Com
um título desses, até os menos românticos são capazes de se
animarem. Nossa música! Mas quem fazemos este “nós”? No
escopo da cinematografia godardiana, trata-se de uma ambição
derrisória, por evocar o coletivo humano em suas vísceras de
crueldade e destruição... Homem de nem tantas palavras, Godard
prima pela mostração:
“É
com Jean-Luc Godard que o cinema-ensaio chega a sua expressão
máxima. Para esse notável cineasta franco-suíço, pouco importa se
a imagem com que ele trabalha é captada diretamente do mundo visível
‘natural’ ou é simulada com atores e cenários artificiais, se
ela foi produzida pelo próprio cineasta ou foi simplesmente
apropriada por ele, depois de haver sido criada em outros contextos e
para outras finalidades, se ela é apresentada tal e qual a câmera a
captou com seus recursos técnicos ou foi imensamente processada no
momento posterior à captação através de recursos eletrônicos. A
única coisa que realmente importa é o que o cineasta faz com esses
materiais, como constrói com eles uma reflexão densa sobre o mundo,
como transforma todos esses materiais brutos e inertes em experiência
de vida e pensamento.”.
(MACHADO,
2003: 10)
O
1º Reino: O Inferno
Então,
são poucas palavras costuradas às muitas imagens. Imagens que nos
assustam, nos impressionam, até mesmo nos aterrorizam, e nos
revelam. Quem, que não nós mesmos, estivemos lá? Se não de corpo,
mas de alma, ou por vestígios do outro em mim?
Assim,
no tempo das fábulas, depois das inundações e do dilúvio,
surgiram da terra os homens armados e se exterminaram...
Eles
são terríveis aqui, com esta mania de decapitar as pessoas. O que
surpreende é haver sobreviventes...
Fragmentos
de violência, sob os riscos do Real. Obsceno, como diria
Baudrillard...
Perdoem
aos que nos ofenderam, assim como os perdoamos... Não de outra
maneira.
Sim,
como nós os perdoamos... Não de outra maneira...
Ficção
e arquivo, mas não sem uma questão colocada sobre a morte: podemos
encarar a morte de duas maneiras, como o impossível do possível, ou
como o possível do impossível...
...
“Você se lembra de Sarajevo?”...
“Todo
grande filme de ficção tende ao documentário e todo grande
documentário tende à ficção e, quem optar por um, encontrará
necessariamente o outro no fim do caminho” (Jean-Luc Godard)
...
“Você se lembra de Sarajevo?”...
O
2º Reino: Purgatório
Algumas
palavras, muitas imagens devastadoras -o que sobrou? O que sobrou de
nós? Assemblage, bricolagem de nossos termos fragmentados –
nossa música?-, tentativa de reconstrução, reconciliação entre
perdas, ruínas, Roma, memória que não é só tua ou minha...
afinal, a verdade tem estrutura de ficção. Ficção possível?
Segundo
Machado (1999), Nossa Música é a versão godardiana da
Divina Comédia, de Dante, e foi filmada a partir de elementos
fragmentários da sociedade moderna, marcada pela guerra e pelo
horror.
Segundo
o rabino Nilton Bonder, e ao contrário da soberba humana, o perdão
é a realização de uma perda grande... uma perdona...
Quando
o imperativo categórico impõe a destruição, cabe nos interrogar a
respeito?
Certa
vez, ouvi um depoimento de um sobrevivente do Shoah, que já
adulto dizia ter se surpreendido com um pensamento que lhe ocorrera
no momento que se viu livre do campo de concentração quando
criança. Teria pensado ele: Agora posso morrer! Para sua própria
surpresa “temporária”, este, agora homem, realizara: Claro,
morrer não é o mesmo que ser exterminado...
Assim,
vimos nas imagens selecionadas por Godard, não só cenas de Memory
of the camps (1985), mas também cenas lúdicas de
batalhas infantis: arquivo e ficção...
De
A
vida secreta das palavras,
dirigido
por Isabel Coixet:
Há
poucas coisas: o silêncio e as palavras.
A
pergunta é: Como alguém vive com o que aconteceu?
Eu
sei, terão que ir para o futuro... Alguns não conseguem.
Outros
se recusam. Recusam-se a admitir que estamos todos no fio da navalha
que corta a visada do mundo .
Ter
o privilégio de dizer das visitas ao Real: repetir-se e
reinventar-se, eis o desafio.
E
há os livros... protagonistas no purgatório de Godard, empilhados,
esparramados e, até mesmo, tomados como bomba na bolsa vermelha de
Olga, eles constituem o que mais precisamente parece fazer parte do
mundo que tenta se configurar como válido e responsável pelas vidas
que ainda vigoram, embora haja empecilhos...
No
cinema e na vida, ponto e contra-ponto ex-istem como meio de
reflexão possível.
O
3º Reino: Paraíso
No
cartaz original de divulgação de Melancolia, de Von Trier,
estava escrito sobre a foto de Justine disposta como Ofélia de
Hamlet: “O fim será belo”... Mas, Isso será possível?
O que podemos fazer com Isso? Ou Dizer dIsso? Perguntas de uma
análise...
Se
é sim, não o é sem passar pelo inexorável fim admitido, quando
terá sido fundamental ter lançado mão, como em Melancolia,
Nossa música, ou ainda, Divina Comédia, da “caverna
mágica” estabelecida por um puro designo nominativo. Este é o
lugar da aposta de que seja factível ficar com o possível do
impossível...
SP/
Dezembro de 2012
Karin de Paula é Psicanalista, Mestre e Doutora pela PUC-SP, Pós-doutoranda na Sorbonne Paris Diderot (Paris 7), professora na universidade e em curso de formação de psicanalistas. Membro fundadora do umLugar – Psicanálise e Transmissão. Autora dos livros “$em – sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise”, Ed. Casa do Psicólogo e “Do espírito da coisa - um cálculo de graça”, Ed. Escuta.
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