sábado, 20 de julho de 2013

Intocáveis, mas tocados pela palavra

de Henrique Senhorini

Que não é o que não pode ser que
Não é o que não pode
Ser que não é
O que não pode ser que não
É o que não
Pode ser
Que não
É ...
 Arnaldo Antunes

Foi com o auxilio desta poesia de Arnaldo Antunes que escolhi o caminho para iniciar uma leitura possível, entre várias, para este filme que é o que não pode ser que é... Mas, o que não pode ser? Não pode ser “blockbuster” californiano por ser parisiense... Não pode ser francês por ser hollywoodiano demais... Mas, não é? E foi com uma pré-ideia, apoiada em meus pré-conceitos estereotipadores - um filme francês (intelectual) com cara e jeito de Hollywood (tolinho) - que me preparei para o cinema.
       Uma pré-impressão que ficou mais fortalecida pelo cartaz do filme que vi, na entrada do cinema, dizendo tratar-se de uma história real inspirada no livro de Philippe Pozzo di Borgo, O Segundo Suspiro. Uma história sobre a relação entre um aristocrata branco parisiense, rico, culto, refinado, tetraplégico e um negro de gueto periférico, pobre, marginal, inculto, rude, atlético oriundo das colônias francesas africanas. Um filme sobre caricaturas, pensei. Porém, logo em seguida, me dei conta que ainda não o havia assistido e, portanto, sobre ele nada sabia, da mesma maneira como lidamos nas nossas clínicas em relação aos pacientes: podemos ser doutos, porém ignorantes.
É o que não pode ser, é o que pode ser?
       E no filme assistimos várias situações semelhantes a essa, dentre elas o nascimento e crescimento de uma amizade improvável. Uma amizade entre dois opostos, dois estrangeiros que compartilham muitas coisas, cada qual a sua maneira, como o fato de, talvez o mais evidente, serem marcados pelas aparências. Aparências estas que os posicionam, no contexto social, na periferia do mundo dos ditos “normais”. Um é rico, mas paralítico. Outro é esperto, mas negro. Ambos aleijados da completude exigida pelo padrão normativo superficial midiático da contemporaneidade, que se impõe de forma imperativa. Puro ilusionismo, pois o que é completo? E é por essa via que vou tentar expor o meu pensamento sobre o que considero ser um dos mais fortes laço social: a amizade.
       Ser o que é / é o que não pode? Uma amizade entre Driss e Philippe, simplesmente pelo fato dos dois serem tão diferentes e de mundos tão distintos, não pode ocorrer numa sociedade regida por padrões tão, no mínimo, preconceituosos... preconceitos que hoje, na contemporaneidade, estão encobertos pelo manto da hipocrisia do politicamente correto. Pois é  ...também pode.

um parênteses
Isso me faz lembrar um comentário que li por aí sobre preconceitos, que diz algo próximo disso: “é mais fácil, depois de Einstein, quebrar um átomo ao meio que um preconceito”.

       Bem, a história entre os dois tem início quando Driss se candidata à vaga de cuidador de Philippe.  Durante o processo de seleção, a seguinte pergunta é colocada: “Qual é o teu principal estímulo para querer ocupar a vaga?”
E aí assistimos um curioso repertório de respostas, desde as mais diretas: “é o dinheiro”, passando pelas dissimuladas: “gosto do bairro” e também pelas benevolentemente perfeitas: “humanidade, faço tudo por humanidade” e “para ajudar a autonomia dos deficientes”. Ah... tem ainda as, no mínimo, esquisitas e ou suspeitas: “amo os deficientes desde criança”. E nem vou mencionar os discursos, que acompanhavam as respostas, feitos de palavras belas desfiladas pelas bocas dos selecionáveis.
   Philippe, que assistia as entrevistas furiosamente calmo insatisfeito, demonstrava toda sua empolgação com um peculiar olhar de peixe morto. Parecia saber que somente lindas palavras não modificam nada, não fazem atos. E assim, o cansativo desfile dos pretendentes a vaga progredia em sua ordenação até ser abruptamente interrompido por Driss, que não suportou seguir o roteiro. Este entra em cena cortando a ordenação e apresenta um papel, batendo na mesa da secretária dizendo: “Eu vim para ter o documento (é um documento que comprova que está procurando emprego para ter acesso ao seguro social) assinado", querendo evidenciar, assim eu li a cena, que não se sentiu estimulado e ou seduzido pela oferta de emprego e nem movido por uma falsa compaixão. Um primeiro ato?

um outro parênteses aqui
De acordo com Quinet, em seu livro Psicose e Laço Social, o ato “é, segundo Lacan, um dizer que funda um fato”, sendo esse dizer não propriamente da ordem da fala.
E diferente das outras entrevistas, esta não-entrevista de emprego parece ter produzido um fato.

Ainda sobre este encontro primeiro, ambos travam um curto embate sobre quem sabe mais sobre música (ou seria sobre quem tinha o pipi maior?). Bem, fica combinado que Driss retornaria no outro dia para buscar o documento devidamente assinado.
       Assim o filme segue e no intervalo de tempo entre o primeiro encontro e o segundo nos é mostrado como Driss, mesmo não estando tetraplégico, também se encontra muito limitado em seus movimentos na vida, sem lugar no seu mundo familiar, sem lugar na cadeia de significantes dos nomes próprios - sim, Driss não é seu verdadeiro nome – e com um cardápio reduzido nas formas de gozo mais, diria, inteligentes do que a de passar a noite se drogando. Enfim, privado de “quase” tudo. Privado até de desejar? O Philippe também?

mais parênteses
Quinet nos lembra que “o mal-estar da civilização é o mal-estar dos laços sociais” chamados também por Lacan de “discursos tecidos e estruturados pela linguagem” e estes, os discursos, sendo as quatro formas das pessoas se relacionarem entre si - governar (discurso do mestre/senhor), educar (discurso universitário), psicanalisar (discurso do analista) e fazer desejar (discurso histérico) - e que também se expressam nos vínculos de amizade.
Ah... o discurso do capitalista, caracterizado pela foraclusão da castração, está fora desta relação, pois é um discurso que não faz laço social, visto que o sujeito só se relaciona com os objetos-mercadoria, comandado pelo significante mestre “capital”.

       Voltando ao filme, Driss, na manhã seguinte, retorna a mansão e sem se deixar capturar pelo que lhe é oferecido, encontra Philippe sendo cuidado pelos outros. Este lhe diz onde está o documento assinado e dispara, como um dardo, uma questão em direção ao Driss, talvez como tentativa de afetá-lo a ponto de rever sua decisão: “Como é ser forçado a depender dos outros para viver?” Driss acusa o golpe respondendo: “Como?” Philippe, de bate-pronto, dispara o segundo dardo: “Não se envergonha de viver do trabalho dos outros?”, desta vez mirando a jugular de seu suposto oponente. Driss, movendo os ombros tipo “não tô nem aí”, também responde com a mesma intenção: “Me sinto legal, e você?” Com a resposta, quiçá esperada, Philippe, após mostrar um leve sorriso maroto e amarelo, muda o tom e lança a proposta de emprego como um grande desafio: “Aposto que você não aguenta duas semanas”. Estratégia? Um segundo ato?
Bem, a proposta com formato de desafio é aceita e o que assistimos, a partir disso, é o crescente relacionamento entre Driss e Philippe até chegar num forte laço social de amizade.
       E como eles conquistam esta, diria até então, improvável amizade e cumplicidade? Amizade implica cumplicidade?
É sabido, até por nossas próprias histórias, que o laço de amizade é bem distinto dos outros laços sociais, principalmente do familiar. Neste último não exercemos muito o privilégio da escolha. Não escolhemos nossos parentes e muito menos o lugar que iremos ocupar nessa cadeia parental, hierarquizada pela autoridade. Uma vez filho de fulano e sobrinho do sicrano assim será para sempre, mesmo que os abandonemos. Há na família, na maioria pelo menos, a predominância dos discursos de dominação, como o do mestre e do universitário, que, juntamente com o discurso do capitalista, são os geradores do nosso mal-estar na civilização. Família, célula mater da sociedade. Diferente do discurso histérico (predominante na amizade) e do analista (único laço social que trata o outro como sujeito), chamados de discursos do “avesso da civilização”, de acordo com Quinet, pois estes “levam a pulsão em consideração”.

Ah... um pequeno aparte
Todo laço social que trata o outro como um mestre é um discurso histérico. Aqui, histeria não se refere à neurose histérica, mas a uma forma de humana de se relacionar na qual um provoca no outro o desejo e a criação de um saber, que é o ocorre na maioria das relações entre amigos, pois há uma troca constante de lugares, há uma alter-nância.

       Então, todo e qualquer tipo de discurso, como laço social, é um modo de dispor o gozo com a linguagem, visto que para vivermos em sociedade e relacionarmos com as outras pessoas implica uma renúncia pulsional. Portanto, todo laço social é um “enquadramento” da pulsão, resultando em uma perda -uns mais e uns menos- real de gozo. Lembremos que o gozo pulsional é sempre parcial. E a família - insisto em dizer que na sua maioria, porém não-toda - está na categoria dos laços que exigem maiores renúncias. Vocês se lembram da cena na qual um familiar de Philippe o recrimina por seu novo modo de vida e ainda responsabiliza Driss por esta transformação?
       Já a amizade, nem tanto assim. Pois, a amizade está fora, no mínimo mais distante, do alcance do “pai como articulador central dos dispositivos de autoridade”. Está “para além da família como lugar de asfixia do desejo”, aproveitando-me das palavras de Christian Dunker, mas num outro contexto.
E no desenvolver da amizade entre os dois protagonistas, nos é mostrado exatamente isto: Philippe e Driss, cada um a seu modo, provocando no outro o aparecimento do desejo. É, também, um vendo-se no outro como um estranho familiar, apesar das diferenças gritantes. Seria o ilustre (des)conhecido da filosofia e literatura, o velho Alter - Alter Ego, que atende pelo nome de Duplo na psicanálise, se apresentando? Um outro de si mesmo fora de si? É bem provável. Aliás, seria bem interessante se conseguíssemos ser nosso melhor amigo ao invés de sermos nosso próprio lobo, caso fosse possível.

um outro aparte
Para esta questão do duplo, Geraldino Alves Ferreira Netto, em seu artigo “O eu e as identificações em Lacan” invoca Fernando Pessoa (muitos dizem que seu alterego era o seu heterônimo Alberto Caeiro) que diz tudo em poucas palavras: "Eu vejo-me e estou sem mim, conheço-me e não sou eu (...) Começo a conhecer-me. Não existo".

       Retornando ao filme, ao assistirmos o amadurecimento da amizade entre Driss e Philippe e a importância da identificação, da identificação de significante, do traço unário - que é o traço distintivo que está na base de toda identificação - na constituição do laço de amizade, percebemos que nela, na amizade, também cabe algo do amor. De um tipo de amor diferente daquele dos nossos primeiros laços com o pai, com a mãe, até por se opor as altas exigências de renúncias de gozo impostos pelo limite dado pela autoridade, pelo Nome-do-Pai que também é o que estrutura os laços sociais.
       E na amizade, temos a sensação que o limite pulsional imposto pela castração, pela Lei simbólica do pai imaginário é mais flexível e a impressão de sermos domesticados pela civilização se apresenta diminuída em sua força, nos propiciando pensar que podemos quase tudo. É por isso que o filme se concentra tanto nas cenas de extremos tensionamentos desta linha que separa o que pode e o que não pode, beirando a transgressão da Lei. Beirando, mas não ultrapassando. Flertam, como forma de gozo, estes pontos balizadores do limite da lei como os postos fiscais alfandegários existentes nas fronteiras dos países. Não é sem limites, mas testando os limites.
       Não é a toa que o filme começa com a cena da perseguição policial ao carro conduzido por eles numa velocidade altíssima, acima da permitida pelas leis de trânsito. Tipo pequenas transgressões juvenis que os permitem sentir o ar da graça, ao mesmo tempo em que vão se autorizando - com a mesma ousadia dos portadores de um espírito jovial - a experienciar outras formas de gozo, visto que este não se deixa reduzir ao sexo, pois não se permite aprisionar ao significante fálico e que “não há limites para o gozo”, o que não é o mesmo de dizer que “seu campo não seja estruturado”, nas palavras de Quinet. Ele, o gozo, se encontra até no ato de coçar as orelhas.
       Bem, continuando, Driss e Philippe - agora amigos, parceiros e cumplices - vão se fortalecendo na (re)descoberta da força do desejo. Vão se re-inventado e reduzindo, como na clínica, o Nome-do-Pai. E já disseram que a arte de se re-inventar é a capacidade de se perder, de não ter medo de assumir riscos. Isto me faz levantar uma questão: Nós precisamos de, diria, uma certa dose de indeterminação? Sim, podem apostar!
E eles, os novos amigos, vão abrindo mão das certezas, trocando o certo pela aposta no duvidoso, como na aposta de Philippe em se encontrar com sua futura esposa, ainda sem saber que seria seu marido. Claro que com a ajuda, tipo empurrão, do amigo Driss nesta decisão. Temos a impressão de sermos mais fortes para tomarmos decisões importantes, quando encontramos apoio num amigo, no outro externo. E no outro interno?
Ah... mais uma observação: num outro momento do filme, Driss se deixa chamar e até atende por seu nome próprio, Abdel Sellou, - o que não é pouca coisa - talvez, por já se não reconhecer mais nele no sentido de outrora. Agora ele pode.

um pequeno e último parênteses
Sabemos, também, que a apropriação do nome próprio visa tamponar o buraco da falta.

       E o filme caminha até seu final mostrando-nos, com esta história real ficcional - a realidade é uma ficção - como o desejo é a lei. E foi isso que eles redescobriram: que ainda eram seres desejantes. "Desidero, ergo sum" (eu desejo, logo sou) – cogito freudiano, lembrando que o desejo sempre aponta para algo que falta.
       Por fim, esta história -a do Philippe é a mais evidente- que se mostrava determinada por uma tragédia, pelo trágico, ganha um novo final que através de um ato se faz possível sentir o ar da graça. E nisto, este filme se aproxima de uma experiência de análise e, também, nas desconstruções das certezas apostando num novo incerto.
       Oscar Wilde uma vez disse: “A certeza é fatal. O que me encanta é a incerteza. A neblina torna as coisas maravilhosas”.
Sábio Oscar Wilde !!!
Comentário apresentado no Cine ILPC em 28 de junho de 2013, São Paulo.
trailer oficial

3 comentários:

Adriana disse...

Amei seus apontamentos sobre o filme. Parabéns!

Marcelo Keiser disse...

Adorei esse filme. Parabéns pelo blog!

abraço

marcelokeiser.blogspot.com.br

Henrique Senhorini disse...

Adriana e Marcelo Keiser, agradeço os comentários carinhosos e sinceros! Abraços, Henrique Senhorini