sábado, 10 de agosto de 2013

Kevin, precisamos falar

de Henrique Senhorini

  É com o ódio, como elemento escolhido entre várias opções, que tentarei desenvolver a minha leitura do filme “Precisamos falar sobre Kevin”, apoiado em Mauro Mendes Dias, Diana e Mario Corso, Helene Deutsch, além de Freud e Lacan.
   
Bem...  o filme começa, após a enigmática cena da cortina esvoaçando, mostrando um espetáculo de gozo coletivo no qual se percebe a sua potência na expressão deleitosa de Eva, carregada triunfalmente pela multidão em plena La Tomatina. Uma bela cena da festa dos tomates na Espanha que, mostrada de cima, pode ser confundida, por algum instante, com o inferno de Dante. Esta cena também marca a felicidade que Eva sente da vida livre e prazerosa que leva. Porém, logo percebemos que se trata de uma lembrança e o tempo correto do verbo sentir e levar é o passado... a felicidade que Eva sentia da vida livre e prazerosa que levava. O seu presente fica explicitado sobre a mesa na cena seguinte.
       De volta ao passado, via flashback como recurso da direção para mostrar as recordações de Eva, esta vai se ver na noite que seu primogênito foi gerado e da promessa feita de não ir mais embora. E suas recordações avançam e recuam na linha do tempo como se procurasse algo, algum ponto específico na história de sua vida. Em outra recordação, é mostrada a cena do trabalho de parto e nela escutamos alguém dizer, entre gritos de dor: “pare de resistir, Eva”. Um corte e a cena seguinte mostra o bebê embalado no colo do pai e Eva sentada na cama, passando a impressão pela sua expressão, na minha fantasia, que estava a pensar: o que eu fui fazer? ou como dizem no popular: que merda eu fiz !!!

um parênteses aqui
Interessante esta pergunta que muitas vezes nos fazemos principalmente quando nos deparamos em alguma situação que, por escolha, não escolhemos. Deixa a vida me levar é uma das opções possíveis. Teria sido o caso de Eva?
Uma outra hipótese que suscita é se a da força do nome bíblico Eva (por que a autora escolheu este nome?), na Gênesis, é de alguma maneira determinista. Está lá na Gênesis (3:16) que, após comerem o fruto proibido, Deus determina o futuro de Eva, a mãe primeva da Terra, com a seguinte frase: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos”.

       Voltando ao filme, o ato de dar à luz é, para a maioria das mulheres da contemporaneidade (diferente das nossas avós e bisavós que tinham 9, 15, 18 filhos), um ato significante. Trata-se daquele ato que divide a vida de uma pessoa em um antes e um depois. E no caso de Eva, foi realmente um divisor de águas entre a mulher profissional bem sucedida que era e a mulher mãe que vive para o filho “full time”. Se ela já pressentia que teria que abrir mão de um desejo caro por outro desejo não tão caro, demonstrado nas cenas durante a gestação e na resistência presente no momento do parto, não sabemos, apenas dá para supor.

um aparte
Através dos psicanalistas Diana e Mario Corso conheci Helene Deutsch, grande psicanalista da época de Freud e autora do livro “Psicologia das Mulheres” de 1944, que afirma haver tipos diferentes de maternidade que basicamente se encontram em dois grupos por ela assim dividido: um tipo é a mulher que desperta para uma nova vida através de seu filho, sem ter o sentimento de uma perda. Tais mulheres desenvolvem seus encantos e sua beleza somente depois do nascimento de seu primeiro filho; o outro tipo é a mulher que desde o princípio sente uma espécie de despersonalização na relação com seu filho; tais mulheres dedicam seus afetos a outros valores (erotismo, arte ou aspirações masculinas) ou esse afeto é demasiado pobre ou ambivalente em sua origem e não pode tolerar uma nova carga emotiva; o primeiro tipo estende seu eu através da criança, o segundo sente-se limitado e empobrecido.
Segundo o casal Corso - e eu concordo com eles - “hoje, os dois tipos que ela [Deutsch] teoriza convivem em cada mulher, junto com todas as nuances intermediárias entre eles.”

       Ao filme... no desenrolar da película, o recurso do flashback nos ajuda na tentativa de montagem de um quebra cabeça, cuja peça principal parece que procuramos juntos com Eva. Qual a peça? Procuramos aquela que, agindo como investigadores policiais, nos explique e justifique o que foi que fez Kevin se tornar um “garoto columbine”. Temos a sensação que Eva procura o exato ponto onde supostamente fracassou... Por que penso isto? Porque ela aceita a culpa que a sociedade normalmente joga nos ombros das mães, dos pais, acatando o velho proverbio popular “bons frutos, boa árvore” no seu inverso, concomitante à outras exigências sociais/culturais que invadem superegoicamente de forma imperativa: uma mãe “tem” que amar incondicionalmente seu filho. Caso não aconteça, caça as bruxas. E olha que Eva, em momentos hercúleos, tenta ser essa mãe com todas suas crenças, até aquela que diz que se trata de habituação, de se acostumar.
       Eva percorre em suas lembranças a história de Kevin, através da sua, desde o período de gestação, passando pelo nascimento e chegando até o fatídico dia D... Ou melhor, dia R do Real, do seu encontro com o Real ? Também recorda a alegria não sentida como a que via nas outras gestantes no período pré natal; o difícil e doloroso parto; os momentos de choro sem fim, um choro desesperado para uma mãe também desesperada que só se calava na presença de Franklin. Este me parece mais preocupado em dar conforto não somente via bela casa e outros bens, mas também sempre confortando a ambos, Eva e Kevin, como se fosse essa a sua função paterna. Franklin me dá impressão de querer viver o ideal da propaganda da margarina todos os dias, esquecendo-se que o ideal se encontra no patamar do inacessível, portanto do impossível. Para quem leu o livro, Franklin se ajusta bem na denominação dada pelo casal Diana e Mario Corso: “um pai cenário”.
       Kevin - seguindo uma linha cronológica de desenvolvimento infantil adotada como normativa - demonstra, ou tenta demonstrar, que tem uma certa dificuldade em operar por essa via. Assistimos, somente porque Kevin quis mostrar, que ele só não falava porque não queria. Simplesmente assim, ou posso apostar que se tratava de uma tentativa em frustrar as expectativas do Outro, da mãe (que é o primeiro Outro). Lembram da cena na qual Eva pede para ele dizer mamãe e obtém como resposta um bem-dito ou mal-dito não? Do mesmo modo ele reproduz no aparente descontrole dos esfíncteres o seu total controle em decepcionar, frustrar e irritar a mãe. E a cena que corrobora com minha aposta é da troca de fraldas... após ser limpo por Eva ele se esforça para mostrar, novamente, seus dejetos e a fita com um olhar meio sarcástico. Seria seu mundo o i-mundo como dejeto, dejeto da mãe?
       E qual a consequência, no meu entendimento, de seu acting-out, ato endereçado ao Outro, à mãe? A passagem ao ato de Eva que o arremessa para longe dela.

um outro aparte
Sabemos com Freud que um ato - desde os atos-falhos - é interpretável, pois revela algo do desejo inconsciente. Lacan contribui fazendo a distinção teórica do conceito de “acting-out” do conceito de “passagem ao ato” que podemos notar, basicamente, na relação com Outro: o “acting-out” tem um apelo ao Outro e “a passagem ao ato” visa romper com o Outro.

       Lembram, também, quando a mãe tenta retornar ao seu campo de gozo, montando e decorando um pequeno quarto com mapas de viagem nas paredes? Percebe-se o ar da graça reaparecendo em sua face, via fantasia, fazendo o contraponto necessário para todos nós aguentarmos a crueza da vida. (Lembro, aqui, a famosa frase do filme Cheiro do Ralo: “a vida é dura!”).
E o que Kevin faz? Destrói esse que se apresenta como único reduto de prazer da mãe, que poderia ser-lhe útil como um cilindro de ar é para o mergulhador.

Bem...
       Hipóteses brotam em abundância: é um gozo o que Kevin sente que o faz deixar a mãe sempre insatisfeita? Mas deixar o outro insatisfeito não é da estrutura histérica? Uma demanda de amor do tipo olhe para mim por bem ou por mal? Há falhas gritantes na lei simbólica do pai imaginário (aquela que barra, que interdita) fazendo com que Kevin conheça a lei para transgredir?
Bom, mas este “eu sei, mas mesmo assim...” (expressão cunhada por O. Mannoni) não é uma característica da perversão como estrutura clínica? Ou seu pai cenário é realmente só um cenário do Pai da Lei, portanto lei esta, foracluída como nas psicoses?
       Bem que eu poderia optar em qualquer uma das três clássicas estruturas clínicas para desenvolver uma leitura possível deste filme e tentar dar uma sustentação teórica, mesmo que por alguns instantes. Mas, seria mais ou menos como querer encaixar Kevin na famosa cama de Procusto, principalmente se ela fosse de uma psicopatia, de um sociopata. Isto nos daria um distanciamento reconfortante e poderíamos dormir em paz e protegidos de nós mesmos. Afinal, entre Kevin e nós há uma diferença abismal. Porém, nem tanto como gostaríamos que fosse, pois o ódio nos aproxima de Kevin (ou de Eva?) muito mais do que gostaríamos. Como assim?
       Pois é... o ódio é muito interessante, pois até consegue fazer com que nos odiemos por senti-lo, como já li em algumas pichações pela cidade: “eu me odeio por sentir ódio” e “odeio odiar”. E, até por isto que também escolhi o ódio como via preferencial para abordar o filme, pois deste ninguém está imune. Entretanto, para não ficar conceitualmente preso no ódio como uma das três paixões fundamentais do ser – amor, ódio e ignorância – de Lacan, nem como sinônimo de “transferência negativa” na questão sobre a dinâmica da transferência em Freud e nem na sua metapsicologia sobre a constituição do sujeito, vou adotar os ódios (no plural), do Mauro Mendes, como estratégia de liberdade. No meu caso, como uma estratégia na qual me autorize errar sem culpa e sem correr o risco odiar por isso.
       Bom... parece que o ódio é odioso e odiado nas sociedades ocidentais como a nossa. E, com Mauro Mendes lembrando o alerta de Freud, é importante ressaltar isto para nós, psicanalistas, de não cairmos na armadilha de querer eliminar ou converter o ódio em amor via intervenções forçadas, numa conduta de pasteurização do humano, como se ódio fosse um vírus. É... O ódio também é uma manifestação autêntica da singularidade do sujeito. E dependendo do nosso manejo, pode se tornar uma “forma de abertura do sujeito ao Outro”. Por isto, decidi eleger o ódio como a via “escolhida” por Kevin para se fazer presente e reconhecido como sujeito.
       Então, sempre como hipótese, Kevin utiliza o ódio, como força motriz que o impulsiona para o seu desejo, mas diferente de Antígona, não pela via da destruição do Outro, no seu caso seria o Outro primordial, e sim pela destruição de tudo que se aproxima como índices de desejo deste Outro, da mãe. Para quê? Para viver numa espécie de “simbiose às avessas” (expressão emprestada de Mário Corso) com a mãe? Para ser desejado numa plenitude, ser único como objeto de desejo da mãe interrompendo a metonímica deste? Uma maneira de Kevin se manter, incondicionalmente, ligado a mãe e a mãe a ele?
       E não penso o ódio aqui como uma paixão do Ser, de acordo com as três paixões fundamentais de Lacan, pois não reconheço em Kevin um cego apaixonado na versão “cego pelo ódio”. De acordo com Mauro Mendes, essa paixão do Ser de Lacan é caracterizada pela suspensão provisória da barra que separa o significante do significado, porque, uma vez suspensa, “o sujeito não tem mais referência de impossibilidade; ao contrário, os significantes da paixão determinam uma relação de superposição com o significado.” E, ainda com o autor, é justamente essa “provisoriedade” na suspensão que diferencia a paixão – visto que é chama - da psicose.
       A minha aposta no filme vai aqui no ódio como fator na constituição do sujeito, ou melhor, desde a constituição do psiquismo – de acordo com Mauro Mendes - pois este, o ódio, se confunde com a “dimensão do desprazer”.
Segundo o autor, “o ódio está antes do sujeito porque ele se inscreve nessa condição do Outro ser castrado”. E é daí que vem a impossibilidade do Outro primordial, a mãe, em atender todas demandas e necessidades de seu bebê. E aqui minha aposta ganha apoio, visto que, se o ódio confunde-se com a frustração na obtenção do prazer, na dimensão do desprazer, e esta tem “íntima relação com o tipo de presença do não no desejo da mãe”, nas palavras de M.Mendes, há um grande indício, através do mal-estar demonstrado por Eva desde a gestação, de quão pouco o seu desejo está tomado pelo filho, do quantum que Kevin ocupa de não no seu desejo, na minha leitura.
E tem a questão do exterior no comparecimento do ódio no sujeito, na sua constituição, via o que Freud chamou de desprazer, pois esse vem de fora do sujeito, vem pelo Outro primordial (que barra nossas demandas). Então, aí, exterior e desprazer se confundem.
     Ainda com Mauro Mendes, essa condição de primeira exterioridade é simultânea ao surgimento do ódio. E, ao mesmo tempo, este exterior me é íntimo, visto que há um Outro que se confunde comigo e que, concomitante, determina a minha existência. Portanto, “esse Outro está, ao mesmo tempo, no exterior, estabelecendo o funcionamento do que me é íntimo”. De acordo com o autor de Os Ódios: clínica e política do psicanalista, esta relação na qual o “exterior é íntimo” é o que Lacan chama de “extimidade”.
       
       De volta ao filme... Eva ao remessar seu primogênito percebe, após a queda, que Kevin sofre uma fratura acho que exposta, não importa. O que importa é como ele se utiliza disso para capturar a mãe sob o pretexto de protegê-la, além de marcar o início de uma cumplicidade via ódio. Ou sua intenção era realmente protegê-la?
       E foi com esta grande encenação, lá no hospital, que Kevin percebe-se como grande ator do seu pequeno teatro. Interessante, também, que “odéon”, que vem da etimologia da palavra ódio - odeum no grego (odium no latim) - significa exatamente isso: pequeno teatro grego cuja presença do ódio nas peças encenadas era frequente.
       Kevin, retornando ao filme, após alguns momentos inéditos de harmonia com sua mãe na leitura das aventuras de Robin Hood – aquele que tira dos que possuem algo valoroso para dar para os que não possuem – adota o arco e flecha como fiel companheiro. E este será o escolhido, anos mais tarde, como seu instrumento no grand finale do seu teatro trágico. Kevin, o filho de Eva Katchadourian, carrega o nome armênio da mãe - 'ian' sufixo de identidade das famílias armênias, significa pertencente à família - e não o nome do pai. E antes do seu grande momento chegar, ele treina continuamente com seu arco para atingir seus alvos, de preferência os que são, ou poderiam ser, objetos parciais de satisfação, também parcial, da mãe.
       Então, no dia do seu 16º aniversário, Kevin se apresenta para aquele que seria o grande espetáculo de sua vida, finalizando-o numa grande apoteose. Massacre e destruição dos que ocuparam, um dia, o lugar de objeto de desejo de outras mães. Ao mesmo tempo destrói, supostamente, os últimos vestígios de desejo da sua mãe, atingindo-a até na sua identidade como sobrevivente do Holocausto Armênio, pois o herdeiro de seu nome agora se tornara o algoz no genocídio do colégio. Porém, antes disso tudo, dispara suas flechas mortais destruindo a irmã e o pai.

       O primogênito de Eva é preso e ela condenada a ser somente, daquele dia em diante, a mãe do Kevin, a mãe do assassino. Por fim, parece que Kevin se dá conta que conseguiu capturar a mãe só para ele. Mas não o que "perdura de uma perda pura"?
Comentário apresentado no "Filmes da Psicanálise" do CEP em 09 de agosto de 2013, São Paulo.
Precisamos falar sobre Kevin - filme completo

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