A história de
Jean-Baptiste Grenouille se passa na França do século XVIII.
Nascido como dejeto, em meio à putrefação de um mercado de peixe
em Paris, Jean-Baptiste é abandonado pela mãe e, para sobreviver ao
desamparo, o seu faro necessitou ir além, produzindo um choro prenhe
de vida para anunciar a sua chegada, entre moscas e vísceras de
peixe. Despertadas pelo choro, as pessoas que estavam presentes na
feira, o descobrem e o recolhem como um dejeto. Assim, ele marcou a
sua entrada no mundo, sobrevivendo ao próprio nascimento. Em
consequência do abandono, sua mãe é presa e condenada à morte, e
Jean-Baptiste, “a coisa recém-nascida”, é entregue aos cuidados
de uma ama-de-leite, sem despertar qualquer instinto materno. Em
poucos dias, troca-se várias vezes de ama-de-leite: nenhuma delas
suporta ficar com ele, por sua inquietante presença. Diziam que ele
era faminto demais, que sugava tudo.
O caso de
Jean-Baptiste foi levado, então, ao padre Terrier. O padre tentou
aproximar-se da criatura sem criador, sem Outro. Por um momento,
permitiu-se a fantasia de que era o pai de Jean-Baptiste,
concedendo-lhe um lugar no mundo. Mas, a fantasia de “papai,
filhinho e mamãe” se desmoronou tão logo o padre sentiu-se
desnudado pelas narinas desavergonhadas de Jean-Baptiste.
O menino foi
entregue, então, aos cuidados da Madame Gaillard, uma mulher
indiferente à vida desde que perdera o olfato e toda a
sensibilidade, em consequência de maus-tratos na infância.
Encapsulado em si mesmo, Jean-Baptiste não se realizava entre os
outros. Assim cresceu enxergando tudo com seu nariz, proferindo
poucas palavras, sem estabelecer laços, criando e resguardando em si
mesmo odores que não existiam. Jean-Baptiste tornou-se reduzido ao
seu olfato, expirando e inspirando.
O olfato é um dos
sentidos mais primitivos. Freud, na carta 75 a Fliess, de 14 de
novembro de 18971,
em busca de encontrar a fonte do recalcamento, retoma a hipótese
levantada anteriormente, inferindo que o recalque podia ser
substituído por alguma coisa essencial, alguma coisa orgânica que
jazia por trás dele. Freud, nessa época, ligava o recalque às
sensações do olfato que, em consequência da postura ereta do
homem, foram modificadas e, por isso, esse sentido não pode mais
produzir um efeito excitante, como nos animais. Nesse momento, o
recalque, chamado originário, faz emergir a pulsão, diferenciando a
sexualidade humana do instinto animal.
Jean-Baptiste
cresceu levantando o nariz, não para “considerar-se especialmente
nobre”, mas para intensificar e conhecer todos os cheiros do mundo.
Como ser falante, ele já estava implicado em seu corpo por essa fala
e, mesmo sem falar, não podia ser comparado à espécie animal;
fazia parte do mundo simbólico. Esse corpo, que permite ao
significante encarnar-se, é dado ao sujeito na experiência
especular, um drama cujo impulso precipita-se da insuficiência para
a antecipação; ou seja, a criança, com suas fantasias do corpo
despedaçado, dada a prematuridade neurofisiológica, antecipa a
apreensão do seu corpo a partir da imagem do outro. É o momento da
constituição do eu, do reconhecimento de si mesmo. Esse momento
faltou a Jean-Baptiste, pois sua mãe não respondeu ao seu apelo,
impossibilitando a ilusão da totalidade de seu corpo no espelho e
impedindo que ele buscasse no olhar do Outro a autenticação de sua
própria imagem, permanecendo no tempo mítico do apelo. Como
consequência, a função constituinte do olhar foi substituída pelo
primitivo cheiro. Assim ele orientou o seu caminho sem precisar de
luz para ver, olhando com o nariz, na busca instintiva do impossível
de todos os aromas e odores.
O desejo para
Jean-Baptiste se constituiu e se perdeu de forma absoluta, restando o
gozo, um “real que não cessa de não se escrever”. “O lugar do
real, que vai do trauma à fantasia – na medida em que a fantasia
nunca é mais do que a tela que dissimula algo de absolutamente
primeiro, de determinante na função da repetição – aí está o
que precisamos demarcar.”2
Certa vez, ele
perseguiu com o seu faro um cheiro que jamais
sentira antes, porque precisava tê-lo para o sossego do seu coração.
Pela primeira vez, sentiu-se aprisionado pelo aroma - palavra
contém “amor” - e, irresistivelmente, foi conduzido
lentamente até uma jovem, deparando-se com um aroma
indescritivelmente precioso. Ele começou a aspirar todo o odor que a
jovem exalava e, como resultado de seu sistema de realidade pouco
desenvolvido, terminou por enforcá-la. Depois de a moça estar
morta, ele sugou todo o cheiro dela. Experimentou a essência do
cheiro da mulher num estado de êxtase para além do princípio do
prazer, como se o gozo absoluto existisse. Ao procurar o perfume,
ele encontrou a essência e experimentou, pela primeira vez, a
felicidade, como se tivesse nascido pela primeira vez. Do nada, ele
se deparou com o tudo e, sem a alternância da presença-ausência,
própria do mundo simbólico, ele permaneceu preso às redes do
imaginário, nas quais prevalece a alienação.
Nas suas caminhadas,
Jean-Baptiste conheceu Giuseppe Baldini,
perfumista experiente, com quem aprendeu, com muita proeza,
que há um saber sobre o olfato e que é preciso encontrá-lo,
aprendeu então a linguagem dos aromas e tudo mais sobre a arte do
perfume. Giuseppe Baldini constatou que o
aprendiz, com a velocidade ilimitada do seu olfato, era capaz
de criar qualquer perfume, possibilitando ao mestre ascender à
posição de maior perfumista da Europa. O mestre ensinou-lhe tudo,
com a condição de que Jean-Baptiste partisse de
Paris. E assim aconteceu.
Jean-Baptiste
precisou ultrapassar as condições humanas para
atingir os seus objetivos. Nessas passagens, as pessoas que se
relacionaram com ele, funcionavam como suplência do que lhe faltava,
e morriam logo após cumprirem essa função, de modo que, quando ele
partia, não deixava e não levava nenhum vínculo. Seguia com o
apagamento de sua história, que se dissipava como uma névoa.
Com o conhecimento
adquirido, Jean-Baptiste partiu para Grasse, a cidade dos perfumes, e
no caminho sentia o ar cada vez mais puro à medida que se
distanciava dos seres humanos. Agora, o plano de chegar mais rápido
ao destino foi relegado; ele queria apenas ir embora para longe das
pessoas, em direção à maior solidão possível. Chegou ao ponto
mais distante das pessoas e mais próximo de si mesmo, uma gruta na
montanha onde nenhum ser vivo jamais estivera antes, um lugar sem
cheiro. Sobrevivia em circunstâncias limites para obter a satisfação
plena. Ficava imóvel no silêncio da escuridão invocando todos os
cheiros conhecidos, entre eles “o cheiro de assassina de sua mãe”.
Ele não sabia o que era assassina, mas sabia o que era o cheiro de
assassina.
Jean-Baptiste criou o seu reino encantado com fantasias
construídas apenas de odores das coisas; “Ele, o Grande, o Único,
o Maravilhoso”, o Pleno. Lacan3
diz que a fantasia é como um quadro que vem colocar-se no
enquadramento de uma janela através da qual nós vemos e, como uma
tela, nos protege da visão do mundo pela janela.
Porém o
mundo está lá e, assim, sete anos após, o real retorna ao mesmo
lugar: “nenhuma luz, nem cheiro, nada de nada”; só a névoa, o
seu próprio cheiro inapreensível, que se dissipa por toda parte,
impossibilitando Jean-Baptiste, o homem capaz de cheirar qualquer ser
humano, de cheirar a si mesmo. Para o trauma, não há significante;
há uma direção - a repetição -, que insiste em retornar. O
trauma é inassimilável para o sujeito, no entanto ele “não cessa
de não se inscrever na repetição”, apontando para onde se acha o
significante que o discurso oculta. Assim, Jean-Baptiste busca uma
saída para o seu desamparo: abandona a sua mais completa solidão em
busca de um saber sobre si mesmo.
Para suprir a
sua falta de cheiro, Jean-Baptista criou para si mesmo um perfume
imitando o odor humano e passou a conviver com uma enorme “satisfação
fria”, como um ser humano entre os outros seres humanos. Sabia que
estava em seu poder criar um odor sobre-humano, de modo que quem o
cheirasse o amaria até a loucura. Para isso, ele se dirigiu até
Grasse com o propósito de obter os melhores aromas. Chegando lá,
foi surpreendido pelo cheiro extraordinário de uma jovem, um odor
que o remeteu a Paris, o mesmo da jovem que ele havia matado. E ele
queria essa fragrância, não para sorver e perder, como da outra
vez, mas para fazer dela o seu próprio odor. Ao ver a jovem,
Jean-Baptista amou pela primeira vez, não como um ser humano, mas a
sua fragrância. Precisava esperar um pouco mais para extrair da
jovem a essência do seu cheiro; enquanto isso, aperfeiçoava-se e
ampliava as suas habilidades, até que ela chegasse à flor da idade,
tornando-se pronta para ser colhida.
Jean-Baptista
perseguiu seu objetivo com obstinação, aperfeiçoando sua técnica
com todas as regras da arte. Matou vinte e quatro jovens, as mais
belas virgens, para extrair o aroma de suas almas. E para compor o
perfume final, matou, após dois anos, a jovem que florescia, pois
acabara de completar dezesseis anos. Era a filha única do
vice-cônsul. Jean-Baptiste foi invadido por uma paz em seu coração,
embora, para ele, a jovem só existisse como odor incorpóreo.
Jean-Baptiste foi acusado e condenado à morte pelas barbáries cometidas. De posse do perfume perfeito, passou algumas gotas da essência no seu corpo e seguiu para o encontro com a morte. A morte foi, mais uma vez, adiada, criando um novo significante. Dessa vez, além de sobreviver, ele foi reconhecido como filho pelo seu maior acusador, o pai da vigésima quinta mulher, a que lhe proporcionou escrever o “impossível”, a perfeição. As pessoas se entregaram ao seu extasiante perfume e, arrebatadas por ele, entraram numa comunhão de amor com o universal. Impregnado pelo perfume, nascido inodoro, no lugar mais fedorento do mundo, criado sem amor, ele tornou-se amado por todos. Esse foi o maior triunfo da sua vida e, ao mesmo tempo, o maior fracasso, pois ele mesmo não conseguia amar ninguém, por isso jamais encontraria satisfação no amor, não saberia jamais quem ele era, porque nunca fora olhado pela mãe.
Libertado,
Jean-Baptiste retornou ao lugar onde nascera, e nada mudou: o mesmo
lugar, as mesmas condições, e ele continuava só, como sempre
esteve, e, mesmo sob o melhor perfume, sabia que só existia a sua
total ausência de cheiro, que o impossibilitava de viver. Não
restava mais nada, senão retornar às origens, para morrer. Assim,
ele realizou seu último gesto, em silêncio, sem palavras que o
nomeassem: despejou o frasco de perfume perfeito em seu corpo e se
entregou à morte. Foi dessa forma que morreu, despertando nos
presentes o verdadeiro sentido do olfato. As pessoas em volta
perceberam a sua ausente presença, e instintivamente o consumiram:
retiraram dele a sua energia vital, o perfume perfeito e sua
insignificante vida. “O real é aqui o que retorna sempre ao mesmo
lugar – a esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita
[...] não o encontra.” .
E assim ele morreu
como nasceu, excluído da cadeia significante, como uma coisa que nem
cheira nem fede - sem perfume e sem ser.
Silvia Helena Facó Amoedo é Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil / Fórum Natal. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará.
3 comentários:
mt bom! Ótimo texto!
Texto maravilhoso vi o filme hoje e isso relata tudo que esta nele.
Penso na força do olhar materno, aquele que nos atravessa através da sua linguagem amorosa, que inaugura os cinco sentidos. Só essa falta primeira nos torna capazes de suportar todas as outras, porque nos funda seres desejantes. Que nos falte o mundo desde que a primeira posse tenha sido o amor de um seio materno, de uma mãe desejante de nosso ser e estar no mundo. Só assim podemos ser alquimistas do nosso desamparo...esse filme é lindooo!
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