domingo, 1 de julho de 2018

WestWorld - Alguma vez você já se questionou sobre a natureza da sua realidade? Você sente inconsistência no seu mundo? Ou repetições?

de Viviana S. Venosa


"Astronarta" libertado
Minha vida me "urtrapassa"
Em "quarqué" rota que eu faça
Dei um grito no escuro
"Sô parcero" do futuro
Na reluzente "galáchia"
(“Dois Mil e Um”,  de Os Mutantes)

    Estas três questões que intitulam esse texto são feitas aos androides de WestWorld, uma série de ficção-científica cuja primeira temporada foi exibida em 2016 pela HBO. O gênero de ficção científica, tanto no cinema quanto na literatura, é bastante amplo que se pode considerar como partes deste grande conjunto tanto Frankenstein de Mary W. Shelley, quanto a franquia Star Warsde George Lucas ou a série “Guia do Mochileiro das Galáxias” de Douglas Adams, ou mesmo o clássico Blade Runner de Ridley Scott que, por sua vez, foi baseado no livro Androides Sonham com Carneiros Elétricos? de Philip K. Dick. A lista é tão grande que, se eu me pusesse a tarefa quase infinita de completá-la agora, certamente não terminaria esse texto.

    Para circunscrever o escopo, parto novamente das três perguntas: Alguma vez você já se questionou sobre a natureza da sua realidade? Você sente inconsistências no seu mundo? Ou repetições? – se você respondeu “sim” a alguma delas, ora ora, você é um possível analisante! E o que isso quer dizer? De saída, que é uma possibilidade, mas não uma imposição ou uma necessidade. Ainda que, muitas vezes, talvez quase todas as vezes, as pessoas procurem analistas por atribuir que têm questões de necessidade. Isto é, quando algo não funciona bem, seja um estranhamento com a realidade, uma inconsistência ou repetições.

    E o que isso tem a ver com ficção científica? Muita coisa, além das perguntas já supracitadas, claro. Phillip K. Dick, cujos livros inspiraram alguns filmes de ficção científica, foi um autor que persistiu na pergunta sobre o que é a realidade, praticamente em toda a sua obra. Pergunta essa a qual também remonta boa parte da tradição filosófica ocidental. No entanto, pessoas com estas questões procuram a análise para tratar delas. Portanto, não é meramente um tema da metafísica, mas também teórico-clínico da psicanálise.

    Na série WestWorld, ao avesso da psicanálise, essas perguntas não eram feitas para despertar, mas para manter “sonhando” os androides. Mantê-los na crença consistente de seus cotidianos vividos em loopings repetitivos. Na série, a realidade dos androides está na “inconsciência” sobre suas repetições. Em psicanálise, podemos dizer que a inconsistência não é oposto da repetição. A repetição de uma inibição, um sintoma, uma angústia é aquilo mesmo que pode fazer alguém indagar sobre sua “realidade”.

    Ora, é no caráter absurdo dos sonhos que Freud vai apoiar o método psicanalítico, no sentido de que – apesar de parecer absurdo à vida de vigília – o sonho tem uma lógica própria, um modo de funcionamento que a nossa razão desperta interpreta como “sem razão” ou sem sentido. E é com Lacan e a leitura particular que faz de Freud que podemos sintetizar mais ou menos e muito caricaturalmente o seguinte: a lógica que nos dá consistência de ser é construída sob o princípio da não-contradição. Ou seja, na medida que alguém diz “eu sou”, uma consistência se definiria. Sendo assim, o sem sentido do caráter absurdo do sonho pode ser dito como um sentido Outro, que não implica necessariamente em significar. Dito de outro modo, é uma divisão, um corte que faz cair as significações, que o modo de funcionamento dentro da lógica da não-contradição sustenta como consistentes.

    Mas, se “sou lá onde não penso, e penso lá onde não sou” (Lacan), em “dois dias essa realidade se desmonta” – parafraseando o texto de Philip K.Dick de 1978 – isto é, se sou onde não faz sentido e o sentido está onde não sou, a afirmativa verdadeira e consistente de meu ser está em... Outro lugar. No lugar de onde isso fala por meio de sonhos, atos-falhos, chistes e outros absurdos sem sentido, como as inibições, os sintomas e as angústias. Os sintomas, especialmente, também marcam o nascimento da psicanálise, pois é com seu caráter absurdo à medicina que Freud propôs escutá-los – como fez com os sonhos. Se temos uma cárie, vamos ao dentista, mas se falamos de dor de dente na análise, outro campo se abre. Um campo no qual o tratamento é a escuta desta outra lógica, também chamada de lógica do significante.

    Mais uma vez, uma ponte com a ficção científica pode ser traçada. Os androides de WestWorld têm suas consistências vitais criadas por histórias, é preciso conferir-lhes algo próximo a lembranças para que permaneçam incautos, ingênuos.

    Entrar em análise pode se considerar uma grande aventura. Implica perder a verdade que garante a existência e desarticular esta verdade do saber. Implica escutar sua carta escrita para alguém, lida por aquele que ocupa o lugar de analista como inversão e subversão da sua frágil e ficcional história. Em Blade Runner, a vertigem desta aventura está na versão em que não sabemos se Deckard é – ele mesmo – também um replicante. Qual seria a sua verdade? E esta versão do filme deixa, oportunamente, essa pergunta sem resposta.

    Nos fóruns de discussão sobre WestWorld  muitos internautas também se perguntavam, jocosamente, se eram eles mesmos androides, se estavam a repetir um loop. Será que estes internautas poderiam supor que, quando cometem um ato-falho, é Outro que fala? E o que temos a ver com este Outro que fala em nós? Implicamos com o Outro, ou estamos implicados neste Outro que nos atravessa, fundando um sujeito em esquize?

    Os loops dos androides de WestWorld consistidos por estas realidades criadas podem habitar qualquer um deles. Quando uma máquina quebra, basta substituir-lhe os softwares e toda a historieta algoritmicamente inventada. Assim, os androides podem escolher com base nos algoritmos que os programam, mas não podem decidir fora deles. A diferença que proponho entre escolher e decidir é tal que em escolher se calcula como se perde “menos”, e na decisão um encontro ocorre. Encontro de imprevisibilidade com a marca que nos define únicos, insubstituíveis. Mas insubstituíveis naquilo que nos marca como sujeitos, a divisão mesma que inaugura a série repetitiva que nos faz indagar e mobiliza para o início de uma análise. A origem daquilo que já estava lá, e paradoxalmente aparece como um novo, um supetão no vazio, o tropeço do sempre aí.

    Com isso, quero propor que as lembranças não são memórias. As lembranças são as repetições algorítmicas às quais estão sujeitos os androides e... nós? São o conhecimento adquirido que nos faz ter bom senso sobre certas coisas. A memória, esta da que tratamos em psicanálise é referida a esta marca inaugural, traço primeiro e único que faz diferença. E em fazendo, perfaz outro tipo de repetição do súbito vazio.

    Como eu disse, há os sintomas – uma análise não deveria funcionar para conversar sobre problemas filosóficos – há dor implicada, há angústias em jogo. Isto quer dizer que há efeitos. Os tais significantes são uma lógica sincrônica da linguagem, que faz furo na lógica da não-contradição. Mas quando falamos, eles estão lá a dizer outra coisa,  contra-dizendo.

    Então, como pode que, pela operação do significante [pela operação de uma análise], existam pessoas que se curam? Pois é exatamente disso que se trata. É fato que existem pessoas que se curam. Freud bem sublinhou que não era preciso que o analista estivesse possuído pelo desejo de curar; mas é fato que há pessoas que se curam. (LACAN, 1978)

    Quando falamos, sideramos. Uma análise tem a visada de desideração, e isso tem a ver com o desejo. É nesta sideração do que se diz em análise que a causa do desejo se revela. Não como um objeto de conhecimento. Mas como um saber sobre esse furo que fundamenta o sujeito. Uma análise é para qualquer um, mas apenas a sustenta algum que se disponha ao desejo de se colocar em posição de analisante.

Bibliografia:
Dick, Philip K. (1978) Como Construir um Universo que não Desmorone Dois Dias Depois. Disponível em: http://capacitorfantastico.blogspot.com.br/2010/04/como-construir-um-universo-que-nao.html, acessado em 08.04.2018.
FINGERMANN, D. Repetição e experiência analítica. In: FINGERMANN, D. (org.) Paradoxos da repetição. São Paulo: Annablume, 2014.
FREUD, S. (1900) A interpretação dos sonhos. In: FREUD, S. Edição standard das obra completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. IV.
LACAN, J. (1978) A transmissão - Encerramento do 9º Congresso da Escola Freudiana de Paris. Disponível em: http://www.appoa.com.br/correio/edicao/246/a_transmissao_encerramento_do_9_congresso_da_escola_freudiana_de_paris/222, acessado em 08.04.2018.
LACAN, J. (1960) Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: LACAN, J. (1966) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 843-864.

Artigo postado, com autorização da autora, após sua publicação original no blog da editora Aller :
https://www.allereditora.com.br/single-post/2018/04/09/Alguma-vez-voc%C3%AA-j%C3%A1-se-questionou-sobre-a-natureza-da-sua-realidade-Voc%C3%AA-sente-inconsist%C3%AAncia-no-seu-mundo-Ou-repeti%C3%A7%C3%B5es

Viviana S. Venosa é psicanalista, mestre pela USP e tem a ficção científica como seu gênero cinematográfico preferido.


Trailer