de
Olivan Liger
Escrever
sobre o filme “Amor” na tentativa de fazer uma análise do seu
conteúdo sob uma perspectiva psicanalítica começa pela sensação
que senti ao deixar a sala de projeção: algo incômodo e
inquietante... algo que não se traduz, indizível por si só... que
não se simboliza, mas dilacera... dilacerante como o próprio filme.
Algo que induz a uma inquietação silenciosa, sombria que me fez,
por minutos, me sentir sem saber se descia ou subia a Rua Augusta e
onde tinha deixado meu carro.
Um
filme de Michael Haneke para ser engolido a seco... sem trilha
sonora...longas pausas escuras de espera, como a vida é. Um filme
que fala de amor, de vida e de morte... ou melhor, um filme que fala
do amor que permeia a vida e a morte.
“Se
começo (e termino) pelo amor, é que o amor é para todos, por mais
que o neguem, a grande coisa da vida” (Baudelaire): é o começo
quando o amor que faz suplência à relação sexual; é o meio
através das repetições e tentativas de aprisionar o amor perdido
nos primórdios, é o prêmio que nos é conferido quando aprendemos
a conviver socialmente e também é o fim... quando não há mais
saída e nos submetemos à castração final... é ai que buscamos
reconciliar com o mundo e confessar os amores não ditos por uma vida
toda, portanto o amor permeia a vida e a morte. O amor é a promessa
daquilo que falta.
O
filme começa mostrando um casal, Anne e George, que se confunde numa
platéia de um concerto de um ex-aluno de Anne. O amor vai se
delineando no filme nas cenas que mostram o cuidado e gentileza de um
para com o outro, no deleite pela música, pelo bom vinho e na
cumplicidade expressa no olhar profundo e amoroso, no compartilhar um
apartamento parisiense onde cada tela na parede, cada cd ou livro na
estante articula a história desse casal.
A
história vai se revelando e mostrando o casal de aposentados,
desfrutando a vida e o amor (um pelo outro, pela música, pela vida)
e lentamente vai escancarando a precariedade da ordem do humano
através da lenta aproximação de Thanatos cumprindo a máxima: A
finalidade de toda a vida é a morte.
Inseparável companheiro de Eros, um não pode existir sem o outro,
assim como George parece não poder existir sem Anne. Thanatos é o
invasor metaforizado na tentativa de arrombamento do apartamento. É
o que invade, que chega de surpresa ou furtivamente para tirar algo
do outro, é sempre o desconhecido... aparece também no sonho de
George, no qual alguém chama à sua porta, mas é alguém que não
pode ser visto, que não pode ser representado, alguém que lhe toma
de surpresa levando-o ao terror.
O
filme pode ser dividido em três partes distintas, mas interligadas:
o casal octagenário saudável e desejante num primeiro momento e em
flashes de lembranças durante o filme; o segundo momento inicia-se
com a primeira isquemia de Anne, a dificuldade de aceitar sua
limitação, seu isolamento e dependência relativa; e o momento
final na qual a perda da fala, a perda do controle dos esfincteres e
a entrada da metáfora delirante parece mostrar momentos que oscilam
entre a cessação do desejo e a expressão do mesmo, a vida começa
a se esvair do corpo e o desejo do psiquismo.
A
cena inicial do filme é justamente o seu fim ilustrando que o ínicio
da vida, o princípio de nirvana perdido é algo a ser encontrado no
final. Tudo começa onde tudo termina ou tudo termina onde tudo
começa.
O
casal é tomado de surpresa por algo que se interpõe ao desejo: a
primeira isquemia de Anne e as sequelas de sua cirurgia. Anne pede a
George que prometa não levá-la mais a um hospital. Compromete
George através do Amor. Mas sendo o amor uma promessa de algo que
não se tem, Anne, diante da limitação física, implícita na
promessa que pede de George, a segurança que lhe falta diante da sua
limitação. A dificuldade de Anne em aceitar sua limitação é
perfeitamente compreensível diante do trauma, da surpresa daquilo
que não se espera e que torna o sujeito impotente e incapaz de
evitar. É o momento em que Anne se perde e se torna a própria
doença, esquiva-se de falar sobre si mesma, isola-se e parece não
se dar conta do que realmente lhe aconteceu. Tenta resgatar sua
independência deixando a cadeira de rodas quando George está no
funeral do amigo Pierre e caída no chão do vestíbulo é encontrada
por George. É nesse momento que Anne é chamada a confrontar a sua
finitude. Pede a George que lhe conte sobre o funeral de Pierre... um
funeral bizarro, desorganizado, cheio de improvisos, constrangedor...
um funeral que se assemelha ao seu estado... Ao se dar conta de si,
Anne diz: - “ Não há razão para continuar vivendo”. Ainda um
sujeito desejante, que vislumbra na antecipação da morte a saída
para sua impotência diante da própria finitude.
A
vida é vivida através das lembranças da infância de George e dos
álbuns de fotos de Anne. Uma vida virtual na impossibilidade do
resgate do momento anterior à enfermidade.
O
momento final começa com a perda do controle dos esfincteres e uma
segunda isquemia que toma de Anne a palavra falada; aquela que
mediava a relação de Anne e George; que em forma de sussurros
apaziguava a angústia da filha Eva, assegurando-lhe a união dos
pais; que convocava um ao outro e que nos momentos finais de Anne, a
palavra de George era um apaziguador para algo que doía. E na
metáfora delirante, Anne repetia várias vezes - “dói...dói”,
mas o que doía não era físico, talvez por ser indizível, estar
fora da representação do inconsciente, nenhuma outra palavra foi
encontrada para contar sobre a proximidade da morte. O casal se isola
do mundo externo sugerindo uma estase da libido. A pulsão é
oscilante e frágil, a dependência do outro é total, a dor de um é
a dor do outro, o delírio de Anne se torna o delírio de George
quando asfixia Anne para evitar a dor... a dor supostamente sentida
por Anne diante da sua impotência? Ou a sua própria dor diante do
vislumbre da morte psíquica da amada? A morte física se torna uma
opção para evitar a dor da morte psíquica.
A
respiração que é o primeiro ato de independência do ser humano é
também a razão da sua morte quando desta privado (ou privado da sua
independência relativa?)
E
qual é o amor que o filme nos propõe ver? Este significante que
une vida e morte está presente na filosofia, na antropologia, na
psicologia, na psicanálise e em todas as ciências humanas.
Para
a sacerdotisa do amor, Diotima de Mantinéia, Eros é um
intermediário entre os homens e os deuses, era sua função
interpretar e transmitir aos deuses o que vinha dos homens e aos
homens o que vinha dos deuses. Eros era o que completava o todo
unindo as partes. O amor não se dirigia ao belo, mas a geração e a
gênese do belo. Para Bauman, não é desejando o belo que o amor se
manifesta, mas encontra seu significado no estímulo de participar da
gênese das coisas, do belo, o amor é visto como a transcendência.
E quando esta possibilidade de vivenciar o amor é tomada, a vida se
extingue.
Para
George, o amor transcende... transcende a vida física quando veste e
enfeita o corpo sem vida de Anne. Quando amando, delira. Um amor que
se constitui pela falta. O filme nos propõe ver Amor e não o amor.
trailer oficial "Amor"
link para assistir filme completo:
http://www.filmesonlinegratis.net/assistir-amor-legendado-online.html
http://www.filmesonlinegratis.net/assistir-amor-legendado-online.html
Olivan
Liger, psicanalista, presidente do ILPC - Instituto Latino americano
de Psicanálise Contemporânea, analista e supervisor institucional.
Autor da obra: "Um olhar psicanalítico sobre a
contemporaneidade e suas emergências" - Ed. Livre Expressão,
RJ.
Um comentário:
Muito bom e real na relação de vida e morte. Adorei e recomendo
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