A Retomada do Cinema Brasileiro : 2º capítulo da mini-série
de Christian
Ingo Lenz Dunker
Para o cinema da Retomada a violência deixa de ter estatuto existencial-reinvindicativo. Ela não é mais o campo de provas para a determinação do desequilíbrio social, da distribuição inequitativa de renda ou de bens simbólicos, mas surge como um brutalismo que teria como base em:
“(...) altas descargas de
adrenalina, reações por segundo criadas pela montagem (...) as
bases do prazer e da eficácia do filme norte-americano de ação
onde a violência e seus estímulos sensoriais são quase da ordem do
alucinatório, um gozo imperativo e soberano em ver, infligir e
sofrer a violência”1
A violência passa a correr o
risco permanente de estetização, por meio da qual ela é
transformada, portanto, em “teleshow”
da realidade, que pode ser consumido com extremo prazer, mostrando-se
randômica, destituída de sentido e chegando à pura
espetacularidade. Ivana
Bentes2
já apontou como tratava-se de criar uma ética e uma estética para
imagens de dor e revolta sem, contudo “estetizar” a dor, a
miséria e a violência. Já nos filmes clássicos dos anos 1960
criou-se uma estética
da crueza
e do sertão, trabalhada na montagem, no corte seco, no interior da
imagem e do quadro, na luz estourada, na fotografia contrastada, no
uso da câmera na mão, em todos os níveis da narrativa. Se a
estética cinemanovista tinha por objetivo evitar a folclorização
da miséria, a retomada precisa desligar a
violência de seu estatuto existencial-reinvindicativo, criando de
modo correlato, uma “cosmética da fome”. Uma alternativa é
fazer a violência adquirir a estrutura de muro, com sua negação
silenciosa de acesso, com sua limitação territorial, dando
materialidade a forma de lei em exceção permanente.
Ao contrário do cinema novo, na
Retomada a violência separa-se da determinação ética,
afastando-se também do ambiente social de onde ela nasce. Para fazer
isso, é preciso entender que o contexto passa a ter outra função
que não a de caracterizar personagens. “Ele tende a produzir um
efeito de distanciamento, que, quando expõe a ação, também a
critica e disseca”. É assim que a violência se banaliza como
cenário e surgem histórias que são entregues ao espectador de
forma naturalista, com materiais reais e baseados nas regras da
verossimilhança para a composição da imagem - o que pode
apresentar efeito pernicioso sobre a representação, pois é como se
cenas carregadas de “autenticidade pornográfica” e “violência
sensorial” ocorressem a todo instante, em toda esquina das cidades
brasileiras. Como se os habitantes de periferias e favelas fossem
naturalmente violentos e como se o olhar do espectador demandasse
violência, aliás, fato social notável a parti da ascensão, neste
período, dos programas televisivos “catárticos” em torno do
tema. Mas justamente se trataria de mostrar como nem toda catarse é
apenas vivência indireta de uma fantasia de vingança, que
incremente o medo e a dependência em vez de criar as verdadeiras
condições para uma catarse capaz de desintegrar as narrativas das
quais depende e re-nomear o mal-estar da qual emerge.
Por exemplo, em Terra em
Transe, de 1969, a cena do confronto entre policiais e camponeses
evolui para a violência simbólica. A câmera é inquieta, o
silêncio causa tensão; no enquadramento, a população está sempre
num plano mais baixo do que os integrantes do governo. Quando um
segundo trabalhador sai do meio da massa e pede licença para falar,
a tensão torna-se ainda maior; então, ele começa: “O povo sou
eu, que tenho sete filhos pra criar e não tenho onde morar”.
Esse trabalhador anônimo é subjugado pelos seguranças do
governador, passam-lhe uma corda no pescoço, um cano de revólver é
introduzido em sua boca. Rendido, ele se cala e é morto. Mas a cena
do assassinato não é mostrada. Fica o incômodo. Essa não-imagem
choca e revolta, ela trabalha em ausência. Não é uma violência
explícita, não é uma brutalidade espetacularizada, contudo, essa
morte não filmada incomoda profundamente pelo que revela de
invisibilidade. Em outras palavras, o que Terra em Transe faz
é posicionar-se frente ao golpe militar de 1964, discutindo a ilusão
da proximidade dos intelectuais em relação às classes populares,
por meio de uma invenção formal, que pretende violentar o olhar,
impedindo que ele se mantenha passivo diante da realidade política
do País. Ou seja, a câmera induz mal-estar, por meio de estratégias
de indeterminação do sentido tais como a subtração da imagem, a
repetição do tema, a deformação das condições de produção da
mensagem (como a trilha sonora tendencialmente incongruente).
Comparemos esta cena com
a cena de Cidade de Deus onde o traficante mais poderoso do
morro, Zé Pequeno, quer aplicar uma lição nas crianças da favela,
acuando um grupo delas em um dos becos da favela Cidade de Deus. Ele
escolhe o menor dos garotos – com cerca de quatro anos - e pergunta
se o menino quer receber um tiro no pé ou na mão. Chorando, a
criança estende a mão, mas Zé Pequeno atira no pé. A criança
grita e chora desesperada. Não satisfeito, Zé Pequeno oferece a
arma a outro garoto – com cerca de seis anos - e ordena-lhe que
escolha um dos amigos para matar. O menino titubeia; mas, apavorado,
aceita a arma, escolhe um amigo e atira.
Também em Central do
Brasil, podemos encontrar a cena do jovem que comete um pequeno
furto em uma barrada de um camelô da estação Central do Brasil
fugindo em disparada na direção dos trilhos, sendo perseguido às
carreiras por dois seguranças ferroviários. Ao alcançá-lo, um dos
homens é impiedoso, atira à queima-roupa na cabeça do rapaz,
matando-o na hora. Mas a cena é retratada com lentidão, enquanto a
testemunha preocupa-se em espantar os olhares transeuntes o assassino
age com apatia e desprezo.
Em Central do Brasil, o
curioso é que, quando a trama avança, os personagens Dora e Josué
vão deixando para trás o centro urbano sinistro e nefasto rumo ao
campo idealizado e conciliador. Para Dora essa trajetória marcará a
expurgação da maldade, pois ela possui índole má e cafajeste na
medida em que pratica a ação de levar Josué ao sertão, para o
encontro do pai. No trajeto Dora se transforma, como consequência
inexorável de uma seu ato inicial, contingente e improvável. Ela
vai adquirindo uma aura quase santa, de mulher redimida, ela se torna
alguém melhor quando ajuda o menino. O ponto alto dessa conversão é
o transe da personagem numa sala de milagres, já no sertão
brasileiro. Entre velas, santos e rezas, Dora desmaia, e, quando
acorda, está deitada no colo de Josué - mas agora pronta para uma
nova postura diante da vida. O acontecimento da religiosidade, porém,
não tem qualquer amarra mais aprofundada com a narrativa. Parece,
portanto, que estamos diante de uma alternativa polar em Central
do Brasil, pois a personagem tem duas opções: ser boa e
consciente ou má e trapaceira, levar se pela indiferença ou
afetar-se pela piedade. O filme não permite a contradição em Dora,
fora das escolhas morais. Outro dado importante é que, se em Central
do Brasil o sertanejo é apresentado como solidário e cordial,
nada é discutido sobre a situação de pobreza em que ele vive ou
sobre a miséria do sertão que ele habita.
Considerado um dos pais da
filosofia da linguagem Gotlob Frege3
descreveu o funcionamento lógico das proposições ao modo de uma
função pluri-unívoca. O exemplo clássico é a expressão “estrela
da tarde” que denota o mesmo objeto que a “estrela da noite”,
que é também chamada de “Vesper” e que no limite aponta para um
único objeto: o planeta
marte (sem aspas).
Todas as nomeações variáveis compõe os diferentes sentidos (Sinn)
que conotam de modo convergente a mesma significação (Bedeutung).
A noção de sentido pode ser associada à universalidade composta
pelos elementos de um conjunto [para todo x - função de x] enquanto
a noção de significação ou referência pode ser associada com o
quantificador existencial [existe pelo menos um x - função de x].
Lacan4
utilizou o esquema de Frege para abordar um problema adicional. A
existência de funções particulares da língua que perturbam a
relação habitual entre sentido e significação, a saber, os nomes
próprios. O conceito de Nome-do-Pai desenvolvido para reinterpretar
a concepção freudiana de complexo de Édipo, em termos da operação
linguística da metáfora, está envolvido crucialmente na função
doa nomes próprios. A incidência da função dos nomes próprios
nos permite entender porque e sob quais circunstâncias uma rede de
narrativas sobre o sofrimento se articula em torno de um
significante, que não precisa ser um nome próprio, mas algumas
vezes o é, por exemplo, quando falamos em Mal de Parkinson ou
Síndrome de Bonnet. Ocorre que uma palavra corrente do léxico pode
ser usada como um nome próprio. A partir de então uma espécie de
compreensão imediata será realizada, determinando efeitos
vocativos, de articulação de demanda e indicativos, semelhantes ao
que encontramos na metáfora do nome do pai, só que aqui falamos em
metaforização do mal-estar, operação social, por meio da qual
nossas narrativas sobre o sofrimento de organizam de tal maneira a
nomear o mal-estar, que pode definição corresponde ao que não pode
ser nomeado, como a significação (Bedeutung)
em Frege.
Mas a função do nome próprio
não é importante apenas porque cria uma estrutura de ficção
convergente entre as diferentes narrativas do sofrimento, indexando
todas elas a um fragmento de verdade. Os nomes próprios seriam um
caso de intromistura da função da letra no interior das relações
entre língua e fala. O nome-do-pai possuiria, enquanto letra, esta
função de produzir uma unidade, ou um anelamento entre os registros
do real, simbólico e imaginário.
É por isso que ao mesmo tempo a
violência é de um lado um bloqueio ou suspensão das relações
simbólicas de reconhecimento, dos semblantes imaginários da
“cosmética da fome”, sem falar do núcleo real do antagonismo
social. O mal-estar que é nomeado por “a-violência” acaba
subsumindo e subordinando todas as outras formas de conflito: de
classe, de gênero, de aspirações ideacionais, e todas as formas de
violência: contra a mulher, contra a criança, contra o pobre. É
assim, pela pregnância de um mesmo traço, que adquire a função de
unir uma série e mantê-la sob uma mesma significação, que a
super-visibilidade de a-violência mantém opaca outras formas de
apresentação do conflito. Isso não quer dizer que “não há
violência” ou que ela esteja sendo super ou sub-estimada, mas que
ela toma parte em um dispositivo, em uma gramática gerativa e
interpretativa do sofrimento. De maneira inversa, todas as formas
particulares de violência, por exemplo, contra ou em nome da lei,
contra ou a favor de minorias, contra ou a favor da repressão ao
crime, contra ou a favor da ordem, contra ou a favor de resistências
políticas, contra ou a favor de demandas de transformação social,
são unificadas em torno do mal-estar, agora nomeado e indistinto
como “a violência”.
O problema da sutura sintomática
produzida pela nomeação do mal-estar é que ela só nos permite
engendrar uma relação de catarse integrativa com as narrativas do
sofrimento. Este é o caso da narrativa de vingança, ligada à
problemática da violação do pacto e da traição; ou da narrativa
do ressentimento, ligada ao tema da alienação do desejo, tão
penetrantemente exploradas pelo cinema brasileiro da retomada.
Neste sentido
Central
do Brasil
de Walter Sales (1998) é um marco da desessencialização do caráter
nacional brasileiro. A história de um menino em busca de seu pai,
ajudado por uma mulher que detém os meios de produzir este encontro,
ou seja, uma mulher que sabe ler. Sua posição inicialmente
predatória, como proprietária deste bem cultural contextualmente
escasso (a leitura), inverte-se pela filiação que ela se dedica a
produzir. Como em outros filmes de Walter trata-se do percurso de
formação como viagem sobrepõe-se à importância do ponto de
partida ou ponto de chegada, como em Diários
de Motocicleta
(2004), Cão
sem Dono
(2007)
e
Linha
de Passe
(2008).
A viagem sem paradeiro é a própria metáfora fundamental do
sofrimento de indeterminação. O tema do encontro insólito,
circunscrito no tempo e na eventualidade no espaço recupera
sistematicamente a figura simbólica da criança ou do adolescente
como expressão do vir a ser. A viagem opõe-se quase naturalmente ao
condomínio. Ela é uma experiência de contato e não apenas de
separação. Sobre o protagonista pesam sistematicamente as
exigências e o trabalho requerido pela dinâmica do reconhecimento.
Os filmes de Walter Sales tem em comum este estado de suspensão e de
indeterminação da lei, necessário para a articulação do desejo.
Na mais pura tradição de reflexão sobre a liberdade negativa é a
utopia que se vê recorrentemente indicada. A pequena utopia daquele
que ao procurar se lugar acaba por encontrar o lugar de todos.
O outro lado
moebiano do novo cinema novo pode ser representado pelo trabalho de
Beto Brant. Aqui não se trata da viagem para fora do condomínio,
mas de sua implosão. Se Walter Sales é o cineasta do desejo Beto
Brand é câmera do gozo. A começar por Ação
entre Amigos,
também de 1998,
mas principalmente em O
Invasor
(2001)
encontramos a temática da irrupção do bizarro e do estranho dentro
revelando a insanidade do fechamento discursivo de uma experiência.
É uma cinema irônico, não só pelas narrativas baseadas em
personagens improváveis, mas pela possibilidade de estabelecer um
universo tão fechado que nos força a nos reconhecermos em sua
pequenês. A meta-narativa em curso aqui é a da guerra. O conflito
de todos contra todos, como metáfora do mercado. Aqui encontramos a
aparição, dentro de um lugar, a casa bem estabelecida de um rico
habitante da classe alta de São Paulo, de um personagem periférico,
o invasor. Se Walter Sales pensava na liberdade negativa da
exploração de fronteiras, Beto Brant investe na liberdade positiva
decorente da aparição insólita do obceno no interior do seguro,
tema que reaparece ainda em Crime
Delicado
(2007).
No limite Beto Brant retrata uma hipérbole da auto-realização,
uma auto-realização que torna-se irônica por recusar sua inscrição
em dinâmicas de reconhecimento.
Entre a
violência como experiência de reconhecimento (Walter Salles) e a
violência como experiência de autorealização (Beto Brant) podemos
localizar a-violência como torção entre uma e outra. É o que
vemos no cinema de Fernando Meirelles. Lembremos de sua aparição
inicial em Domésticas
(2001) que antecede o sucesso de Cidade
de Deus
(2002). Menos do que um filme sobre a pobreza ou a violência, dois
signos maiores da cultura do risco, encontramos aqui uma estratégia
de elevação do particular ao universal. A reversão da forma
alia-se a uma inversão do conteúdo. Talvez seja por siso que nas
produções internacionalizadas, como O
Jardineiro Fiel
(2005) e Ensaio
Sobre a Cegueira
(2008), encontramos tanto o tema do insólito no interior do
conhecido, quanto o tema da viagem ao interior de si. Na adaptação
do romance de Saramago a lógica do condomínio aparece sintetizada.
Pessoas são tomadas de forma aleatória e indeterminada por uma
repentina cegueira. A cegueira, é claro, nos remete ao próprio
estado de devolução da miséria em seu aspecto segregatório. É o
objeto a que se revela aqui em seu aspecto de visão. A favela, a
miséria africana, a vida doméstica concernida pelas empregadas, os
prisioneiros cegos, estamos sempre em espaços fechados, lugares
murados, por muros visíveis ou invisíveis. Além disso, descreve-se
o processo mesmo de condominização, os cegos de nascença
explorando os cegos secundários, o empreendimento da própria
miséria como um negócio. Seja ele o negócio das armas, o negócio
das drogas, o negócio chamado cinema. Se Walter Sales faz o cinema
desejo e Beto Brant responde pela superfície do gozo, Fernando
Meireles trabalha na zona de passagem entre um e outro, ou seja, este
amálgama chamado amor. Não é o amor primário ligado à família,
nem o amor secundário, ligado ao reconhecimento, mas o amor capaz de
inscrever uma forma típica da ética no interior do objeto cultural:
a ética da amizade. É esta enunciação moral na errância deste
pequeno grupo de cegos comandados por uma mulher, que vê.
Podemos agora sintetizar o que
estas três tendências acusam em termos de da função pluri-univoca
de a-violência como nomeação do mal-estar:
- Ausência de tematização direta da violência de Estado ou de suas instituições [a onipresença do fracasso do Estado].
- A homogenização da violência nas fronteiras público-privado a serviço da crítica e da resistência [a vida íntima do revolucionário].
- A crítica da violência simbólica representada pelos ideais de ajustamento: monogamia, heterosexualidade e da satisfação genital [falocentrismo, logocentrismo].
- Centralidade do cotidiano e da violência sistêmica [o incesto, o tráfico].
- A construção da oposição entre estética da guerra e estética da viagem como narrativas de referência [a valorização da metáfora e da alegoria].
- A recuperação do universal [a criança], do encontro inesperado [o amor], do ato indiscernível [o herói imprevisível], do fracasso produtivo [ficção], da rememoração da história [documentário] como figuras espontâneas do tratamento de a-violência, por meio do desmembramento das narrativas que compõe, de modo pluri-unívoco a verdade ao real da violência.
1 Bentes,
Ivana (2002) “Cidade de Deus” promove Passeio no Inferno. O
Estado de São Paulo
http://www.consciencia.net/2003/08/09/ivana.html
4
Lacan, J. (1964-1965) O
Seminário Livro XII Problemas Cruciais da Psicanálise.
Centro de Estudos Freudianos.
O Invasor - completo
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011)
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