sábado, 2 de novembro de 2019

Bacurau

de Christian Dunker

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Bacurau (2019), de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles pode ser visto como um filme previsível sobre a violência, particularmente no Brasil profundo do sertão onde o Estado só chega em nome da corrupção. Um nordeastern que reforça o preconceito de que nosso inimigo fala inglês, que o sul usa o nordeste para empreender sua miséria em estrutura de vídeo game, que a pobreza traz necessariamente violência e que todos os políticos são corruptos. Um filme que usa a paratopia, baseada no fato de que o enredo se passa no futuro, apenas para mostrar como o tempo não passa e que no fundo repetimos padrões do cangaço, da ditadura militar, da escravidão e do colonialismo. Resultado: em vez de recriar um presente a partir da sua exageração no futuro, como em Terra em Transe, por exemplo, estamos apenas mitificando o presente a partir da alegorização do passado.

O ponto mais inaceitável de Bacurau é que ele consagra a moral da vingança e do ressentimento como única alternativa contra um estado de opressão e anomia, onde a vida vale pouco e a morte se contabiliza em gotas de gozo. Violência contra violência gera mais violência, mais polarização e no fundo sanciona a lei do mais forte, que supostamente queríamos reverter. Há uma teoria da transformação em jogo aqui: eu “viro” meu inimigo ao agir como ele age. Assim fazendo, perco toda a razão pois sanciono a lei proposta por ele, a lei da guerra. O inimigo vence quando me faz trair a razão emancipatória, baseada na organização do conflito pela palavra e pelas instituições civilizatórias de educação, urbanidade e civilidade. Por isso o filme repete o que há de pior na trilogia da qual faz parte. Tal como em O som ao redor (2013), em Bacurau nos sentimos presos às estruturas latifundiárias e sua retórica da transgressão libertadora. Tal como em Aquarius (2016), aqui nos percebemos imersos em um sistema da favorecimentos encoberto pelo governo onde a única saída é a sobrevalorização defensiva dos particulares: meu corpo, minha casa, minha família, minha história.

Tudo verdade… mas nem toda verdade.

Tudo realidade… mas com um traço de Real.

A chave para uma segunda leitura de Bacurau se encontrará na peça Casa Submersa, dirigida por Kiko Marques, com a Velha Companhia, em cartaz no Sesc Pompéia em São Paulo. Também aqui encontramos o fechamento de uma trilogia. Iniciada com Cais ou Da indiferença das embarcações (2012), que trata do amor interrompido pela emergência do Estado Novo, e seguida por Sinthia (2016) que trata do retorno do filho para a casa onde, para uma mãe que sempre quis ter uma menina agora encontrará seu filho tornado mulher. A trilogia realiza uma tematização transversal da política, primeiro com a intrusão de Vargas atrapalhando o grande amor de um casal, depois com a Ditadura Militar oprimindo o amor de um filho por sua mãe e agora, em Casa Submersa (2019), com a degradação de uma família à partir do assassinato do pai no contexto da corrupção política emergente. A protagonista Maíra vive um conjunto de efeitos pós-traumáticos, composto por dissociações, rupturas de memória, despersonalizações e desintegração de experiências de satisfação corporal, que é remetido ao passado violento de sua própria família – um passado que não cessa de não passar e que se reatualiza nas diversas figuras da incompreensão de si mesma. Tudo acontece como se essas irrupções sintomáticas, inclusive agressões e autoagressões, fossem uma espécie de patologia da memória, símbolos que esqueceram sua função rememorativa e sobretudo angústias que assim colocadas possuem pequena força transformativa.
Registro de Casa Submersa, nova montagem da Velha Companhia, dirigida por Kiko Marques (Nelson Kao/Divulgação).
Aqui nos lembramos das teses de Moisés e a religião monoteísta1, onde Freud postula que o trauma gera dois tipos de consequências. Os efeitos positivos são aqueles nos quais repetimos o evento traumático, fragmentando e retendo suas imagens e afetos coligados. Surgem pesadelos, acessos de angústia, bloqueios de memória e intrusão de imagens violentas, que, em seu conjunto, são reatualizações do ocorrido. Já os efeitos negativos do trauma são mais perigosos justamente porque mais difíceis de localizar. Eles aparecem como irrupções inexplicáveis de ódio e violência, reações de evitação e indiferença, que efetivam uma espécie de esterilização da palavra, trazendo desalento, desesperança e suspensão do laço com o outro. Se os efeitos positivos prolongam o trauma criando monumentos desconhecidos, os efeitos negativos transmitem-se pelo silêncio, como que a reproduzir um ato que nunca se realizou. As duas propriedades do trauma frequentemente se juntam para efetivar o que se poderia chamar de potência trágica da experiência traumática. Ou seja, ao negar e ao fugir do trauma fazemos acontecer de novo aquilo que mais queríamos evitar, assim como o jovem Édipo que foge de Corinto para proteger seus pais (adotivos) e acaba encontrando e matando seu pai (biológico, Laio), na encruzilhada de três fronteiras.

Casa Submersa é parte de uma grande alegoria da água, que aparece como metáfora para o esquecimento, para a desaparição dos corpos e para o desejo desesperado de escapar da asfixia e encontrar ar para respirar. Aqui está o escafandrista que passa, como o coro nas tragédias antigas, murmurando, sofregamente, a verdade que não conseguimos apreender. Já Bacurau é parte da alegoria da seca. Metonímia do pequeno Brasil, formado por comunidades isoladas, natural e artificialmente: sem internet, sem lugar no mapa, sem a proteção o Estado, sem água, que tem que vir de fora. Aqui surge Lunga, o protagonista paratópico, meio curinga meio trickster, meio homem meio mulher, meio criança meio adulto, parte da comunidade, mas que vive fora dela.

Walter Benjamin definia a alegoria como a “facies hipocrática da protopaisagem da história”2Facies hipocrática é uma expressão que encontramos na medicina de Hipócrates para designar a cara típica que um paciente faz de tal maneira que, a partir de então, sabemos que não há mais cura possível e que a morte virá inexoravelmente. É como se alegoria nos permitisse ver, ainda que por um instante determinado, a paisagem completa da história, nos conferindo o distanciamento necessário para aprendê-la, do ponto de vista da totalidade, como uma unidade, mas ao preço de nada podermos fazer para mudá-la. Ora, esse instante é uma espécie de tratamento para o trauma. Ele permite realizar a perda, abrindo ao processo de luto, nos fazendo reconhecer o que realmente aconteceu e autorizando a experiência do acontecido. Ao mesmo tempo, permite introduzir a resposta que faltou ao trauma no momento de seu ocorrido, ainda que, e principalmente como uma resposta ficcional. Ou seja, é na conjectura criada por uma nova  forma de linguagem, neste caso o cinema e o teatro, que podemos inventar o que poderia ter sido para que hoje não continuarmos a ser obrigatoriamente o que somos.

Chegamos assim ao momento em que Freud e Benjamin se encontram para enfrentar o nosso problema brasileiro de última hora: como enfrentar a violência sem gerar mais violência? Como retratar e nomear a violência sem usar a linguagem reificada e consagrada da estetização a violência. Como não repetir com a estética da violência o que um dia fizemos com a estética da fome? A questão se desdobra para todas nossas maiores contradições sociais: pobreza, racismo, opressão de gênero, segregação cultural e social. A teoria freudiana do trauma é enunciada em um texto conhecido por realizar uma inversão fundamental na teoria psicanalítica da identidade: não é a família que vem primeiro e depois aparecem os estrangeiros. No início está o estrangeiro, o Unheimlich3, o corpo estranho, o infamiliar. A família é a sutura para essa indeterminação primária. A tese de que Moisés era egípcio e não judeu sintetiza essa teoria.

A teoria benjaminiana da alegoria se dá no contexto de uma pesquisa sobre a violência. Há a violência da transgressão das leis (o crime por exemplo), mas há também a violência daqueles que instituem, aplicam e manipulam as leis administrando suas exceções. Podemos caracterizar essa segunda forma de violência como uma alternância calculada entre, por um lado, a mão pesada que pune, mata e destrói em nome da lei entendida como purificação e ordem, e por outro, a mão que oculta, protege e prestidigita, tipicamente em favor dos poderosos. Por isso Benjamin se pergunta se não haveria uma terceira forma de violência, capaz de suspender a inversão simples entre violência de Estado e violência contra o Estado. Esse terceiro tipo de violência ele nomeia violência divina. Nela uma margem não se conecta com a outra e a divisão entre familiar e estrangeiro é suspensa, ainda que por um instante. Para entender a violência divina é preciso conectá-la com a teoria da alegoria. Ou seja, ela é uma violência posta em estrutura de ficção, não é uma violência na realidade, muito menos a legitimação da violência realística que já está em curso. Trata-se uma violência Real, em sentido lacaniano, que permite destruir e negar produtivamente os dualismos que operam na constituição simbólico-imaginária de nossa realidade. A violência Real não é traumática no mesmo sentido da violência que viola corpos e famílias, que impõe rupturas e supressões na história. Ela é a violência que advém da descoberta do estrangeiro dentro de si mesmo. Ela perturba a identidade entre o trauma e seu retorno convidando à inserção de um fragmento de reparação ou de suplemento na experiência. Por isso seu traço semiológico de reconhecimento sinaliza a insegurança ontológica na identidade dos egos e a indeterminação na relação de propriedade dos entes. O que o trauma da morte violenta de alguém cria é a identidade entre as duas coisas, forçando a identificação entre o trauma realístico e o trauma Real. Por isso sua cura depende de como conseguimos separar as duas coisas que estão soldadas, por exemplo, na mesma imagem. Inversamente, isso nos abre para essa pesquisa sobre a verdade e o real, também chamada luto.

Mais do que a regressão da biopolítica para a necropolítica e do círculo fechado e inversivo entre soberania e violência, o que Bacurau, lido junto com Casa Submersa, propõe é uma oniropolítica, ou seja, a restauração de nossa capacidade de sonhar, de olhar para o lado e de coabitar várias temporalidades contraditórias. Uma oniropolítica, como redefinição de nossas formas de desejar, vem se insinuando no trabalho dramatúrgico recente de Denise Fraga, em Eu de Você, no recente livro de Vera Iaconelli4, nos estudos anteriores de Tales Ab’Saber5, no último livro de Vladimir Safatle6 e nas pesquisas recentes do grupo de Miriam Debieux Rosa e Rose Gurski na clínica do traumático, ou de Jaime Guinsburg na crítica literária.

O resgate da língua do pai negro comida pelos peixes, em Casa Submersa, ou o retorno de Teresa para o funeral de sua avó (assim como o anúncio da retomada dos enforcamentos públicos no Vale do Anhangabaú), em Bacurau, devem ser lidos como uma alegoria cuja potência reside justamente na indeterminação da identidade e do sentido da mensagem. Seriam uma alusão ao assassinato da língua do pretês, como queria Lélia Gonzalez? Seria Teresa uma versão rediviva de Marielle Franco? Os enforcamentos e as desaparições estão acontecendo novamente, mas seriam eles os mesmos? Daí a importância de analisar tais produções como sonhos e não por seu valor prescritivo, em chave literal. Enquanto as imagens oníricas forem memes de repetição da miséria da violência permaneceremos submetidos ao empuxo para contemplá-las em posição de obediência, como se fossem uma nomenclatura que teríamos que repetir em nome da vida ou da morte, da paz ou da guerra.

É justamente por não sabemos se as pílulas tomadas pelos moradores de Bacurau são de anestesia ou de coragem, se são para acordar ou para dormir, que encontramos um novo caminho em formação na nossa relação com as imagens. Por isso, ainda que as armas estejam nos museus, nas escolas e nas igrejas desertas (e ainda que suas portas se encontrem abertas), não sabemos mais como usá-las em nosso próprio tempo. Os sonhos possuem essa propriedade reparadora de alterar nossa relação com o tempo. Eles nos fazem perguntar como o hoje, o ontem e o amanhã habitam a construção da mesma imagem. Com isso, demandam um trabalho de leitura e construção que chamamos desejo. Afinal, as imagens não são apenas imaginárias, mas também simbólicas, quando nos permitem reencontrar a história de nossos desejos, e ainda, quando bem postas e bem lidas, capazes de indicar o lugar do real. É exatamente o contrário não simétrico dessa relação pedagógica e ortopédica com as imagens, com as palavras e com o tempo, que encontramos nas atitudes de estupidez calculada de Bolsonaro ou no discurso tosco que o subvenciona no varejo. Não importa o olhar, não importa o lugar de onde se vê, não importam as vozes que falam, múltiplas em uma narrativa… tudo o que interessa são objetos malévolos, imagens de poder e glória cooptadas pelos inimigos naturais.


É muito importante lembrar que Bacurau e Casa Submersa foram pensados antes da emergência deste encolhimento democrático que vivemos. Filme e peça foram precedidos primeiro em 2013 e depois em 2016 pela construção de uma série sobre violência e história. Se ambos parecem proféticos e ilustrativos para 2019 é porque fecham um ciclo que já estava anunciado por nossas práticas de esquecimento e negação da história. É porque a repetição do trauma se anunciava mais forte do que a reparação. Eles surgem como uma facies hipocrática do presente pois foram capazes de pensar o presente antes que ele fosse presente. E só o fizeram porque nos trazem uma teoria do tempo subversiva e uma nova relação com a imagem que é crítica… se não divina.

Notas

1 Sigmund Freud, “Moisés y la religión monoteísta” [1939], Obras completas de Sigmund Freud, Vol. XXIV (Buenos Aires, Amorrortu).
2 Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemão (tradução, apresentação e notas de Sérgio Paulo Roanet, São Paulo, Brasiliense, 1984), p. 188.
3 Sigmund Freud, O Infamiliar [1919] (trad. Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares, Belo Horizonte, Autêntica, 2019).
4 Vera Iaconelli, Como criar filhos no século XXI (São Paulo, Contexto, 2019).
5 Tales Ab’Saber, O sonhar restaurado (Campinas, Editora 34, 2005).
6 Vladimir Safatle, Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (Belo Horizonte, Autêntica, 2019).

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

FONTE (autorizada pelo autor)

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