de
Henrique Senhorini
Que
não é o que não pode ser que
Não
é o que não pode
Ser
que não é
O
que não pode ser que não
É
o que não
Pode
ser
Que
não
É
...
Arnaldo Antunes
Arnaldo Antunes
Foi
com o auxilio desta
poesia de Arnaldo Antunes que escolhi o caminho para iniciar uma
leitura possível, entre várias, para este filme que é o que não
pode ser que é... Mas, o que não pode ser? Não pode ser
“blockbuster” californiano por ser parisiense... Não pode ser
francês por ser hollywoodiano demais... Mas, não é? E foi com
uma pré-ideia, apoiada em meus pré-conceitos estereotipadores - um
filme francês (intelectual) com cara e jeito de Hollywood (tolinho)
- que me preparei para o cinema.
Uma
pré-impressão que ficou mais fortalecida pelo cartaz do filme que
vi, na entrada do cinema, dizendo tratar-se
de
uma
história real inspirada no livro
de Philippe Pozzo di Borgo, O
Segundo Suspiro.
Uma história sobre a relação entre um aristocrata
branco parisiense, rico, culto, refinado, tetraplégico e um negro de
gueto periférico, pobre, marginal, inculto, rude, atlético oriundo
das colônias francesas africanas. Um
filme sobre caricaturas, pensei. Porém, logo em seguida, me dei
conta que ainda não o havia assistido e, portanto, sobre ele nada
sabia, da mesma maneira como lidamos nas nossas clínicas em relação
aos pacientes: podemos ser doutos, porém ignorantes.
É
o que não pode ser, é o que pode ser?
E
no filme assistimos várias situações semelhantes a essa, dentre
elas o nascimento e crescimento de uma amizade improvável. Uma
amizade entre dois opostos, dois estrangeiros que compartilham muitas
coisas, cada qual a sua maneira, como o fato de, talvez o mais
evidente, serem marcados pelas aparências. Aparências estas que os
posicionam, no contexto social, na periferia do mundo dos ditos
“normais”. Um é rico, mas paralítico. Outro é esperto, mas
negro. Ambos aleijados da completude exigida pelo padrão normativo
superficial midiático da contemporaneidade, que se impõe de forma
imperativa. Puro ilusionismo, pois o que é completo? E é por essa
via que vou tentar expor o meu pensamento sobre o que considero ser
um dos mais fortes laço social: a amizade.
Ser
o que é / é o que não pode? Uma amizade entre Driss e Philippe,
simplesmente pelo fato dos dois serem tão diferentes e de mundos tão
distintos, não pode ocorrer numa sociedade regida por padrões tão,
no mínimo, preconceituosos... preconceitos que hoje, na
contemporaneidade, estão encobertos pelo manto da hipocrisia do
politicamente correto. Pois é ...também pode.
um
parênteses
Isso
me faz lembrar um comentário que li por aí sobre preconceitos, que
diz algo próximo disso: “é mais fácil, depois de Einstein,
quebrar um átomo ao meio que um preconceito”.
Bem,
a história entre os dois tem início quando Driss se candidata à vaga
de cuidador de Philippe. Durante o processo de seleção, a seguinte
pergunta é colocada: “Qual é o teu principal estímulo para
querer ocupar a vaga?”
E
aí assistimos um curioso repertório de respostas, desde as mais
diretas: “é o dinheiro”, passando pelas dissimuladas: “gosto
do bairro” e também pelas benevolentemente perfeitas: “humanidade,
faço tudo por humanidade” e “para ajudar a autonomia dos
deficientes”. Ah... tem ainda as, no mínimo, esquisitas e ou
suspeitas: “amo os deficientes desde criança”. E nem vou
mencionar os discursos, que acompanhavam as respostas, feitos de
palavras belas desfiladas pelas bocas dos selecionáveis.
Philippe,
que assistia as entrevistas furiosamente
calmo insatisfeito, demonstrava toda sua empolgação com um peculiar
olhar de peixe morto. Parecia saber que somente lindas
palavras não modificam nada, não fazem atos. E assim, o cansativo
desfile dos pretendentes a vaga progredia em sua ordenação até ser
abruptamente interrompido por Driss, que não suportou seguir o
roteiro. Este entra em cena cortando a ordenação e apresenta um
papel, batendo na mesa da secretária dizendo: “Eu vim para ter o
documento (é um documento que comprova que está procurando emprego
para ter acesso ao seguro social) assinado", querendo
evidenciar, assim eu li a cena, que não se sentiu estimulado e ou
seduzido pela oferta de emprego e nem movido por uma falsa compaixão.
Um primeiro ato?
um
outro parênteses aqui
De
acordo com Quinet, em seu livro Psicose e Laço Social, o ato
“é, segundo Lacan, um dizer que funda um fato”, sendo esse dizer
não propriamente da ordem da fala.
E
diferente das outras entrevistas, esta não-entrevista de emprego
parece ter produzido um fato.
Ainda
sobre este encontro primeiro, ambos travam um curto embate sobre quem
sabe mais sobre música (ou seria sobre quem tinha o pipi maior?).
Bem, fica combinado que Driss retornaria no outro dia para buscar o
documento devidamente assinado.
Assim
o filme segue e no intervalo de tempo entre o primeiro encontro e o
segundo nos é mostrado como Driss, mesmo não estando tetraplégico,
também se encontra muito limitado em seus movimentos na vida, sem
lugar no seu mundo familiar, sem lugar na cadeia de significantes dos
nomes próprios - sim, Driss não é seu verdadeiro nome – e com um
cardápio reduzido nas formas de gozo mais, diria, inteligentes do
que a de passar a noite se drogando. Enfim, privado de “quase”
tudo. Privado até de desejar? O Philippe também?
mais
parênteses
Quinet
nos lembra que “o mal-estar da civilização é o mal-estar dos
laços sociais” chamados também por Lacan de “discursos tecidos
e estruturados pela linguagem” e estes, os discursos, sendo as
quatro formas das pessoas se relacionarem entre si - governar
(discurso do mestre/senhor), educar (discurso universitário),
psicanalisar (discurso do analista) e fazer desejar (discurso
histérico) - e que também se expressam nos vínculos de amizade.
Ah...
o discurso do capitalista, caracterizado pela foraclusão da
castração, está fora desta relação, pois é um discurso que não
faz laço social, visto que o sujeito só se relaciona com os
objetos-mercadoria, comandado pelo significante mestre “capital”.
Voltando
ao filme, Driss,
na manhã seguinte, retorna a mansão e sem se deixar capturar
pelo que lhe é oferecido, encontra Philippe sendo cuidado pelos
outros. Este lhe diz onde está o documento assinado e dispara, como
um dardo, uma questão em direção ao Driss, talvez como tentativa
de afetá-lo a ponto de rever sua decisão: “Como é ser forçado a
depender dos outros para viver?” Driss acusa o golpe respondendo:
“Como?” Philippe, de bate-pronto, dispara o segundo dardo: “Não
se envergonha de viver do trabalho dos outros?”, desta vez mirando
a jugular de seu suposto oponente. Driss, movendo os ombros tipo “não
tô nem aí”, também responde com a mesma intenção: “Me sinto
legal, e você?” Com a resposta, quiçá esperada, Philippe, após
mostrar um leve sorriso maroto e amarelo, muda o tom e lança a
proposta de emprego como um grande desafio: “Aposto que você não
aguenta duas semanas”. Estratégia? Um segundo ato?
Bem,
a proposta com formato de desafio é aceita e o que assistimos, a
partir disso, é o crescente relacionamento entre Driss e Philippe
até chegar num forte laço social de amizade.
E
como eles conquistam esta, diria até então, improvável amizade e
cumplicidade? Amizade implica cumplicidade?
É
sabido, até por nossas próprias histórias, que o laço de amizade
é bem distinto dos outros laços sociais, principalmente do
familiar. Neste último não exercemos muito o privilégio da
escolha. Não escolhemos nossos parentes e muito menos o lugar que
iremos ocupar nessa cadeia parental, hierarquizada pela autoridade.
Uma vez filho de fulano e sobrinho do sicrano assim será para
sempre, mesmo que os abandonemos. Há na família, na maioria pelo
menos, a predominância dos discursos de dominação, como o do
mestre e do universitário, que, juntamente com o discurso do
capitalista, são os geradores do nosso mal-estar na civilização.
Família, célula mater da sociedade. Diferente do discurso histérico
(predominante na amizade) e do analista (único laço social que
trata o outro como sujeito), chamados de discursos do “avesso da
civilização”, de acordo com Quinet, pois estes “levam a pulsão
em consideração”.
Ah...
um pequeno aparte
Todo
laço social que trata o outro como um mestre é um discurso
histérico. Aqui, histeria não se refere à neurose histérica, mas
a uma forma de humana de se relacionar na qual um provoca no outro o
desejo e a criação de um saber, que é o ocorre na maioria das
relações entre amigos, pois há uma troca constante de lugares, há
uma alter-nância.
Então,
todo e qualquer tipo de discurso, como laço social, é um modo de
dispor o gozo com a linguagem, visto que para vivermos em sociedade e
relacionarmos com as outras pessoas implica uma renúncia pulsional.
Portanto, todo laço social é um “enquadramento” da pulsão,
resultando em uma perda -uns mais e uns menos- real de gozo.
Lembremos que o gozo pulsional é sempre parcial. E a família -
insisto em dizer que na sua maioria, porém não-toda - está na
categoria dos laços que exigem maiores renúncias. Vocês se lembram
da cena na qual um familiar de Philippe o recrimina por seu novo modo
de vida e ainda responsabiliza Driss por esta transformação?
Já
a amizade, nem tanto assim. Pois, a amizade está fora, no mínimo
mais distante, do alcance
do “pai como articulador central dos dispositivos de autoridade”.
Está “para além da família como lugar de asfixia do desejo”,
aproveitando-me das palavras de Christian Dunker, mas num outro
contexto.
E
no desenvolver da amizade entre os dois protagonistas, nos é
mostrado exatamente isto: Philippe e Driss, cada um a seu modo,
provocando no outro o aparecimento do desejo. É, também, um
vendo-se no outro como um estranho familiar, apesar das diferenças
gritantes. Seria o ilustre (des)conhecido da filosofia e literatura,
o velho Alter - Alter Ego, que atende pelo nome de Duplo na
psicanálise, se apresentando? Um outro de si mesmo fora de si? É
bem provável. Aliás, seria bem interessante se conseguíssemos ser
nosso melhor amigo ao invés de sermos nosso próprio lobo, caso fosse possível.
um
outro aparte
Para
esta questão do duplo, Geraldino Alves Ferreira Netto, em seu artigo
“O eu e as identificações em Lacan” invoca Fernando Pessoa
(muitos dizem que seu alterego era o seu heterônimo Alberto Caeiro)
que diz tudo em poucas palavras: "Eu
vejo-me e estou sem mim, conheço-me e não sou eu (...) Começo a
conhecer-me. Não existo".
Retornando
ao filme, ao assistirmos o amadurecimento da amizade entre Driss e
Philippe e a importância da identificação, da identificação de
significante, do traço unário - que é o traço distintivo que está
na base de toda identificação - na constituição do laço de
amizade, percebemos que nela, na amizade, também cabe algo do amor.
De um tipo de amor diferente daquele dos nossos primeiros laços com
o pai, com a mãe, até por se opor as altas exigências de renúncias
de gozo impostos pelo limite dado pela autoridade, pelo Nome-do-Pai
que também é o que estrutura os laços sociais.
E
na amizade, temos a sensação que o limite pulsional imposto pela
castração, pela Lei simbólica do pai imaginário é mais flexível
e a impressão de sermos domesticados pela civilização se apresenta
diminuída em sua força, nos propiciando pensar que podemos quase
tudo. É por isso que o filme se concentra tanto nas cenas de
extremos tensionamentos desta linha que separa o que pode e o que não
pode, beirando a transgressão da Lei. Beirando, mas não
ultrapassando. Flertam, como forma de gozo, estes pontos balizadores
do limite da lei como os postos fiscais alfandegários existentes nas
fronteiras dos países. Não é sem limites, mas testando os limites.
Não
é a toa que o filme começa com a cena da perseguição policial ao
carro conduzido por eles numa velocidade altíssima, acima da
permitida pelas leis de trânsito. Tipo pequenas transgressões
juvenis que os permitem sentir o ar da graça, ao mesmo tempo em que
vão se autorizando - com a mesma ousadia dos portadores de um
espírito jovial - a experienciar outras formas de gozo, visto que
este não se deixa reduzir ao sexo, pois não se permite aprisionar
ao significante fálico e que “não há limites para o gozo”, o
que não é o mesmo de dizer que “seu campo não seja estruturado”,
nas palavras de Quinet. Ele, o gozo, se encontra até no ato de coçar
as orelhas.
Bem,
continuando, Driss e Philippe - agora amigos, parceiros e cumplices -
vão se fortalecendo na (re)descoberta da força do desejo. Vão se
re-inventado e reduzindo, como na clínica, o Nome-do-Pai. E já
disseram que a arte de se re-inventar é a capacidade de se perder,
de não ter medo de assumir riscos. Isto me faz levantar uma questão:
Nós precisamos de, diria, uma certa dose de indeterminação? Sim,
podem apostar!
E
eles, os novos amigos, vão abrindo mão das certezas, trocando o
certo pela aposta no duvidoso, como na aposta de Philippe em se
encontrar com sua futura esposa, ainda sem saber que seria seu
marido. Claro que com a ajuda, tipo empurrão, do amigo Driss nesta
decisão. Temos a impressão de sermos mais fortes para tomarmos
decisões importantes, quando encontramos apoio num amigo, no outro
externo. E no outro interno?
Ah...
mais uma observação: num outro momento do filme, Driss se deixa
chamar e até atende por seu nome próprio, Abdel
Sellou, - o que não é pouca coisa - talvez, por já se não
reconhecer mais nele no sentido de outrora. Agora ele pode.
um
pequeno e último parênteses
Sabemos,
também, que a apropriação do nome próprio visa tamponar o buraco
da falta.
E
o filme caminha até seu final mostrando-nos, com esta história real
ficcional - a realidade é uma ficção - como o desejo é a lei. E
foi isso que eles redescobriram: que ainda eram seres desejantes.
"Desidero,
ergo sum" (eu
desejo, logo sou) – cogito freudiano, lembrando que o desejo sempre
aponta para algo que falta.
Por
fim, esta história -a do Philippe é a mais evidente- que se
mostrava determinada por uma tragédia, pelo trágico, ganha um novo
final que através de um ato se faz possível sentir o ar da graça.
E nisto, este filme se aproxima de uma experiência de análise e,
também, nas desconstruções das certezas apostando num novo
incerto.
Oscar
Wilde uma vez disse: “A certeza é fatal. O que me encanta é a
incerteza. A neblina torna as coisas maravilhosas”.
Sábio
Oscar Wilde !!!
Comentário
apresentado no Cine ILPC em 28 de junho de 2013, São Paulo.
trailer oficial
3 comentários:
Amei seus apontamentos sobre o filme. Parabéns!
Adorei esse filme. Parabéns pelo blog!
abraço
marcelokeiser.blogspot.com.br
Adriana e Marcelo Keiser, agradeço os comentários carinhosos e sinceros! Abraços, Henrique Senhorini
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