A Retomada do Cinema Brasileiro : 3º capítulo da mini-série
de Christian Ingo Lenz Dunker
Podemos dizer que o Brasil pós-inflacionário gestou um
novo tipo social, que o cinema soube captar antes de sua consagração
sociológica, a saber, o batalhador, ou a nova classe trabalhadora.
Segundo Jessé Souza1,
este novo tipo social se caracterizaria pela inclinação
para a auto-superação. Retenhamos o nome
escolhido para designar este movimento maciço de ascensão
social: batalhador, o
que nos remete à retórica da guerra e do confronto diário e
continuado, cujo resultado é obtido por meio de ação planejada. O
batalhador possui elevado senso de sacrifício para projeção dos
filhos e para a ascensão, condição necessária para a disciplina
de poupança e economia integrada a uma visão negocial da vida capaz
de gerar um senso permanente de orientação para o futuro. Esta
disposição ascética requer uma orientação para bens de consumo
superiores, uma qualificação dos atos de consumo que implica em
adiamento da satisfação como virtude. A importância atribuída à
aprendizagem pela experiência e sua transmissão as descendentes e
aos membros da comunidade estendida reforça o senso de solidariedade
e lealdade com o passado assim como consolida a família como unidade
de produção compartilhada. Inversamente a família organiza-se me
torno da construção de uma imagem positiva, da disposição para
fazer-se de exemplo e para reconhecer a importância do exemplo. Mas
não se trata de uma família hierarquizada ou centralizada em torno
da figura ou das expectativas que recairiam sobre o pai. Como lugar
de convergência entre o poder econômico e a força moral. A família
é antes uma unidade de produção e um laço regido por trocas e
divisões de esforços e favores, ou seja, é o que Lacan chamaria de
discurso do mestre o que faz a função de distribuir posições e
dívidas.
Entre a posição dos novos batalhadores temos de um
lado a antiga classe média que vive momentos de insegurança
crescente, não apenas do fantasma da proletarização, mas também
da crise que demanda novos esforços de identificação. Do outro
lado encontramos o significativo contingente de miseráveis que
passam a integrar a posição do que Jessé de Souza chamou de
“ralé”, ou seja, que consegue se incluir em padrões mínimos de
consumo e cidadania. O batalhador exprime assim uma nova modalidade
subjetivação na qual o trabalho adquire uma centralidade inovadora.
Sua própria existência questiona a posição daqueles que obtém e
exibem signos de status social, sem que possam apresentar as
credenciais de sua obtenção por meios dotados de valor. No espaço
de 20 anos o Brasil aprendeu que é preciso justificar a riqueza e
que a ascensão social destituída de uma história que a legitime
pode ser tão suspeita ou condenável quanto a exclusão e a
invisibilidade.
Disso infere-se, em escala invertida, novas narrativas
de sofrimento e novos tipos de sintomas, inicialmente caracterizada
pelo exagero ou pela suspensão das disposições psíquicas
associadas a tal forma de vida. De fato é o que ocorre quando
encontramos a desarticulação da gramática do sacrifício, ou seja,
da violação do pacto subjetivo, expressa nas atitudes de cinismo,
de excesso de instrumentalização das relações, de corrupção,
trapaça, suspeição da fidelidade com relação às origens. Aqui a
violência cumprirá um papel restitutivo, assumindo uma função
trágica de lembrança e de retorno. O temor de que aquilo que se
adquiriu com muita disciplina, mas não sem o concurso da fortuna,
pode igualmente ser perdido, mostra-se em uma permanente crítica de
si e de prevenção diante das ilações desejantes que podem
arrastar o sujeito para uma “vida de dissipações”. A dívida
simbólica torna-se assim uma dívida impagável, sendo seu
incremento e reposição, parte da filiação que se espera do
batalhador. Gratidão sem fim, privações auto-impostas, masoquismo
moral, são efeitos clínicos desta espécie de gramática do
sacrifício que se torna a mímese perfeita das estratégias de
reconhecimento e de demanda.
Durval Discos |
O segundo tipo de temor que colide com as aspirações
do batalhador ou da nova classe média brasileira são as patologias
do consumo e sua inevitável associação com a aparição de um
objeto intrusivo, seja ele a droga, as más companhias, ou tudo
aquilo que desvia e retira o sujeito de seus valores de origem, de
seu compromisso com o futuro, de sua comunidade de destino. Adições
e acumulações, recusa ou excesso de consumo, exibicionismo, nos
colocariam na trilha de uma violência cuja função é segregativa,
ou seja, ela não reequilibra narrativamente um desvio das virtudes
mas exclui ou inclui comunidades e modos de satisfação.
A terceira forma típica de sofrimento inferida da
narrativa ascendente do batalhador brasileiro baseia-se no trabalho
de articulação simbólica entre suas origens e sua atual posição
social. Uma ascensão baseada no esforço coletivo, na ajuda mútua,
nos laços de produção familiares ou comunitários, muitas vezes
reforçado por comunhão religiosa e moral, requer uma ampla
articulação histórica de sua própria forma de vida. Neste
contexto a desregulação sistêmica, pode colocar em risco a
unidade, coerência e congruência entre valores de origem e valores
que triunfam ao final do percurso ascensional. É a insegurança
sistêmica de que assim como o “triunfo” se colocou por vias e
regras que não se sabe esclarecer, um grande fracasso e um retorno
podem ocorrer a qualquer momento. Há um tipo de depressão ansiosa
que se desenvolve facilmente neste contexto. O esforço para sonhar,
desejar e imaginar novos futuros possíveis depende da consolidação
simbólica das realizações passadas. A ausência desta articulação
pode se apresentar como o sentimento permanente de uma “vida
postiça” ou de um empuxo à performática social. Aqui a violência
assume o aspecto de fantasia de punição ou de imagens masoquistas,
A quarta narrativa do sofrimento, característica do
Brasil pós-inflacionário, refere-se às patologias da imagem de si.
Isso pode se apresentar sob forma de reificação de uma forma de
vida cujo protótipo são as figuras da adolescência: indeterminação
de destinos, crise permanente da identidade de si, sentimento de
inadequação do corpo próprio, orientação sexual-amorosa baseada
na experimentação. Aqui é a narrativa da perda da alma, e das
estratégias de recuperação que ganha relevo. A violência assume a
figura da demanda de reconhecimento. Os tempos articulatórios da
demanda: o pedido, a recusa, o objeto oferecido e a negação,
encontram-se dispersos e por vezes desarticulados. Isso explicaria os
fenômenos secundários da erotização da infância e das práticas
de controle e descontrole alimentar (anorexia, bulimia, vigorexia).
A ideia de uma nova forma de violação do pacto social
aparece em Boca do Lixo de Eduardo Coutinho (1992). Aqui vemos
a violência silenciosa, baseada na ruptura da conexão ideológica
entre pobreza-violência ser deslocada para a narrativa da violação
do pacto entre ricos e pobres, lido agora na chave das patologias do
consumo. A rarefação de ideais, torna-se um problema maior do que a
oposição entre estética ou cosmética da fome. O estudo sobre a
população que vive e se reproduz em torno do lixo encontra sua
apoteose na cena final na qual a massa se percebe no pequeno monitor
de televisão posicionado em cima de uma Kombi da produção, ao som
de uma romântica balada que reproduz um sucesso musical
americanizado. Vidas em situação de precariedade, na qual pequenos
sonhos e a capacidade de imaginar um futuro melhor aparecem como
despropósitos desmentidos pelo documentário. Vidas que retratam a
ordem e o caráter sistemático em uma situação à qual supõe-se
anomia e efeitos radicais da exclusão. Percebe-se então diferenças
até então irrelevantes, entre aquele que pertence à ralé e o que
pode emergir como batalhador. Diferença tão sutil como perder ou
manter os dentes da frente, possuir ou não uma carroça para catar
papelão, ter um endereço para receber entregas ou um telefone para
se definir a partir de um “lugar”.
É a dificuldade de sonhar, desejar e imaginar futuros
possíveis que se encontra também em Carlota Joaquina - Princesa
do Brasil de Carla Camurati (1995) que aponta como a
desarticulação da gramática do sacrifício leva ao cinismo, ao
excesso de instrumentalização das relações e á lógica da
indiferença. Encontramos aqui a matriz reversa da inveja como
capacidade articular atos de indiferença social ao outro, que se
mostrará fortemente presente na reação das classes médias ao
forte movimento de ascensão da ralé à pobreza e da pobreza à
condição de batalhadores bem sucedidos. A “retomada” do sentido
da aristocracia mostra-se assim um movimento defensivo ao grupo que
terá seu padrão de subjetivação baseado no consumo ameaçado pela
generalização do consumo para as classes sociais ascendentes.
Outro filme que aborda a desarticulação da gramática
do pacto-sacrifício é Guerra de Canudos de Sérgio Rezende
(1997). Novamente encontramos aqui o tema da violência em nome da
supressão da violência, o cinismo das lideranças como origem do
ressentimento social. A hipótese de Euclides da Cunha de que o
Brasil se tornaria um país viável na medida em que formas de vida,
presentes no homem litorâneo, conseguissem se articular com o
sertanejo do interior, reaparece agora tematizando a guerra como
paradigma na “resposta exagerada”. Contra a hipótese de Antonio
Conselheiro, de que um novo mundo seria possível, insurge-se uma
espécie de aniquilação engendrada pelas forças da união. Temos
aqui um exemplo da alternância entre a narrativa do objeto
intrusivo, a comunidade de Canudos, e a violação do pacto, entre
Estado e sociedade civil. Ocorre que neste lugar sem Estado a
auto-organização é sentida como violação de um pacto, de outra
forma quase inexistente.
Cronicamente Inviável |
Também se encontrará esta ligação em Cronicamente
Inviável de Sérgio Bianchi (2000). A fixação masoquista ao
sacrifício, a interiorização como defesa ao sentimento de
isolamento são novamente endereçados à gênese do ressentimento
social. É, por exemplo, o caso da cena no qual o trabalhador volta
para casa em seu ônibus lotado, mas em recuo introspectivo, medita
sobre as condições da troca social a que está exposto pelas regras
do trabalho em uma cidade como São Paulo. Sua meditação é
interrompida pelo carro de uma mulher que enguiça a frente do
ônibus. O motorista buzina e pede passagem, o que é saudado pelos
que estão no ônibus. Contudo, em plena avenida Paulista o que se vê
é uma jovem senhora de classe média sair aos brados de seu carro e
proferir impropérios ao motorista, exacerbando sua “força de
classe”, representante pelo carro contra o ônibus que ela está a
atravancar. O motorista se cala, a população bate palmas, a
violência do condutor fora enfim contida e sobrepujada pela reação
excessiva, exagerada e simbólica levada a cabo pela madame. Temos
aqui os traços característicos da narrativa da alienação como
perda da alma: interiorização, humilhação, exercício conspícuo
do poder, intimidação.
Abril Despedaçado, de Walter Salles Jr. (2001) é
outro caso de desarticulação da gramática do sacrifício e do
pacto. Aqui a violência do agreste, dá suporte à narrativa da
vingança como forma atrasada e equívoca de solução para a tensão
social. Mesmo que o tema seja as relações históricas de vingança
entre famílias rivais no agreste brasileiro, o mal-estar está
presente e transpira como uma alegoria. É o relógio que marca a
hora da vingança, do inexorável ajuste de contas, mas que já é
sentido como anacrônico, e fora de hora. Ou seja, a mais tradicional
e instituída das formas de violência no interior do Brasil profundo
mostra-se anacrônica, excessiva, fora de hora. Mais do que uma
típica aventura de inversão e reequilibração o filme aborda o
cansaço e a impotência da vingança promovida fora de um universo
onde a honra é um valor de fato, fundamental. A vingança não está
a cargo de um ajuste de contas ascensional com o futuro ou com um ato
de liberação simbólica para com o passado, mas é uma vingança
que trabalha fora do tempo.
A narrativa do objeto intrusivo aparece em Ação
entre Amigos de Beto Brandt (1998) e Que é isso Companheiro,
de Bruno Barreto (1997) corrupção, trapaça, e suspenção de
relações de fidelidade determinam ressentimento social como
incapacidade de luto. Já em O Invasor, de Beto Brant (2001)
vemos o problema do objeto intrusivo induzindo uma situação de
anomia decorrente do excesso de instrumentalização das relações.
Paulo Miklos, ex Titãs, é contratado para eliminar um dos sócios
de uma construtora. Feito o ”serviço” ele reaparece na empresa,
se faz introduzir na casa dos outros sócios, aproxima-se da filha de
um deles, enfim, mostra uma situação na qual os muros e cercas,
invisíveis, são ultrapassados produzindo um sentimento de
insegurança que não decorre da potencial violência do “invasor”,
mas de que seu agente aparece de forma visível e fora de controle.
Outro exemplo desta forma de sofrimento cuja gramática
baseia-se na aparição de um objeto intrusivo é Carandiru,
de Hector Babenco (2003), no qual o universo fechado da prisão
coloca-se como um comentário ao massacre de 1992. Aqui
a crise de sentido no interior da ordem sistêmica prisional,
associada com a sempre disponível hipótese do declínio da imago
paterna, com sua retórica da impunidade e do medo, dão margem à
reconstrução, violenta e insensata, do universo da lei. Esta
abordagem do massacre dos 111 presos do Carandiru é ótimo exemplo
de como vidas comuns, com seus desencontros comuns, são compactadas
e destruídas pela uniformidade da hipótese de a-violência.
Hipótese pseudo-democrática de que diante de a-violência seríamos
todos iguais. O filme é a primeira tentativa de interpretar a
violência nascente segundo sua própria lógica.
Observe-se
como em todos os casos subsequentes temos a intrusão de um olhar
deslocado: o menino de classe média que se envolve com o tráfico
em Cidade
de Deus,
o médico de presídio em Carandiru,
e o matador que passa a participar, como um intruso, na vida de seus
contratantes em O
invasor.
Nos três casos há uma espécie de prazer ou de flerte hesitante em
conhecer as raízes do excluído social. A fascinação exercida pela
alteridade interna, mas distante, dá lugar ao horror e angústia
quando reconhecemos sua proximidade. Não creio que nesta gramática
se trate apenas de humanização do excluído, mas, como afirmou a
crítica literária Maria Elisa Cevasco (2003), de filmes que “usam
a linguagem da mercadoria, da propaganda, para falar da realidade de
quem está excluído do consumo”2.
Temos assim
um erotismo produzido no olhar do espectador a partir de uma posição
deslocada. Erotismo que não se reconhece como tal, e encontra como
substitutivo a violência. Situação simétrica verifica-se no caso
da jovem esposa, algo entediada com seu marido, que recebe da vizinha
uma receita para “aditivar” suas relações: a introdução de
uma banana no seio da vida erótica do casal. A resposta do marido
vem em ato: ele mata sua própria esposa, intuindo que a invenção
de tal prática só poderia advir de um relacionamento
extra-conjugal. Vê-se bem aqui como a violência emerge no lugar do
erotismo suprimido. Demonstração do equívoco de Reich. A sociedade
de indivíduos dóceis, apáticos... “bananas” (para voltar ao
assunto) não é apenas efeito da repressão do erotismo, mas de um
erotismo que suporta mal as oscilações da fantasia que o sustenta.
Um erotismo desguarnecido contra a aparição de um objeto intrusivo
e em permanente precariedade do pacto amoroso.
Abril Despedaçado |
Muito se tem criticado Carandiru por
colocar em primeiro plano a imagem midiática de Rodrigo Santoro no
papel do travesti “Lady Di”,
em franco contraste com os outros personagens do filme, que são
figurados como pessoas comuns. Nisso se esquece que tal personagem só
adquire realmente consistência a partir de seu envolvimento com “Sem
Chance”, um mirrado representante gabiru,
de quem se esperaria um erotismo convencional. Trata-se de mais um
encontro inesperado. O contraste entre a bela exuberância do
primeiro com a minguada estética do segundo testemunha uma espécie
de miscigenação estética que alimenta uma nova forma de erotismo,
estritamente distante e corrosiva diante do ideal hegemônico.
A narrativa da anomia, da perda da unidade sistêmica, e
da desarticulação entre meios e fins, entre agente e outro, aparece
em Durval Discos, de Anna Muylaert (2002) e Edifício
Master de Eduardo Coutinho (2002). A dificuldade de articulação
histórica de sua própria forma de vida (desregulação sistêmica)
aparece pela via da depressão, da espetacularização da vida
cotidiana e do declínio do erotismo. Não falta a redução da
extensão da narrativa amorosa. É o que vemos na personagem
depressiva de Edifício Master que não consegue de fato desenvolver
uma narrativa amorosa quando é instada a tal. Em vez disso emerge um
palavreado inautêntico, uma alienação espantosa quanto ao que
seria uma experiência com o outro, sem que ao final se consiga
dirimir uma relação exata que se encadeia nas experiências
amorosas, mesmo em suas decepções e infortúnios.
Finalmente, Cidade de Deus de Fernando Meirelles
(2002) e A Dona da História (2004) de Daniel Filho, inscrevem-se
sob a narrativa da perda da alma. Temos aqui o corte etário bem
definido na construção do sofrimento de época: a reificação da
adolescência, a erotização da infância, a reinvenção da mulher
de meia idade e a banalização do homem incapaz de fazer frente à
sua própria posição. São narrativas cuja enunciação permanente,
e fronteiriçamente depressiva, é: “em nome de que?”.
Tanto no caso do envolvimento de jovens de classe média com o crime,
ou do adolescente que mora no morro com a arte do jornalismo e da
fotografia, ou da senhora que questiona o tipo de realização que
ela teria levado a cabo em seu casamento “feliz”, o ponto do
vista do filme é retrospectivo, quase memorialístico, apesar da
alta densidade de ação. Tanto no drama dos morros quanto no seu
homólogo Zona Sul, os personagens padecem de um sofrimento de
determinação, invertendo aqui a expressão original de Axel
Honneth (sofrimento de indeterminação). Não que ambos vivam em um
mundo demasiadamente organizado, pelo contrário os cenários são
anômicos, violentos e corrosivos, mas em meio ao caos e a vida em
estrutura de guerra e condomínio, vigora perda do sentimento de
liberdade, de rarefação da densidade da vida, de irrelevância da
experiência de si. Esta ligação entre alienação da alma e
desreguração sistêmica pareciam preparar o sucesso vindouro de
Tropa de Elite 1 (2007) e 2 (2010) de José Padilha.
Ora, o que esta aparição transversal da violência
mostra é no fundo sua capacidade de articular a fantasia social por
meio da variação de incidências do que Lacan chamou de objeto a.
Ora, o objeto a pode ser tanto o elemento indiscernível que é
causa do desejo e de sua alienação, para um sujeito, como este
elemento excessivo que surge intrusivamente, misturando fronteiras e
limites. O objeto a, pode ser tanto o elemento desagregador na
relação entre as partes e o todo, quanto o traço que por sua
repetição dá consistência à lei, unidade a uma série, causa
instituinte e transgressiva de uma forma de vida. Temos então que as
narrativas convergentes sobre a perda da alma, sobre o objeto
intrusivo, sobre a desregulação do sistema ou sobre a violação do
pacto, presentes no cinema da retomada, são articulações
estruturais da nomeação do mal-estar como “a-violência”. Isso
nos ajudaria a entender porque o esforço de teorização dos
chamados novos sintomas, ou novas patologias, amplamente enfrentado
pela psicanálise brasileira dos anos 2000, rendeu pouco em termos da
articulação entre as diferentes modalidades de sintoma. Entre o
mal-estar, genérico derivado das transformações sociais inspiradas
pelo capitalismo tardio, e os sintomas específicos como a
drogadição, a depressão, o pânico e a anorexia, é preciso pensar
o plano intermediário das narrativas sociais do sofrimento. Sem elas
as conexões e correlações entre sintomas aparecerão de modo
isolado, como contingências individuais.
É fácil perceber que a ascensão do discurso sobre as
drogas, assim como todas as outras patologias do consumo, como a
anorexia, a bulimia e vigorexia, são variantes da narrativa do
objeto intrusivo, percebido como vorazmente perigoso justamente em um
universo social que se abre como nunca às perspectivas de definição
de si por meio de atos de consumo. Inversamente o espectro de
sintomas em torno da depressão mostra-se dependente da narrativa da
perda da alma e da alienação do desejo. Os sintomas em torno a
ansiedade e do pânico, tais como o medo de lugares abertos, a
vertigem diante de multidões ou de lugares estranhos exprimem a
perda da experiência de unidade corporal em homologia com narrativas
sobre a perda ou sobre o excesso de organização sistêmica do
mundo. Finalmente, os sintomas em torno de formas disruptivas do
narcisismo, que vão do espectro bipolar aos desajustes de
hiperatividade até o sentimento de inadequação, dependem
estruturalmente de narrativas em torno da patologia do pacto, ou do
laço de discurso, com o outro.
1-
Souza,
J. (2004), “A gramática social da desigualdade brasileira”.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, 19 (54): 79-96.
2-
CEVASCO,
M.E. (23/05/2003). Estudos culturais à brasileira. Folha
de São Paulo –
Mais.
Durval Discos completo: http://www.youtube.com/watch?v=vJ5Ka0c1mIY&list=PLZNuLmnSf7bv0rtctGhqszXP_qExqclVh&index=1
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011)
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