sábado, 16 de novembro de 2013

DO FILME “AMOR”; DAQUILO QUE PERMEIA A VIDA E A MORTE.

de Olivan Liger

     Escrever sobre o filme “Amor” na tentativa de fazer uma análise do seu conteúdo sob uma perspectiva psicanalítica começa pela sensação que senti ao deixar a sala de projeção: algo incômodo e inquietante... algo que não se traduz, indizível por si só... que não se simboliza, mas dilacera... dilacerante como o próprio filme. Algo que induz a uma inquietação silenciosa, sombria que me fez, por minutos, me sentir sem saber se descia ou subia a Rua Augusta e onde tinha deixado meu carro.
Um filme de Michael Haneke para ser engolido a seco... sem trilha sonora...longas pausas escuras de espera, como a vida é. Um filme que fala de amor, de vida e de morte... ou melhor, um filme que fala do amor que permeia a vida e a morte.

     “Se começo (e termino) pelo amor, é que o amor é para todos, por mais que o neguem, a grande coisa da vida” (Baudelaire): é o começo quando o amor que faz suplência à relação sexual; é o meio através das repetições e tentativas de aprisionar o amor perdido nos primórdios, é o prêmio que nos é conferido quando aprendemos a conviver socialmente e também é o fim... quando não há mais saída e nos submetemos à castração final... é ai que buscamos reconciliar com o mundo e confessar os amores não ditos por uma vida toda, portanto o amor permeia a vida e a morte. O amor é a promessa daquilo que falta.

    O filme começa mostrando um casal, Anne e George, que se confunde numa platéia de um concerto de um ex-aluno de Anne. O amor vai se delineando no filme nas cenas que mostram o cuidado e gentileza de um para com o outro, no deleite pela música, pelo bom vinho e na cumplicidade expressa no olhar profundo e amoroso, no compartilhar um apartamento parisiense onde cada tela na parede, cada cd ou livro na estante articula a história desse casal.
      A história vai se revelando e mostrando o casal de aposentados, desfrutando a vida e o amor (um pelo outro, pela música, pela vida) e lentamente vai escancarando a precariedade da ordem do humano através da lenta aproximação de Thanatos cumprindo a máxima: A finalidade de toda a vida é a morte. Inseparável companheiro de Eros, um não pode existir sem o outro, assim como George parece não poder existir sem Anne. Thanatos é o invasor metaforizado na tentativa de arrombamento do apartamento. É o que invade, que chega de surpresa ou furtivamente para tirar algo do outro, é sempre o desconhecido... aparece também no sonho de George, no qual alguém chama à sua porta, mas é alguém que não pode ser visto, que não pode ser representado, alguém que lhe toma de surpresa levando-o ao terror.

    O filme pode ser dividido em três partes distintas, mas interligadas: o casal octagenário saudável e desejante num primeiro momento e em flashes de lembranças durante o filme; o segundo momento inicia-se com a primeira isquemia de Anne, a dificuldade de aceitar sua limitação, seu isolamento e dependência relativa; e o momento final na qual a perda da fala, a perda do controle dos esfincteres e a entrada da metáfora delirante parece mostrar momentos que oscilam entre a cessação do desejo e a expressão do mesmo, a vida começa a se esvair do corpo e o desejo do psiquismo.

     A cena inicial do filme é justamente o seu fim ilustrando que o ínicio da vida, o princípio de nirvana perdido é algo a ser encontrado no final. Tudo começa onde tudo termina ou tudo termina onde tudo começa.
       O casal é tomado de surpresa por algo que se interpõe ao desejo: a primeira isquemia de Anne e as sequelas de sua cirurgia. Anne pede a George que prometa não levá-la mais a um hospital. Compromete George através do Amor. Mas sendo o amor uma promessa de algo que não se tem, Anne, diante da limitação física, implícita na promessa que pede de George, a segurança que lhe falta diante da sua limitação. A dificuldade de Anne em aceitar sua limitação é perfeitamente compreensível diante do trauma, da surpresa daquilo que não se espera e que torna o sujeito impotente e incapaz de evitar. É o momento em que Anne se perde e se torna a própria doença, esquiva-se de falar sobre si mesma, isola-se e parece não se dar conta do que realmente lhe aconteceu. Tenta resgatar sua independência deixando a cadeira de rodas quando George está no funeral do amigo Pierre e caída no chão do vestíbulo é encontrada por George. É nesse momento que Anne é chamada a confrontar a sua finitude. Pede a George que lhe conte sobre o funeral de Pierre... um funeral bizarro, desorganizado, cheio de improvisos, constrangedor... um funeral que se assemelha ao seu estado... Ao se dar conta de si, Anne diz: - “ Não há razão para continuar vivendo”. Ainda um sujeito desejante, que vislumbra na antecipação da morte a saída para sua impotência diante da própria finitude.
     A vida é vivida através das lembranças da infância de George e dos álbuns de fotos de Anne. Uma vida virtual na impossibilidade do resgate do momento anterior à enfermidade.

     O momento final começa com a perda do controle dos esfincteres e uma segunda isquemia que toma de Anne a palavra falada; aquela que mediava a relação de Anne e George; que em forma de sussurros apaziguava a angústia da filha Eva, assegurando-lhe a união dos pais; que convocava um ao outro e que nos momentos finais de Anne, a palavra de George era um apaziguador para algo que doía. E na metáfora delirante, Anne repetia várias vezes - “dói...dói”, mas o que doía não era físico, talvez por ser indizível, estar fora da representação do inconsciente, nenhuma outra palavra foi encontrada para contar sobre a proximidade da morte. O casal se isola do mundo externo sugerindo uma estase da libido. A pulsão é oscilante e frágil, a dependência do outro é total, a dor de um é a dor do outro, o delírio de Anne se torna o delírio de George quando asfixia Anne para evitar a dor... a dor supostamente sentida por Anne diante da sua impotência? Ou a sua própria dor diante do vislumbre da morte psíquica da amada? A morte física se torna uma opção para evitar a dor da morte psíquica.
     A respiração que é o primeiro ato de independência do ser humano é também a razão da sua morte quando desta privado (ou privado da sua independência relativa?)

     E qual é o amor que o filme nos propõe ver? Este significante que une vida e morte está presente na filosofia, na antropologia, na psicologia, na psicanálise e em todas as ciências humanas.
   Para a sacerdotisa do amor, Diotima de Mantinéia, Eros é um intermediário entre os homens e os deuses, era sua função interpretar e transmitir aos deuses o que vinha dos homens e aos homens o que vinha dos deuses. Eros era o que completava o todo unindo as partes. O amor não se dirigia ao belo, mas a geração e a gênese do belo. Para Bauman, não é desejando o belo que o amor se manifesta, mas encontra seu significado no estímulo de participar da gênese das coisas, do belo, o amor é visto como a transcendência. E quando esta possibilidade de vivenciar o amor é tomada, a vida se extingue.

     Para George, o amor transcende... transcende a vida física quando veste e enfeita o corpo sem vida de Anne. Quando amando, delira. Um amor que se constitui pela falta. O filme nos propõe ver Amor e não o amor.

trailer oficial "Amor"
Olivan Liger, psicanalista, presidente do ILPC - Instituto Latino americano de Psicanálise Contemporânea, analista e supervisor institucional. Autor da obra: "Um olhar psicanalítico sobre a contemporaneidade e suas emergências" - Ed. Livre Expressão, RJ.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom e real na relação de vida e morte. Adorei e recomendo