fundo, conhecia intimamente a obra freudiana, que nas mãos dele receberia um tratamento objetivo e lógico”(7). Roudinesco dá um crédito a Huston por essa escolha. Segundo ela, no final dos anos 1950 a psicanálise já havia sido americanizada numa versão corrompida, adaptativa e medicalizada, sendo Hollywood, ao contrário, um reduto onde ainda se fazia crítica ao american-way-of-life. Daí, segundo ela, Huston ter optado por um Freud europeu e anti-americano e por conta disso ter escolhido a parceria com Sartre, “um homem de esquerda e um filósofo da liberdade”(8). O escritor Robert LaGuardia, que publicou uma biografia do ator Montgomery Clift (intérprete de Freud no filme) traz uma versão menos favorável ao diretor. Ele conta que Huston não sabia em que estava se envolvendo e que Sartre, ao ser convidado para a elaboração do roteiro e após as primeiras conversas com o diretor americano a respeito do projeto, ficou surpreso pelo fato de aquele não ter ideia de que o sexo era um ingrediente importante na formulação da psicanálise. Meses mais tarde, quando Huston teria acesso à primeira versão do roteiro e às cenas envolvendo homossexualismo, incesto, masturbação, prostituição e aberrações sexuais, ficaria absolutamente perplexo, pois não fazia a menor ideia do terreno onde estava começando a pisar(9).
Quanto a Sartre, que de fato conhecia melhor o trabalho de Freud (embora tivesse suas próprias objeções), que fator teria levado em consideração para aceitar os riscos daquele projeto? Ele mesmo admite: o interesse financeiro. Roudinesco reproduz os argumentos que ele utilizou ao ser questionado se alguma vez havia escrito algo por dinheiro: “Foi o roteiro sobre Freud que escrevi para Huston. Eu acabara de me dar conta de que não tinha mais dinheiro. Acho que foi quando minha mãe havia me dado doze milhões de francos antigos para pagar minhas dívidas. Elas foram pagas, e eu não tinha mais dívidas, mas acho que não tinha mais um tostão. Justamente quando eu soube que Huston queria me ver. Ele chegou uma manhã e disse ‘Eu estou oferecendo a você 25 milhões para colaborar num filme sobre Freud’. Eu disse sim e consegui os 25 milhões”(10).
O que teria dito Freud sobre um projeto construído por realizadores com interesses tão ambíguos? Talvez repetisse argumentos que deixou registrados ao longo de seus escritos. Em uma de suas cartas, ele opinava: “Ninguém pode se fazer biógrafo sem se comprometer com a mentira, a dissimulação, a hipocrisia, a bajulação, sem contar a obrigação de mascarar a própria incompreensão. A verdade biográfica é inacessível. Ainda que pudesse ser atingida, não poderia ser declarada”(11). Em seu “Estudo Autobiográfico”, de 1925, insistirá: “O público não tem o direito de saber mais sobre meus assuntos pessoais – minhas lutas, meus desapontamentos e meus êxitos”(12). Talvez por isso Anna Freud, associada aos pensamentos do pai, tenha sido, desde o início, contrária à realização do projeto que, ainda assim, caminhou.
O ano de 1958 mostrou-se propício para colher material biográfico sobre o pai da psicanálise: Jean-Bertrand Pontalis, que dedicou um artigo aos bastidores do filme de Huston(13), conta que nessa ocasião fora publicado em francês o primeiro volume com a biografia oficial de Freud escrita por Ernest Jones. Dois anos antes, já era de conhecimento público parte da correspondência trocada com Wilhelm Fliess, trazendo à tona um Freud íntimo até então jamais visto (o conjunto dessas informações inéditas constituiria o que seria jocosamente considerado o “making-of” da psicanálise). Com base nesse material, o esforço inicial de Sartre gerou uma sinopse de 95 páginas, rapidamente aprovada por Huston. O desenvolvimento dessas ideias se transformaria num roteiro que viria à luz no ano seguinte e, com ele, as insuperáveis divergências com o cineasta americano.
Era um roteiro de 300 páginas e, conforme as palavras de Huston, “da largura de minha coxa”(14). Se filmado na íntegra, geraria um filme de aproximadamente cinco horas. Além disso, o conteúdo inflamável repleto de temas arriscados para a censura moralista americana do início da década de 1960 ameaçaria o financiamento da produção pela Universal. Naquela época, sem o selo de aprovação da censura, seria quase impensável uma distribuição ampla em território americano. Huston não titubeou: escreveu a Sartre sobre a necessidade de burilar o conteúdo e reduzi-lo, e a resposta que recebeu foi irônica: “Pode-se fazer um filme de quatro horas quando se trata de Ben Hur, mas o público do Texas não suportaria quatro horas de complexos”(15).
A reação de Sartre demonstrava uma indignação que não deve ter sido compreendida por Huston, embora uma leitura atenta do roteiro inicial já indicasse suas razões. Está tudo ali: uma história construída com muitas nuances, ganchos claros costurando as cenas, soluções criativas para narrar uma aventura subjetiva e, subjacente a tudo isso, uma dedicação de seu autor que se justifica exclusivamente pela hipótese de que Sartre se apaixonara pela história que se propusera a contar. Se o dinheiro havia sido a matriz original de sua decisão, é certo que ele se empolgou pelo projeto e conseguiu reproduzir um Freud vivo e ambíguo, cheio de falhas, ambições e genialidade. Tudo no roteiro é de grande delicadeza e apuro: as relações familiares bastante presentes nas duas primeiras partes da narrativa, a forma como descreveu Martha Bernays – inteligente, apaixonada e cheia de matizes -, as falas apuradas e elegantes de Meynert, os traços precisos com que pintou Fliess e Breuer – tudo evidencia uma pesquisa apurada e elaborações sofisticadas.
Huston talvez não tenha entendido, mas ainda assim, farejando encrenca, convidou Sartre para passar duas semanas do mês de janeiro de 1960(16) em sua casa, na Irlanda, onde fariam reuniões diárias para o aprimoramento do roteiro. Aparentemente, a julgar pelos testemunhos de ambos - posteriormente divulgados na imprensa, na correspondência entre Sartre e Simone de Beauvoir e na autobiografia de Huston -, haviam barreiras culturais intransponíveis: Sartre reagia a cada proposta de mudança de seu roteiro utilizando-se de argumentos inesgotáveis que irritavam Huston; vestia-se de forma impecável com seu terno cinza e não saía da formalidade. Huston, por sua vez, cansou-se facilmente da verborragia de Sartre, era econômico em suas argumentações, tinha uma perspectiva influenciada pelas demandas da indústria de cinema e, num momento de descontração, tentou mostrar a Sartre – sem sucesso – que poderia hipnotizá-lo. Esse e outros comportamentos eram vistos por Sartre com desprezo: “literalmente incapaz de conversar com aqueles que convidou”, escreveu ele sobre Huston, acrescentando ainda: “ele é vazio, exceto em seus momentos de vaidade infantil” (17). Huston, de sua parte, também via Sartre como alguém, no mínimo, pitoresco, o que teria aumentado o curto-circuito já presente na explosiva relação. Para Elizabeth Roudinesco, o encontro transformou-se num pugilismo intelectual: “incapazes de um entendimento ou respeito mútuo, os dois homens, tão parecidos e tão diferentes, tentaram dominar um ao outro, até que veio à luz o produto final do mal-entendido: um roteiro soberbo mas infilmável, e o fascinante fracasso de um filme” (18).
Sem acordos ou consensos claros, Sartre voltou a Paris com o compromisso de eliminar do roteiro algumas partes sinalizadas por Huston. Mas quando, por fim, chegou à versão final, encaminhou para os Estados Unidos um roteiro com 700 páginas, mais que o dobro da versão anterior.
Foi a gota final. Huston decidiu colocar as próprias mãos sobre as elaborações de Sartre. Amparou-se com o auxílio de um roteirista profissional, Charlie Kaufman, famoso por cine-biografias, além de Reinhardt, com quem chegou a um roteiro de 190 páginas. Huston conta que parte do trabalho de revisão implicou em reduzir as conotações sexuais do roteiro de Sartre. Ele já havia recebido uma sinalização positiva quanto ao financiamento do filme, desde que fosse conseguida a aprovação da Igreja Católica: “A Igreja não podia nos impedir de levar avante o projeto, mas podia prejudicar o lançamento dos cinemas proibindo os fiéis de assistir ao filme. Me reuni com dois padres e uma mulher leiga para discutir minuciosamente o roteiro. A oposição dos três se baseava em princípios éticos: a filosofia de Freud, segundo eles, não admite a existência do Bem e do Mal. Só um padre tem o direito de sondar a alma humana. A mera sugestão de sexualidade infantil lhes repugnava. É lógico que eu não podia modificar Freud para satisfazer esses preconceitos católicos sem destruir completamente o filme – sem falar no freudianismo – e o máximo que eu podia esperar era chegar a um meio-termo” (19).
Essas concessões foram inaceitáveis para Sartre. Enfim ele caía em si que Huston não pretendia fazer um filme independente, de arte, voltado para um público erudito, mas apenas fazer cinema popular. Impaciente, ordenou que seu nome fosse tirado dos créditos do filme e abandonou o projeto. Quando Huston, incapaz de entender as reações de Sartre, pediu a Reinhardt que o procurasse em Paris em busca de uma explicação, Sartre não poupou o diretor americano de acusações e sarcasmo - sentou-se e compôs um texto de 16 páginas sobre suas motivações, acusando Huston de vender os altos ideais do projeto. Ao ler a carta, Huston supersimplificou a questão e explodiu com Reinhardt: “Por que você me traz algo como isso? Está tentando arruinar meu filme?” (20).
Foi o fim da participação de Sartre no projeto de Freud. Mas, para Huston e para o Freud ficcional que estava em jogo, os tropeços estavam ainda e apenas no começo.
A SEGUIR: NO QUE SE TRANSFORMOU O “PROJETO FREUD” - procurar pela data: 27/01/2013
Freud, Além da Alma  (Freud: The Secret Passion)
Nilson Perissé é Mestre em Sistemas de Gestão, psicanalista em construção e bacharel em Comunicação Social. É autor da dissertação “A gente já entra se sentindo menor: impactos da terceirização na subjetividade do trabalhador”. No Cinefreudiano, publicou o artigo “O Desejo em Woody Allen”. Para correspondência: nilsonperisse@hotmail.com