quinta-feira, 11 de julho de 2013

A Violência como Nome Pluri-Unívoco do Mal-Estar

A Retomada do Cinema Brasileiro : 2º capítulo da mini-série  
de Christian Ingo Lenz Dunker

Para o cinema da Retomada a violência deixa de ter estatuto existencial-reinvindicativo. Ela não é mais o campo de provas para a determinação do desequilíbrio social, da distribuição inequitativa de renda ou de bens simbólicos, mas surge como um brutalismo que teria como base em:
(...) altas descargas de adrenalina, reações por segundo criadas pela montagem (...) as bases do prazer e da eficácia do filme norte-americano de ação onde a violência e seus estímulos sensoriais são quase da ordem do alucinatório, um gozo imperativo e soberano em ver, infligir e sofrer a violência”1
A violência passa a correr o risco permanente de estetização, por meio da qual ela é transformada, portanto, em “teleshow” da realidade, que pode ser consumido com extremo prazer, mostrando-se randômica, destituída de sentido e chegando à pura espetacularidade. Ivana Bentes2 já apontou como tratava-se de criar uma ética e uma estética para imagens de dor e revolta sem, contudo “estetizar” a dor, a miséria e a violência. Já nos filmes clássicos dos anos 1960 criou-se uma estética da crueza e do sertão, trabalhada na montagem, no corte seco, no interior da imagem e do quadro, na luz estourada, na fotografia contrastada, no uso da câmera na mão, em todos os níveis da narrativa. Se a estética cinemanovista tinha por objetivo evitar a folclorização da miséria, a retomada precisa desligar a violência de seu estatuto existencial-reinvindicativo, criando de modo correlato, uma “cosmética da fome”. Uma alternativa é fazer a violência adquirir a estrutura de muro, com sua negação silenciosa de acesso, com sua limitação territorial, dando materialidade a forma de lei em exceção permanente.
Ao contrário do cinema novo, na Retomada a violência separa-se da determinação ética, afastando-se também do ambiente social de onde ela nasce. Para fazer isso, é preciso entender que o contexto passa a ter outra função que não a de caracterizar personagens. “Ele tende a produzir um efeito de distanciamento, que, quando expõe a ação, também a critica e disseca”. É assim que a violência se banaliza como cenário e surgem histórias que são entregues ao espectador de forma naturalista, com materiais reais e baseados nas regras da verossimilhança para a composição da imagem - o que pode apresentar efeito pernicioso sobre a representação, pois é como se cenas carregadas de “autenticidade pornográfica” e “violência sensorial” ocorressem a todo instante, em toda esquina das cidades brasileiras. Como se os habitantes de periferias e favelas fossem naturalmente violentos e como se o olhar do espectador demandasse violência, aliás, fato social notável a parti da ascensão, neste período, dos programas televisivos “catárticos” em torno do tema. Mas justamente se trataria de mostrar como nem toda catarse é apenas vivência indireta de uma fantasia de vingança, que incremente o medo e a dependência em vez de criar as verdadeiras condições para uma catarse capaz de desintegrar as narrativas das quais depende e re-nomear o mal-estar da qual emerge.
Por exemplo, em Terra em Transe, de 1969, a cena do confronto entre policiais e camponeses evolui para a violência simbólica. A câmera é inquieta, o silêncio causa tensão; no enquadramento, a população está sempre num plano mais baixo do que os integrantes do governo. Quando um segundo trabalhador sai do meio da massa e pede licença para falar, a tensão torna-se ainda maior; então, ele começa: “O povo sou eu, que tenho sete filhos pra criar e não tenho onde morar”. Esse trabalhador anônimo é subjugado pelos seguranças do governador, passam-lhe uma corda no pescoço, um cano de revólver é introduzido em sua boca. Rendido, ele se cala e é morto. Mas a cena do assassinato não é mostrada. Fica o incômodo. Essa não-imagem choca e revolta, ela trabalha em ausência. Não é uma violência explícita, não é uma brutalidade espetacularizada, contudo, essa morte não filmada incomoda profundamente pelo que revela de invisibilidade. Em outras palavras, o que Terra em Transe faz é posicionar-se frente ao golpe militar de 1964, discutindo a ilusão da proximidade dos intelectuais em relação às classes populares, por meio de uma invenção formal, que pretende violentar o olhar, impedindo que ele se mantenha passivo diante da realidade política do País. Ou seja, a câmera induz mal-estar, por meio de estratégias de indeterminação do sentido tais como a subtração da imagem, a repetição do tema, a deformação das condições de produção da mensagem (como a trilha sonora tendencialmente incongruente).
Comparemos esta cena com a cena de Cidade de Deus onde o traficante mais poderoso do morro, Zé Pequeno, quer aplicar uma lição nas crianças da favela, acuando um grupo delas em um dos becos da favela Cidade de Deus. Ele escolhe o menor dos garotos – com cerca de quatro anos - e pergunta se o menino quer receber um tiro no pé ou na mão. Chorando, a criança estende a mão, mas Zé Pequeno atira no pé. A criança grita e chora desesperada. Não satisfeito, Zé Pequeno oferece a arma a outro garoto – com cerca de seis anos - e ordena-lhe que escolha um dos amigos para matar. O menino titubeia; mas, apavorado, aceita a arma, escolhe um amigo e atira.
Também em Central do Brasil, podemos encontrar a cena do jovem que comete um pequeno furto em uma barrada de um camelô da estação Central do Brasil fugindo em disparada na direção dos trilhos, sendo perseguido às carreiras por dois seguranças ferroviários. Ao alcançá-lo, um dos homens é impiedoso, atira à queima-roupa na cabeça do rapaz, matando-o na hora. Mas a cena é retratada com lentidão, enquanto a testemunha preocupa-se em espantar os olhares transeuntes o assassino age com apatia e desprezo.
Em Central do Brasil, o curioso é que, quando a trama avança, os personagens Dora e Josué vão deixando para trás o centro urbano sinistro e nefasto rumo ao campo idealizado e conciliador. Para Dora essa trajetória marcará a expurgação da maldade, pois ela possui índole má e cafajeste na medida em que pratica a ação de levar Josué ao sertão, para o encontro do pai. No trajeto Dora se transforma, como consequência inexorável de uma seu ato inicial, contingente e improvável. Ela vai adquirindo uma aura quase santa, de mulher redimida, ela se torna alguém melhor quando ajuda o menino. O ponto alto dessa conversão é o transe da personagem numa sala de milagres, já no sertão brasileiro. Entre velas, santos e rezas, Dora desmaia, e, quando acorda, está deitada no colo de Josué - mas agora pronta para uma nova postura diante da vida. O acontecimento da religiosidade, porém, não tem qualquer amarra mais aprofundada com a narrativa. Parece, portanto, que estamos diante de uma alternativa polar em Central do Brasil, pois a personagem tem duas opções: ser boa e consciente ou má e trapaceira, levar se pela indiferença ou afetar-se pela piedade. O filme não permite a contradição em Dora, fora das escolhas morais. Outro dado importante é que, se em Central do Brasil o sertanejo é apresentado como solidário e cordial, nada é discutido sobre a situação de pobreza em que ele vive ou sobre a miséria do sertão que ele habita.
Considerado um dos pais da filosofia da linguagem Gotlob Frege3 descreveu o funcionamento lógico das proposições ao modo de uma função pluri-unívoca. O exemplo clássico é a expressão “estrela da tarde” que denota o mesmo objeto que a “estrela da noite”, que é também chamada de “Vesper” e que no limite aponta para um único objeto: o planeta marte (sem aspas). Todas as nomeações variáveis compõe os diferentes sentidos (Sinn) que conotam de modo convergente a mesma significação (Bedeutung). A noção de sentido pode ser associada à universalidade composta pelos elementos de um conjunto [para todo x - função de x] enquanto a noção de significação ou referência pode ser associada com o quantificador existencial [existe pelo menos um x - função de x].
Lacan4 utilizou o esquema de Frege para abordar um problema adicional. A existência de funções particulares da língua que perturbam a relação habitual entre sentido e significação, a saber, os nomes próprios. O conceito de Nome-do-Pai desenvolvido para reinterpretar a concepção freudiana de complexo de Édipo, em termos da operação linguística da metáfora, está envolvido crucialmente na função doa nomes próprios. A incidência da função dos nomes próprios nos permite entender porque e sob quais circunstâncias uma rede de narrativas sobre o sofrimento se articula em torno de um significante, que não precisa ser um nome próprio, mas algumas vezes o é, por exemplo, quando falamos em Mal de Parkinson ou Síndrome de Bonnet. Ocorre que uma palavra corrente do léxico pode ser usada como um nome próprio. A partir de então uma espécie de compreensão imediata será realizada, determinando efeitos vocativos, de articulação de demanda e indicativos, semelhantes ao que encontramos na metáfora do nome do pai, só que aqui falamos em metaforização do mal-estar, operação social, por meio da qual nossas narrativas sobre o sofrimento de organizam de tal maneira a nomear o mal-estar, que pode definição corresponde ao que não pode ser nomeado, como a significação (Bedeutung) em Frege.
Mas a função do nome próprio não é importante apenas porque cria uma estrutura de ficção convergente entre as diferentes narrativas do sofrimento, indexando todas elas a um fragmento de verdade. Os nomes próprios seriam um caso de intromistura da função da letra no interior das relações entre língua e fala. O nome-do-pai possuiria, enquanto letra, esta função de produzir uma unidade, ou um anelamento entre os registros do real, simbólico e imaginário.
É por isso que ao mesmo tempo a violência é de um lado um bloqueio ou suspensão das relações simbólicas de reconhecimento, dos semblantes imaginários da “cosmética da fome”, sem falar do núcleo real do antagonismo social. O mal-estar que é nomeado por “a-violência” acaba subsumindo e subordinando todas as outras formas de conflito: de classe, de gênero, de aspirações ideacionais, e todas as formas de violência: contra a mulher, contra a criança, contra o pobre. É assim, pela pregnância de um mesmo traço, que adquire a função de unir uma série e mantê-la sob uma mesma significação, que a super-visibilidade de a-violência mantém opaca outras formas de apresentação do conflito. Isso não quer dizer que “não há violência” ou que ela esteja sendo super ou sub-estimada, mas que ela toma parte em um dispositivo, em uma gramática gerativa e interpretativa do sofrimento. De maneira inversa, todas as formas particulares de violência, por exemplo, contra ou em nome da lei, contra ou a favor de minorias, contra ou a favor da repressão ao crime, contra ou a favor da ordem, contra ou a favor de resistências políticas, contra ou a favor de demandas de transformação social, são unificadas em torno do mal-estar, agora nomeado e indistinto como “a violência”.
O problema da sutura sintomática produzida pela nomeação do mal-estar é que ela só nos permite engendrar uma relação de catarse integrativa com as narrativas do sofrimento. Este é o caso da narrativa de vingança, ligada à problemática da violação do pacto e da traição; ou da narrativa do ressentimento, ligada ao tema da alienação do desejo, tão penetrantemente exploradas pelo cinema brasileiro da retomada.
Neste sentido Central do Brasil de Walter Sales (1998) é um marco da desessencialização do caráter nacional brasileiro. A história de um menino em busca de seu pai, ajudado por uma mulher que detém os meios de produzir este encontro, ou seja, uma mulher que sabe ler. Sua posição inicialmente predatória, como proprietária deste bem cultural contextualmente escasso (a leitura), inverte-se pela filiação que ela se dedica a produzir. Como em outros filmes de Walter trata-se do percurso de formação como viagem sobrepõe-se à importância do ponto de partida ou ponto de chegada, como em Diários de Motocicleta (2004), Cão sem Dono (2007) e Linha de Passe (2008). A viagem sem paradeiro é a própria metáfora fundamental do sofrimento de indeterminação. O tema do encontro insólito, circunscrito no tempo e na eventualidade no espaço recupera sistematicamente a figura simbólica da criança ou do adolescente como expressão do vir a ser. A viagem opõe-se quase naturalmente ao condomínio. Ela é uma experiência de contato e não apenas de separação. Sobre o protagonista pesam sistematicamente as exigências e o trabalho requerido pela dinâmica do reconhecimento. Os filmes de Walter Sales tem em comum este estado de suspensão e de indeterminação da lei, necessário para a articulação do desejo. Na mais pura tradição de reflexão sobre a liberdade negativa é a utopia que se vê recorrentemente indicada. A pequena utopia daquele que ao procurar se lugar acaba por encontrar o lugar de todos.
O outro lado moebiano do novo cinema novo pode ser representado pelo trabalho de Beto Brant. Aqui não se trata da viagem para fora do condomínio, mas de sua implosão. Se Walter Sales é o cineasta do desejo Beto Brand é câmera do gozo. A começar por Ação entre Amigos, também de 1998, mas principalmente em O Invasor (2001) encontramos a temática da irrupção do bizarro e do estranho dentro revelando a insanidade do fechamento discursivo de uma experiência. É uma cinema irônico, não só pelas narrativas baseadas em personagens improváveis, mas pela possibilidade de estabelecer um universo tão fechado que nos força a nos reconhecermos em sua pequenês. A meta-narativa em curso aqui é a da guerra. O conflito de todos contra todos, como metáfora do mercado. Aqui encontramos a aparição, dentro de um lugar, a casa bem estabelecida de um rico habitante da classe alta de São Paulo, de um personagem periférico, o invasor. Se Walter Sales pensava na liberdade negativa da exploração de fronteiras, Beto Brant investe na liberdade positiva decorente da aparição insólita do obceno no interior do seguro, tema que reaparece ainda em Crime Delicado (2007). No limite Beto Brant retrata uma hipérbole da auto-realização, uma auto-realização que torna-se irônica por recusar sua inscrição em dinâmicas de reconhecimento.
Entre a violência como experiência de reconhecimento (Walter Salles) e a violência como experiência de autorealização (Beto Brant) podemos localizar a-violência como torção entre uma e outra. É o que vemos no cinema de Fernando Meirelles. Lembremos de sua aparição inicial em Domésticas (2001) que antecede o sucesso de Cidade de Deus (2002). Menos do que um filme sobre a pobreza ou a violência, dois signos maiores da cultura do risco, encontramos aqui uma estratégia de elevação do particular ao universal. A reversão da forma alia-se a uma inversão do conteúdo. Talvez seja por siso que nas produções internacionalizadas, como O Jardineiro Fiel (2005) e Ensaio Sobre a Cegueira (2008), encontramos tanto o tema do insólito no interior do conhecido, quanto o tema da viagem ao interior de si. Na adaptação do romance de Saramago a lógica do condomínio aparece sintetizada. Pessoas são tomadas de forma aleatória e indeterminada por uma repentina cegueira. A cegueira, é claro, nos remete ao próprio estado de devolução da miséria em seu aspecto segregatório. É o objeto a que se revela aqui em seu aspecto de visão. A favela, a miséria africana, a vida doméstica concernida pelas empregadas, os prisioneiros cegos, estamos sempre em espaços fechados, lugares murados, por muros visíveis ou invisíveis. Além disso, descreve-se o processo mesmo de condominização, os cegos de nascença explorando os cegos secundários, o empreendimento da própria miséria como um negócio. Seja ele o negócio das armas, o negócio das drogas, o negócio chamado cinema. Se Walter Sales faz o cinema desejo e Beto Brant responde pela superfície do gozo, Fernando Meireles trabalha na zona de passagem entre um e outro, ou seja, este amálgama chamado amor. Não é o amor primário ligado à família, nem o amor secundário, ligado ao reconhecimento, mas o amor capaz de inscrever uma forma típica da ética no interior do objeto cultural: a ética da amizade. É esta enunciação moral na errância deste pequeno grupo de cegos comandados por uma mulher, que vê.
Podemos agora sintetizar o que estas três tendências acusam em termos de da função pluri-univoca de a-violência como nomeação do mal-estar:
  1. Ausência de tematização direta da violência de Estado ou de suas instituições [a onipresença do fracasso do Estado].
  2. A homogenização da violência nas fronteiras público-privado a serviço da crítica e da resistência [a vida íntima do revolucionário].
  3. A crítica da violência simbólica representada pelos ideais de ajustamento: monogamia, heterosexualidade e da satisfação genital [falocentrismo, logocentrismo].
  4. Centralidade do cotidiano e da violência sistêmica [o incesto, o tráfico].
  5. A construção da oposição entre estética da guerra e estética da viagem como narrativas de referência [a valorização da metáfora e da alegoria].
  6. A recuperação do universal [a criança], do encontro inesperado [o amor], do ato indiscernível [o herói imprevisível], do fracasso produtivo [ficção], da rememoração da história [documentário] como figuras espontâneas do tratamento de a-violência, por meio do desmembramento das narrativas que compõe, de modo pluri-unívoco a verdade ao real da violência.
1 Bentes, Ivana (2002) “Cidade de Deus” promove Passeio no Inferno. O Estado de São Paulo http://www.consciencia.net/2003/08/09/ivana.html
2 1999: 87- 3 Frege, G. (1892) Sentido e Referência. Perspectiva, São Paulo, 1998.
4 Lacan, J. (1964-1965) O Seminário Livro XII Problemas Cruciais da Psicanálise. Centro de Estudos Freudianos.


O Invasor - completo

Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011)

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