de Silvia Helena Facó Amoedo
filme A Hora da Estrela - roteiro adaptado do romance homônimo de Clarice Lispector
filme A Hora da Estrela - roteiro adaptado do romance homônimo de Clarice Lispector
Macabéa:
uma promessa de ser
Só
no ato do amor - pela límpida abstração de estrela
do que se sente
- capta-se a incógnita do instante...
Clarice
Lispector
Freud
afirma que “os escritores criativos são aliados muito valiosos,
pois eles costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu
e a terra com as quais a nossa vã filosofia ainda não nos deixou
sonhar”. Clarice Lispector concebe a obra de arte como uma loucura
diferente, um ato de loucura o qual germina como não-loucura e abre
caminho.·.
A
hora da estrela é
um livro feito sem
palavras, como diz o narrador da história. É uma fotografia muda,
um silêncio; enfim, é uma pergunta, que
me conduziu, a partir
da história da protagonista, Macabéa,
história de uma
inocência pisada,
de uma miséria
anônima,
a formular algumas
observações sobre a constituição do sujeito em referência àquilo
que o causa, o objeto
a, objeto causa do desejo.
O objeto a
foi introduzido por Lacan para designar o objeto desejado pelo
sujeito, não é um objeto do mundo. Não
é representável como tal: ele é inarticulável na palavra,
é
uma letra fora da fora da cadeia significante. No entanto pode ser
identificado como falta-a-ser, ou sob a forma de fragmentos
perdidos do próprio corpo - o seio, as fezes, a voz e o olhar.
perdidos do próprio corpo - o seio, as fezes, a voz e o olhar.
Clarice
Lispector descreve o inexpressivo que sempre foi a sua busca cega e
secreta, e nos conta como entrou naquilo que existe entre o número
um e o número dois, como viu a linha de mistério e fogo, que é
linha sub-reptícia. Diz ela:
Entre duas notas de
música, existe uma nota, entre dois fatos, existe um fato, entre
dois grãos de areia, por mais juntos que estejam, existe um
intervalo de espaço.
O
sujeito, segundo Lacan, constitui-se no campo do Outro e só é
representado num intervalo de espaço, por um significante para outro
significante, pois “o significante se produzindo no campo do Outro
faz surgir o sujeito de sua significação. Mas, ele só funciona
como significante reduzindo o sujeito em instâncias, a não ser mais
que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com que o
chama a funcionar, a
falar, como sujeito”.
Assim como uma
fotografia muda, o
sujeito exilado de sua subjetividade “ex-siste”, ou seja, quando
aparece como sentido em um lugar, em outro desaparece, e o objeto
a
é causa da divisão
do sujeito, é o que resta de irredutível nesta operação de
separação entre dois: o Outro e o sujeito. É uma perda do próprio
corpo, antes mesmo de existir. Por isso o sujeito não sabe qual
objeto a
ele é para o Outro e
se pergunta, como condição absoluta de existência: “O que quer o
Outro de mim?”- pergunta para qual não há
resposta, restando
apenas o silêncio de ser.
Caminharei,
para falar do sujeito, com a protagonista Macabéa, seus encontros e
desencontros com José Olímpico de Jesus, passando por Glória - a
conexão da personagem com o mundo – e, finalmente, chegando ao
último encontro, com a cartomante, quando Macabéa é atropelada
pela promessa de ser.
Sobre
a vida pregressa dessa moça, conta-se que nascera de maus
antecedentes, fruto de um cruzamento de o quê com o quê,
de uma idéia vaga, e que já não sabia mais ter
tido pai e mãe. Tinha esquecido os seus nomes e o gosto de
tê-los. Desamparada no mundo, nada sabia do seu não saber, da sua
história, do seu lugar. Quando criança perdera o apetite,
conservando, como sua única paixão, a descoberta do sabor de
goiabada com queijo, interditados, muitas vezes, como castigo, pela
tia, encarrega de sua educação após a morte de seus pais.
Para
além da satisfação da necessidade, o que o sujeito demanda é o
amor. E dar amor, segundo Lacan “é não dar nada que se tenha,
pois é justamente por não se ter que se trata de amor”. No
mais-além da demanda - demanda incondicional de amor -, encontra-se
o desejo, com sua excentricidade em relação à satisfação. Em
última instância, “aquilo com que o desejo confina [...], em sua
forma pura e simples, é a dor de existir”.
Sem
saber o porquê, Macabéa foi morar no Rio de Janeiro, ocasião em
que conheceu José Olímpico de Jesus e, sem saber que sabia, soube o
que era desejo: fome - mas não de comida -, o
não-sei-o-quê.
“O desejo, seja ele qual for, em estado de desejo puro, é algo
que, arrancado do terreno das necessidades, ganha uma forma de
condição absoluta em relação ao Outro. Ele é a margem, o
resultado da subtração, por assim dizer, da exigência da
necessidade em relação à demanda”.
É
na angústia da dor de existir que Macabéa atenua com aspirina a sua
história feita pelo quase-nada
que
ultrapassa as palavras,
por
um sopro
de
vida quase ilimitado.
Macabéa depara-se com a questão do ser:
Quem
sou eu?
Interroga -se. E, hesitante a respeito do seu ser, diz:
já que sou, o jeito é ser. Não sei bem o que sou, me acho
um
pouco... De quê? Quer dizer... não sei bem
quem
sou.
Sou
datilógrafa e virgem, e gosto de coca - cola.
Enquanto sujeito, Macabéa é diferente de como se enuncia. É um
efeito do significante, sem substância, só podendo ser representado
assim, como eclipse de uma estrela binária, no apagamento
instantâneo de uma estrela por outra.
Macabéa
não sabe o que está dentro do seu nome; sabe apenas que o recebeu
devido a uma promessa feita por sua mãe a Nossa Senhora da Boa
Morte, para que ela alcançasse o seu fim, a vida. Conheceu, desde o
nascimento, a morte, ainda que sob a forma de desconhecimento, o que
a fez acreditar que ela seria diferente, que nunca morreria. Seu
próprio nome aponta para um contraste, pois ela não se aproxima em
nada da índole heróica dos lutadores macabeus. O nome da
personagem, ao ser, algumas vezes, referido pelas sílabas iniciais –
Maca –, mantém uma analogia com o fato de que Macabéa seria -
quer no plano metafórico (pela doença, pobre, sem conhecimento)
quer no plano efetivo, conforme se concretiza no final do texto -
portadora da morte.
Com
a promessa de morte inscrita em seu nome pelo desejo materno, a única
coisa que lhe restava era garantir a sua vida inspirando e, ao mesmo
tempo expirando
a vida, sem se indagar o porquê, como se o mundo fosse fora dela e
ela fora do mundo. Saber o porquê afastava Macabéa da vida,
aproximando-a da morte.
Desse
modo, dentro ou fora da vida, ela
falava, sim,
mas
era extremamente muda:
muitas vezes não perguntava com palavras, apenas com os olhos,
porque sabia que não havia respostas, senão: é
assim
porque
é assim,
e assim vivia defendendo-se da morte com um viver de menos.
Gostava
de ruídos, de anúncios comerciais, do tic-tac-tic-tac, dos sons das
coisas, sons que a protegiam do determinismo que lhe imprimiam as
palavras vindas do Outro, que interpelam o sujeito, fazendo-o dizer
mais do que pretende.
A
realidade
inacessível
de Macabéa era demais para ser (a)creditada, embora a moça
acreditasse em tudo - o
que existia e o que não existia.
Macabéa não tinha: era simplesmente desprovida. E sua falta
apontava para a falta de José Olímpico de Jesus, que,
representando-se como vence(dor) tentava preencher a falta de
Macabéa. Ele
falava coisas
grandes,
mas
ela só prestava atenção em coisas insignificantes como ela.
Insignificâncias que constituíam o seu esplendor de estrela
cadente.
Macabéa
insistia com suas perguntas sem respostas, ou seja, demandava amor –
“demanda daquilo que não é nada, nenhuma satisfação particular,
demanda do que o sujeito introduz por pura e simples resposta à
demanda". Ao endereçar a sua demanda a José Olímpico, a moça
tornava-se alguém e, com suas questões sem respostas, punha-o no
lugar de causa de seu desejo, equivocando-o em seu saber suposto. O
que queria saber Macabéa com suas perguntas? O acesso ao desejo não
é pela referência ao objeto, porque não há intersubjetividade.
Ela buscava em José Olímpico o lugar de seu desejo na medida do que
lhe faltava e ele não sabia. Ele, ao responder as perguntas de
Macabéa com a falta, pois não sabia, apontava para ela o lugar do
desejo e o seu enigma. José Olímpico de Jesus compara Macabéa com
um cabelo na sopa, o qual tira a vontade de comer. Assim, sai da
vida da moça sem desvelar o seu enigma, o seu sexo, a sua marca, a
sua sensualidade lasciva, atrofiada - como os seus ovários -,
nascida
como um girassol num túmulo,
enfim,
a sua feminilidade.
Macabéa
era feliz porque achava que a pessoa era obrigada a ser feliz. Vivia
imaginariamente de si mesma. Na separação, deparou-se com a dor de
existir, com a falta no/do Outro, reconhecendo que o Outro é barrado
e que nunca vai poder preenchê-la. O Outro não é completo.
Glória,
a mulher desejada por José Olímpico, despertava, com sua gordura, o
ideal secreto de Macabéa: a formosura. Com a separação de José
Olímpico de Jesus, Glória tornou-se a sua ligação com o mundo, e
por intermédio dela, Macabéa foi buscar o seu destino nas cartas.
Era a primeira vez em que vislumbraria um futuro.
Macabéa
supõe que a cartomante tenha o saber sobre o seu desejo e a põe na
posição de sujeito suposto saber, para responder a sua questão:
quem sou eu? A cartomante ocupa o lugar do Outro e responde
com promessas de completude à demanda de amor endereçada por
Macabéa. O objeto causa do desejo do sujeito não pode ser
articulado na palavra, mas, para além da cartomante, Macabéa capta
a incógnita do instante e é atropelada pela promessa de ser.
Em
resposta ao tudo, já não mais existe como sujeito do desejo,
sujeito dividido por estrutura, porque tudo é um oco nada.
Assim, desvela-se a sua falta-a-ser, e dessa forma, a verdade
que existe anteriormente ao sujeito extingue-se no saber. No âmago
do seu ser, Macabéa verbaliza a(s) última(s) palavra(s): eu sou,
eu sou, eu sou.
Silvia
Helena Facó Amoedo é Psicanalista.
Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano –
Brasil / Fórum Natal. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal
do Ceará.
Um comentário:
Fantástico filme pra análise.
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