De acordo com o dicionário da
língua portuguesa Houaiss, sonata consiste em uma composição
musical para um ou dois instrumentos (esp. para instrumentos de
teclado), constituída de três movimentos que se relacionam quanto à
tonalidade e contrastam quanto ao andamento, ao modo e à forma de
expressão.
Três mulheres, três histórias
e três formas de expressão diferentes. A esperança de um encontro
(eu-com-Outro) idealizado que, ao longo do filme, parece nunca
acontecer como o almejado: “o que ela espera após 7 anos? E eu? A
esperança não acaba? Sempre mãe e filha!” (Eva).
No outono de Bergman, não
somente as plantas e as folhas secas, mas também as máscaras vão
caindo e nos colocando, pouco a pouco, frente a um Real que vai
adquirindo consistência. Eu, num primeiro momento, emudeço diante
desse encontro.
Um filme intenso, provocante,
Sonata de Outono retrata os encontros e desencontros da relação
entre Eva, Charlotte e Helena. Nada fácil a tarefa de comentar esse
filme, nele a falta faz questão, aliás, a falta é uma questão. E
por esse território pretendo me adentrar.
Somos conduzidos ao concerto
por Viktor que produz os primeiros acordes. Ele fala sobre a sua
dificuldade em expressar seu amor pela esposa: “eu não saberia
dizer de um jeito que a fizesse acreditar...não encontro as palavras
certas”. Mas existem palavras certas para expressar os sentimentos?
Teríamos aí indícios de uma
idealização, como se existisse um saber fazer que nos desse
garantias, que nos colocasse numa posição de controle das
situações?
Nosso encontro com Eva
acontece ao som de suas palavras endereçadas a Charlote: “mamãe
venha e encontrarás espaço, privacidade, conforto, um piano e
mimos”. Interessante observar que no convite de Eva, o que fica
para mim é venha que atenderei todos os seus desejos. Hum, tarefa
impossível até mesmo para o gênio da lâmpada que sabiamente
limitou os desejos a três.
Bergman usufrui da
possibilidade oferecida pela linguagem imagética do cinema,
enfatizando as expressões faciais e os olhares. Mas uma tomada de
câmera me chama a atenção. Enquanto o carro de Charlote se
aproxima da casa de Eva, um breve foco é dado em uma roseira que
contrasta com a paisagem árida. O que estaria ali simbolizado? O que
isso faz pensar?
O encontro entre Eva e
Charlote finalmente acontece após 7 anos, mas de que encontro
estaria eu falando? Pois logo nos primeiros momentos, o que fica em
evidencia para mim é que não seria algo tão simples assim.
Charlote chega “tomando para si todas as palavras da casa” ao
passo que Eva vai se colocando numa posição de espelho do
narcisismo materno, reconhecendo, testemunhando e admirando. Aliás,
me ocorre agora que talvez Eva já tenha corrido para esse lugar,
assim que escrevera a carta para a mãe.
A presença de Helena é
anunciada. Impactada, Charlote diz não estar disposta a vê-la, mas
alegando falta de opção, se dirige ao quarto da filha. A suposta
alegria e as promessas de companhia e passeios se intercalavam com o
silêncio e o olhar apavorado de Charlote: “eu senti a doença
contraindo os
músculos de seu
pescoço...aquele corpo mole e deformado é a minha Lena!” Um breve
encontro com o Real?
“Que
mãe extra-ordinária! Ela encarnou a atriz e fez uma atuação
impecável!” diz Eva ao compartilhar com Viktor suas impressões do
encontro entre a irmã e a mãe.
Helena parece contar sua
história através do seu corpo - a doença, as expressões faciais,
os movimentos limitados e os sons que se assemelham a grunhidos.
A noite cai, Charlote dorme em
seu quarto de princesa, preparado pela súdita Eva, mas produz um
pesadelo que interrompe seu sono. A partir daí, outro pesadelo vai
se configurando bem diante de seus olhos, dessa vez, abertos! Eva
começa a visitar o passado e derrama sobre Charlote todo seu ódio,
sua mágoa, seu abandono, seus anseios.....hum sua falta!, num
“discurso cobrança”. Eva parece não metaforizar a falta e ficar
presa na demanda: “olhe para mim, olhe para Helena, não há
perdão....só existe uma verdade” (Eva). Uma verdade?
Imediatamente me vejo pensando
na questão da demanda de amor. Amor (não no sentido romântico),
mas no sentido narcísico, de reconhecimento, de completude. Um
tremendo engano, uma vez que a completude narcísica é uma ilusão e
a demanda infinita. Bom, então algo sempre faltará?
A falta é constituinte, ela
funda o desejo e a questão do desejo é não ter um objeto
específico que o satisfaça plenamente. O objeto do desejo para
Freud é um objeto perdido, que desliza infinitamente numa cadeia
marcada pela falta e que continua presente como falta. Ele não
constitui algo da ordem do concreto que se oferece ao sujeito e sim
da ordem do simbólico. Antes de ascender ao plano
do simbólico o desejo se realiza no plano do imaginário
(GARCIA-ROZA, 2002).
A falta que suscita o desejo
persiste a conquista do objeto desejado e o sujeito segue desejando:
“eu me sinto tão deslocada, tenho saudade de casa, mas quando
chego, vejo que eu sinto saudade de alguma outra coisa” (Charlote).
Ao longo do filme, Charlote me
pareceu sob o efeito de “um anestésico” que fazia barreira ao
sofrimento, mas tudo que precisa ser visto e elaborado dava notícias
a cada vez que o efeito passava, “estou morta de medo e vejo uma
imagem terrível de mim mesma....eu adquiri lembranças e
experiências, mas com tudo isso, eu nem cheguei a nascer”
(Charlote).
E então, uma nova dose “de
anestésico” permitia que ela emergisse triunfante: “você
precisa ser calma, precisa e firme, controle total o tempo todo”
(Charlote).
A trama do filme me fez pensar
na relação mãe e filha. Que relação é essa? Nessas horas em que
me ponho a divagar, vou conversar com Freud. Lacan estava por perto e
acabou opinando também. Eles foram me contando que o bebe humano
nasce numa situação de desamparo tal, que necessita de um Outro que
intermedeie a relação com o objeto, que vá o inserindo na
linguagem, que decodifique as demandas que são expressas no corpo.
A mãe, enquanto função
materna, constitui o que Lacan denominou de o primeiro Outro do bebe.
O que eu sei de mim e do meu eu, vem do Outro, sendo um lugar no qual
me alieno para depois me separar.
Antes de a mãe engravidar, o
bebe já foi falado por ela, já tem um lugar que podemos chamar de
acolhimento simbólico e que se relaciona a um lugar no desejo do
Outro.
O bebe humano tem a ilusão de
completar a mãe, mas sendo uma mãe marcada pela castração, algo
sempre faltará.
O investimento da mãe na
criança passa por seu próprio narcisismo. O amor dos pais, escreveu
Freud em 1914, tão comovedor e no fundo tão infantil, não é outra
coisa senão seu narcisismo renascido, que, a despeito de sua
metamorfose em amor de objeto, manifesta inequivocamente sua natureza
anterior.
Em seguida, ainda com Freud,
pensei na questão da identificação, que constitui a forma mais
primitiva e original de laço social, que ocorre antes mesmo de
qualquer escolha sexual de objeto, havendo um esforço de moldar o
próprio eu com base naquele que foi tomado como modelo “....eu
falava o que você mandava e imitava o seu jeito...eu não me atrevia
a ser eu mesma nem quando eu estava sozinha... eu detestava tudo que
era meu” (Eva).
Pontalis afirma que não se
pode mudar de mãe, de onde vem a vontade, até mesmo a obstinação,
de mudar a mãe. Na clínica encontro algumas mulheres com um
sofrimento brutal por ficarem coladas na posição de satisfazer as
infindáveis demandas de amor do Outro: “nada que eu faça parece
estar bom para ela”, “sinto um vazio em relação a mim, não
consigo me ver, me sentir, me priorizar, vou ficando de lado”.
Mãe e filha, ampliando, eu e o
outro, que encontro! Que encontro? “Que mistura incrível de
sentimentos. Tudo é possível e tudo se faz por amor” (Eva)...
será?
Bom, interrompo aqui na
certeza de tudo o que ainda ficou por dizer, mas como bem disse, algo
sempre falta!
Sonata de Outono - trailer
Aline Elizabeth Marino Oliveira é praticante da psicanálise, psicóloga clínica, coordenadora de projetos sociais em psicoterapia na ABRAPE.
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