sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Eu Não Sou um Homem Fácil (Je ne suis pas un Homme Facile)


de  Marisa Costa 

Eu Não Sou um Homem Fácil (Je ne suis pas un Homme Facileé um filme francês, original Netflix, lançado nesse ano que vem conquistando o público. Usa a comédia para distorcer os princípios da cultura patriarcal ao mesmo tempo em que me fez pensar no amor.
Damien, o protagonista é o típico machista, não só por conquistar todas as mulheres, mas por também tratá-las como objetos. Nesse sentido, diz Monseny: “para que um homem goste de uma mulher é preciso gostar antes das mulheres” (2004, p. 96).
Sabemos que a psicanálise muito se interessa pela história dos sujeitos e sobremaneira pelas cenas infantis e sexuais, as quais nos marcam como nos diz Lacan em uma fixão e ficção. Pois tem algo que é da realidade psíquica, da fantasia do sujeito ao mesmo tempo em que nos fixamos e repetimos inconsciente e neuroticamente essas cenas, à nossa revelia. Lacan nos alerta que devemos “recorrer ao não-todo”; em seguida, explica “isto é, aos impasses da lógica, é mostrar a saída fora das ficções de Mundanidade, fazer outra ficção (fixion) do real, isto é, do impossível que o fixa pelas estruturas de linguagem” (LACAN, 1972/2003, p. 480).
         Desse modo, podemos fazer uma leitura da fixão que Damien faz com seu sintoma, em uma estrutura de linguagem. Em uma das primeiras cenas ele aparece em sua análise dizendo do seu sofrimento em escovar repetidamente os dentes, primeiro por três e depois por trinta minutos – eis o seu sintoma. Lia Silveira, psicanalista cearense, nos lembra no facebook que “se brosser”, em francês, é escovar os dentes, mas que também significa abrir mão do que se deseja. Desde o início da psicanálise, Freud relacionou o sintoma à linguagem, como na descrição de sua paciente Elisabeth que paralisou a perna após pensar, no velório de sua irmã, que poderia casar-se com seu cunhado. Em seguida, censurou-se com o seguinte pensamento: não poderia dar um mau passo – daí o início de seu sintoma de perna paralisada. Lacan no excerto abaixo relaciona o sintoma ao significante.

O sintoma, aqui, é o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito. Símbolo escrito na areia da carne e no véu de Maia[1], ele participa da linguagem pela ambiguidade semântica que já sublinhamos em sua constituição (LACAN, 1998, p. 282).

            Sabemos que o desejo impossível é uma característica da neurose obsessiva. Mas não estamos aqui para diagnosticar o personagem. Diferentemente, buscarei analisar os ditos de Damien para fazer uma leitura do que é o amor para psicanálise, qual seja, uma repetição. Para Freud os objetos de amor serão escolhidos ao modelo dos objetos infantis. Vamos para a associação que o próprio Damien faz na mesma sessão de sua análise. Ele se recorda da cena infantil em que todas as meninas da escola estavam se maquiando para a apresentação da Branca de Neve, eis a cena inicial do filme. A colega que seria a personagem principal da peça fica doente e sua mãe leva à escola a roupa que ela usaria na apresentação. A professora pergunta quem da turma poderia substitui-la. Inesperadamente Damien se prontifica a se vestir de branca de neve, para poder atrair o olhar da menina que gostava – Aurora.
 [...] o amor, não um vago sentimento, mas o verdadeiro amor, é um forçamento do Ich. O amor-paixão, não só é inesperado, sensível ao encontro e ao azar, mas também perturba as homeostases. Se existe alguma coisa que causa curto-circuito no equilíbrio dos significados de um sujeito é sua escolha amorosa, que pode se impor em contradição, em objeção com suas opções na vida (SOLER, 1995, p. 90).

Já adulto, em meio as suas inúmeras conquistas, uma ocupa o lugar de seu desejo – Alexandra. Justamente a moça máscula que seu amigo lhe diz para desistir dela. É a única que não dá bola pra ele. Freud, em Um tipo de escolha especial feita pelos homens destaca que a primeira amada impossível é a mãe, a qual precisamos desistir desse amor. A esse respeito Colette Soler afirma: “ora, o parceiro do amor, ‘uma mulher’ é, uma parceira, eleita, distinta dentre todas. Não que seja a única nem que seja para sempre, contudo, a eleita não é trocada todos os dias – algumas vezes é até conservada por toda a vida” (SOLER, 1995, p. 78). 
Alguns críticos colocam o nome do filme como sendo um pouco besta. Não sei o porquê da escolha desse nome ao filme. Pensei que pode ser para marcar a persistência de Damien quando deseja uma mulher, como uma marca em sua forma de amar infantil.
No mesmo dia em que conhece Alexandra, Damien bate literalmente a cabeça em um poste. E acorda em um mundo invertido. Neles, homens e mulheres tem seu papel trocado. Os homens são os sentimentais, as mulheres são fortes e potentes. Os homens se depilam, as mulheres usam ternos, o que evoca nossa riso. Alexandra, por sua vez, sua amada, o faz provar de seu próprio veneno enquanto objetifica os homens. Por ela, Damien passa a vestir-se como mulher com pernas de fora, depilando-se. Assim como outrora vestiu-se de branca de neve para ser olhado. Impossível não se lembrar do último hit de Chico Buarque, “Blues pra Bia” – “Até posso virar menina pra ela me namorar”. O amor é um semblante. Passamos pelo tortuoso caminho de “como chegam os homens a interessar-se pelo Outro sexo”, não de forma direta, mas sim, através de um semblante. (MONSENY, 2004). A esse respeito Lacan adverte:
O problema do amor é o da profunda divisão que se introduz no interior das atividades do sujeito. A questão de que se trata, para o homem, segundo a própria definição do amor – dar o que não se tem –, é dar aquilo que ele não tem, o falo, a um ser que não o é (LACAN, 1957-1958/1999, p. 364, grifos no original).

Quando damos o que não temos, fazemos um semblante de quem tem. Por outro lado, Lacan faz a partilha dos sexos em relação à suas posições de gozo, posições sexuadas do ser falante, todo fálico do lado masculino e não todo fálico do lado feminino. Assim, em psicanálise não se trata de anatomia (macho ou fêmea), nem à genética (XY e XX) nem aos semblantes sociais (Quinet, 2012). É comum inclusive encontrarmos casais em que a mulher ocupa a posição de toda fálica e o homem de não todo fálico. Com relação ao filme, podemos dizer que ambos ocupavam a posição de todo fálicos, de quem tem o falo?
Lacan, por sua vez, afirma que não haveria nada no psiquismo “pelo que o sujeito se pudesse situar com ser de macho ou ser de fêmea” (1964/1988, p. 194). Se por um lado não há quem diga para uma mulher como é ser mulher, por outro lado, segundo Lacan, o homem é ajudado pelo pai à mostrar os documentos que tem guardados no bolso. Nesse sentido o filme fica nos devendo. Nada mostra sobre seus pais antes da inversão de papeis.
Pela psicanálise, estar na posição feminina ou masculina é uma coisa, ter um homem ou mulher como objeto sexual é outra”. Por isso, Damien pode ocupar uma posição masculina e desejar uma mulher da mesma posição que ele.
Lacan, em Instância da Letra, ao inverter o algoritmo saussuriano, faz uso de duas portas com letreiro: homem e mulher. Deste modo o autor discorre sobre a soberania do significante em detrimento do significado. Em última instância, homem e mulher são apenas significantes que nos servem para clarear em que porta de banheiro devemos entrar, e o filme parece brincar com isso, porque afinal de contas, um significante pode significar qualquer coisa, inclusive que homem significa ser mulher (como conhecemos em nossa cultura) e que mulher significa ser homem.
De forma invertida o filme nos mostra o protagonista suplicando pelo amor de sua amada, que não quer saber dele. Digo de forma invertida porque na maioria dos casos são as mulheres que são objetificadas por um homem que não quer saber delas. Para marcar os desencontros do amor, para contrariar a perspectiva platônica presente no Banquete das duas metades que passam uma vida em busca uma da outra, para evidenciar que no amor não se trata do encaixe da tampa que procura por sua panela, Lacan utiliza da impactante frase:
 [...] não há relação sexual. É claro, assim parece um pouco maluco, um pouco disparatado. Bastaria dar uma boa trepada para me demonstrar o contrário. Infelizmente, é a única coisa que não demonstra absolutamente nada de semelhante, porque a noção de relação não coincide absolutamente com o uso metafórico que se faz, simplesmente, dessa palavra “relação”; “eles não tiveram relações”, não é exatamente isso (LACAN, 1971-1972/2000, p.21).
Ainda nesse sentido o autor complementa que se há algo possível na relação dos sujeitos é justamente o amor, que surgiria como suplência da falta primordial e estruturante desses, ou, dito nas palavras de Lacan: “o que vem em suplência à relação sexual [inexistente], é precisamente o amor” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 51).
         O desencontro amoroso aparece por toda parte no filme. Mesmo quando achamos que os personagens ficarão juntos, quando Damien pede Alexandra em casamento e surpreendentemente ela aceita, ele descobre que ela já é casada e assim parece sempre existir um muro entre os dois. Um exemplo de limite inerente ao sujeito e presente inclusive no amor em Lacan, pode ser ilustrado nos versos a seguir:
Entre o homem e o amor,
Existe a mulher.
Entre o homem e a mulher,
Existe um mundo.
Entre o homem e o mundo,
Existe um muro.[2]
(ANTOINE TUDAL, in LACAN, 1953/1998, p. 290).
Lacan utiliza dos versos de Antoine Tudal para resgatar o muro, o furo do amor. O autor ainda acrescenta um sétimo verso para tornar o poema circular, a saber, entre o homem e o muro existe uma letra de (a) muro[3], que em francês é homofônico à letra de amor. Ele continua para nos dizer que entre o homem e esse suposto mundo a conhecer, há um muro, o que Freud conceituou como a castração e na abordagem, sobretudo da diferença entre os sexos (FREUD, 1931/1996), para nos apontar que há uma barra, isto é, uma impossibilidade frente ao conhecimento absoluto a qual é inerente ao sujeito. Brunetto, nesse sentido, defende que “quando se diz haver um mundo entre o homem e o amor é para marcar que vocês nunca chegarão lá. […] O muro é o lugar da castração e Lacan concluiu que com relação ao homem e a mulher a castração está por todo canto” (BRUNETTO, 2013, p. 37).
O filme termina, sem nos deixar saber se eles conseguem ou não ficar juntos, e chegar lá, no bom encontro amoroso. Até porque felicidade parece ser antinôma de amor, como bem nos lembrou a peça de Nelson Rodrigues “Myrna sou eu”, em que Myrna – pseudônimo de Nelson – responde, em um programa de rádio, cartas enviadas pelas ouvintes, era um consultório sentimental. Em uma delas a ouvinte queixa-se de estar muito triste pois ama muito um homem que não quer saber dela. Ao que ele responde: "Não lhe basta amar? Você quer, ainda por cima, ser feliz?"



[1] “Essa expressão é utilizada por Schopenhauer (a partir do deus hindu Maia que representa a ilusão) para explicar o mundo fenomênico das aparências e das percepções que, para ele, seguindo uma tradição filosófica iniciada por Platão, se situa em oposição ao mundo escondido que seria o verdadeiro, o mundo em si. O sintoma escrito no véu de Maia está na cara, mas a sua verdade é escamoteada na medida em que sua constituição utiliza-se da propriedade da equivocidade do significante” (QUINET, 2003, p. 123). 
[2]Entre l’homme et l’amour, / Il y a la femme. / Entre l’homme et la femme, / Il y a un monde. / Entre l’homme et le monde, / Il y a un mur.
[3] Lettre, em Francês, é tanto letra quanto carta. E a letra “a” também significa o verbo ter na terceira do singular, o que torna a frase extremamente polissêmica. E novamente Lacan está jogando com amor e muro.

Marisa Costa é Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Brasil e do Ágora Instituto Lacaniano - MS.  Mestre em Psicologia pela UFMS.

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