O Paradoxo da Lei
No filme A Vida
de David Gale (Alan Parker,
2003) encontramos retratada a trajetória de um professor de
filosofia que milita ativamente contra a pena de morte no estado do
Texas. Somos levados a crer que tal professor é vítima de uma
conspiração que o incrimina pelo estupro e assassinato de sua
principal colaboradora. A conspiração se alimenta do fato de que
antes deste crime ele fora acusado de estupro por uma bela, mas
indolente, aluna. Além disso, todos os fatos parecem estar contra
ele: impressões digitais no saco plástico com o qual a vítima fora
sufocada, falta de álibi, seu sêmen encontrado na vítima, etc.
Quatro
dias antes de sua execução ele e seu advogado, notoriamente
incompetente, convocam uma jornalista para que esta escute e
testemunhe a história de David Gale.
Mas nas palavras dele: “Ela
não está ali para descobrir quem é o culpado, mas para saber
porque ele será executado.”
Lentamente a narrativa contada do corredor da morte vai convencendo o
espectador de que David Gale é inocente. Simultaneamente uma fita é
entregue para a jornalista contendo as cenas finais da morte pela
qual Gale foi condenado. Uma mulher com um saco plástico na cabeça,
tendo sua boca e pescoço vedados por uma fita adesiva. Ela é
algemada e nua no chão de sua cozinha se contorce em seus últimos
momentos de vida enquanto uma câmara registra a cena. O detalhe
mórbido e moral é que a chave de suas algemas é encontrada no seu
próprio estômago indicando que “a
liberdade encontra-se dentro dela mesma”.
A chegada da fita, bem como a presença insidiosa de um homem
misterioso que acompanha a investigação iniciada pela jornalista e
seu ajudante reforça a certeza de que
Gale é inocente. Além disso, o próprio dispositivo de execução
fora abordado por Gale em um de seus livros, mas jamais utilizado
como peça da acusação, tornando óbvio que o verdadeiro assassino
é alguém próximo do filósofo.
Mas este é apenas
um caso do que Zizek chamou de “falsa solução necessária”. Se
a jornalista não acreditasse que Gale é inocente jamais seria
levada a procurar a fita completa, a fita verdadeira, que poderia
tirá-lo do corredor da morte demonstrando tratar-se de um equívoco
judiciário. Este é o verdadeiro problema do filme: as relações
entre a lei (em sua figura lógica do condomínio prisional) e a
exceção (em sua figura lógica do inocente culpado e do culpado
inocente).
Do ponto de vista da
lei, nas coordenadas simbólicas fixadas pelo filme, encontramos a
seguinte posição. No estado do Texas as execuções são comuns e
baseadas nos tradicionais argumentos sobre redução de criminalidade
e também no axioma bíblico: olho por olho, dente por dente. Uma lei
como qualquer outra, exposta ao relativismo cultural que domina todas
as formas jurídicas. Ocorre que todos os casos de prisioneiros que
são libertos pouco antes da execução, pela demonstração de
equívocos legais, apenas comprovam a eficácia do sistema. Quase
mártires não contam. Como não se pode encontrar uma exceção a
esta regra, que permitisse comprovar a execução de um inocente e
por em dúvida a pena de morte baseada na falibilidade do processo
jurídico, e na irreversibilidade da pena, os militantes contrários
à pena de morte encontram-se imobilizados.
Note-se
que todos os argumentos contra a pena de morte acabam mostrando-se
externos a estas coordenadas simbólicas e, portanto inoperantes. O
fato de que ela não reduz o índice de criminalidade, que ela é uma
crueldade que fomenta o ódio e a vingança em nome do Estado, a
espetacularização da cena de execução, seus usos políticos, etc.
tudo isso não possui alcance algum, pois não afeta o
estatuto da lei internamente, ou seja, segundo suas próprias
coordenadas constitutivas. As exceções confirmam a regra, não a
transformam. A regra afirmada é de que o estado pode legitimamente
usar o assassinato para coibir o assassinato. A lei é este paradoxo
ele mesmo: em nome da liberdade retirar a liberdade, em nome da paz o
terror, em nome da regra a transgressão, em nome da saúde a doença,
em nome da segurança ... a polícia.
Podemos chamar este
paradoxo de paradoxo da lei do condomínio. Nada impedirá que em
nome da execução, frio processo jurídico, anônimo e impessoal, o
sujeito se engaje como instrumento desta lei e extraia, a partir
disso, um gozo próprio. O gozo dos carcereiros, dos espectadores,
dos manifestantes e porque não da própria vítima. Se a lei é pura
nenhum ato dela decorrente o será, por antecipação. Aqui entra a
razão cínica que comanda a defesa da pena de morte. Cínica, pois
se apóia por uma lado na obscena contabilidade do gozo e por outro
no fato de que os que a defendem, sabem, via de regra, de seu
paradoxo, mas agem mesmo assim como se não soubessem. Como se este
saber não contasse no real. O que o cinismo deixa de lado é o
desejo que funda a lei. O cínico é no fundo um aspirante a síndico.
O Paradoxo da
Ética
O início da
narrativa de Gale mostra uma de suas aulas. Na lousa encontramos o
grafo do desejo, desenvolvido por Lacan no seminário sobre as
Formações do Inconsciente,
além de algumas referências à conceitos lacanianos: o objeto a, o
ego como inimigo, a teoria da fantasia e a causalidade psíquica. O
professor interpela os alunos: Digam-me, qual é a sua
fantasia? e responde
retoricamente, fama, dinheiro, amor, bom sexo, etc. Em seguida vem o
trecho decisivo para entender o filme:
“Entendem
a idéia de Lacan ? As fantasias tem que ser irreais porque no
momento, no segundo em que se consegue o que se quer ... não quer,
não poder ser mais. Para poder continuar a existir o desejo tem que
ter os objetos eternamente ausentes. Vocês não querem “algo”,
vocês querem a fantasia de “algo”. O desejo apóia fantasias
desvairadas.”
Neste
momento entra na sala a jovem e belíssima estudante, Berlin, que
imediatamente captura o olhar do professor. Demonstração em ato do
tema discorrido e potencial alegoria significante (Berlin,
Berlim,
a queda do muro, etc). Um objeto que parece demais ser ele mesmo a
realização da fantasia e desvario.
“Foi esta a idéia de Pascal
ao dizer que somos realmente felizes quando sonhamos acordados com a
felicidade futura. Daí o ditado
“O
melhor da festa é esperar por ela” ou “Cuidado com seus
desejos”. Não pelo fato de conseguir o que quer, mas pelo fato de
não querer mais depois de conseguir.”
Até
aqui nenhuma novidade. Trata-se de uma versão possível do tema da
falta como geratriz do desejo, sua disparidade diante da demanda e
sua determinação temporal no nível do sujeito.
“Então
a lição de Lacan é: viver de desejos não traz a felicidade. O
verdadeiro significado de ser humano é a luta para viver de idéias
e ideais. E não medir a vida pelo que obtiveram em termos de
desejos, mas pelos momentos de integridade, compaixão, racionalidade
e até... auto-sacrifício. Porque no final a única forma de medir o
significado de nossas vidas é valorizando a vida dos outros.”
Essa
é uma leitura bastante irregular das teses de Lacan sobre a ética.
Na verdade congrega versões distintas e talvez incompatíveis sobre
o assunto. É claro que estamos lidando com um nível de
generalização bastante amplo e próprio à apresentação de
problemas filosóficos na linguagem do cinema, principalmente no
cinema americano de massa. Mas é surpreendente como a passagem acima
consegue reunir ilustrativamente três posições em
debate entre os comentadores de Lacan.
Primeira posição.
Viver de ideais e idéias nos
conduz a uma posição comum aos que valorizam a primeira parte do
ensino de Lacan que acaba convergindo para certa idealização do
desejo. Neste caso a análise conduziria à subjetivação do desejo,
à produção de um saber sobre sua gramática singular e
conseqüentemente à expansão do universo da falta, conforme
expressão do Seminário VII. A felicidade reside em suportar o
desejo, em aceitar sua lei, libertando-se da obrigação de
realizá-lo em objetos
empíricos específicos. Factível, mas, convenhamos, pouco original.
Segunda
posição. Medir a vida por momentos,
sejam eles íntegros, de auto-sacrifício ou como queiramos
defini-los, leva-nos a uma posição um pouco diferente. Introduz a
forma temporal da felicidade. Não um estado regular e mais ou menos
estável do sujeito em sua relação com o desejo, mas em momentos
fecundos e decisivos onde a relação do sujeito com seu ato se
precipita de forma singular ou original. Ainda vemos aqui a
participação dos ideais, mas sua função é um pouco diferente da
primeira asserção. Não se trata de orientadores perspectivos para
a ação do desejo, mas de reguladores retrospectivos para o juízo
sobre a existência. Podemos definir esta posição pelo que alguns
autores, seguindo o seminário VII, chamam de ética do real. Uma
ética baseada em atos disruptivos das coordenadas simbólicas do
sujeito.
Terceira
posição. A
única forma de medir o significado da vida é valorizando a vida dos
outros.
Poder-se-ia inferir aqui uma ética da alteridade, uma ética onde o
reconhecimento radical do Outro seria sua cúspide. O Outro como
valor e princípio aproximaria e tenderia a tornar compatível as
posições de Lacan, com as de Derrida e Levinas, por exemplo. É
também uma forma de ética do simbólico, como o primeiro caso, mas
agora não apenas baseada na finitude expressa pelo desejo, mas pela
afirmação de certa relação radical ao Outro e também
ao outro. Posição que se liga com a anterior pelo fato de qualquer
ato só pode ser considerado em relação ao Outro, as coordenadas
simbólicas do sujeito.
De fato o que se
nota é que a noção de Outro, envolvida nos três casos em questão
é um pouco diferente. No primeiro caso trata-se do Outro como lugar
da linguagem e da lei, mas da lei e da linguagem concebidas como
sistemas formais, abstratos e regulados por princípios heterônomos
em relação ao sujeito. No segundo caso o Outro é entendido como
coordenadas simbólicas históricas e precisas. É um Outro que se
altera pela flutuação dos significantes que, a cada momento,
precipitam a posição do sujeito. No terceiro caso temos um Outro
cujo sentido mais próximo é mesmo o de humanidade, de semelhante ou
próximo tomado não apenas como duplo egóico e narcísico mas como
Outro encarnado. O que há de Outro em um outro.
Esta deriva de
acepção da noção de Outro, e conseqüentemente da acepção de
simbólico é de extremo interesse tanto para a clínica como para a
psicanálise em extensão. A deriva semântica que envolve este
conceito se explica pelo fato de que ele se encontra nos primórdios
da teorização de Lacan e o acompanha até seus últimos momentos.
Por exemplo, o Outro como lugar do código ou tesouro dos
significantes é bem distinto do Outro como barrado ou inconsistente.
Isso leva, por exemplo, a implicações distintas se consideramos o
Outro-sistêmico, o Outro-histórico e o Outro-sexo em uma
confrontação clínica ou a um projeto de crítica social.
Na
mesma linha desta oscilação conceitual podemos ler o paradigma de
Antígona como extremamente conservador, afinal ela morre em nome do
ideal de manter seus irmãos inscritos na ordem simbólica, dentro
das regras do funeral grego e de sua lógica sistêmica. De maneira
inversa podemos entender a radicalidade de seu gesto como uma
demonstração em ato da paradoxalidade da lei ateniense, o que
levaria à sua transformação. Finalmente podemos ler
o mesmo ato de Antígona como a preservação radical do outro como
encarnação do Outro, valor pelo qual seu próprio gesto pode
encontrar solução.
O Ato mais além
do Condomínio
A investigação
levada a cabo pela jornalista conduz de fato ao encontro de uma
segunda fita, contendo uma surpresa. É a própria ativista e
colaboradora de Gale quem se algema e prende o saco plástico na
cabeça induzindo seu suicídio por asfixia. Portanto Gale é
inocente e é possível provar sua inocência. Se na primeira cena a
jornalista é a testemunha, Gale a vítima e o sujeito da caminhonete
o culpado a descoberta da segunda fita produz uma reviravolta
dialética. O sujeito da caminhonete passa de culpado a testemunha,
Gale permanece como vítima, mas é a própria jornalista quem se vê
agora culpada por não conseguir entregar a fita salvadora a tempo.
Exatamente em acordo com a idéia de tempo lógico em Lacan temos o
primeiro instante de ver – que Gale é inocente – seguido pelo
tempo de compreender – que se tratava de um suicídio para provar a
ineficácia do sistema judiciário.
Mas a última
reviravolta dialética é de fato a conclusiva. Chega à jornalista,
após a execução de Gale, uma terceira fita, que mostra agora as
contorções do morrer (tempo de ver), a cena do suicídio (tempo de
compreender) e a presença do próprio Gale na cena do suicídio,
introduzindo suas digitais auto-incriminadoras, no saco plástico que
servirá de prova contundente para sua condenação (momento de
concluir). A verdade da verdade é que Gale precisou mentir sobre sua
inocência para encontrar a verdade de sua culpa, ou seja, tornar-se
a exceção que o sistema exigia para ver questionada internamente a
lógica de sua lei.
No fundo tanto Gale como Constance, sua
colaboradora, mostraram, em ato, como é possível “usar” o
sistema para perpetrar “voluntariamente” a própria morte.
Mostraram
em ato, como o sistema é um mero instrumento e não a encarnação
de uma lei abstrata, impessoal e soberana em sua finalidade. E eles o
fazem “usando” a lei ao modo fetichista.
De fato, a função
da jornalista não era, como foi sempre dito, salvar Gale, nem
encontrar o culpado, mas de testemunhar, para o filho do professor,
para a comunidade histórica americana a integridade, racionalidade e
auto-sacrifício do seu ato. Ela volta à sua posição inicial de
testemunha, mas inteiramente transformada na relação com o saber
que se trata de testemunhar, não mais anódina confissão de culpa
ou apelo de inocência, mas radical reconhecimento do ato. Ato que
corrompe as categorias, ou coordenadas simbólicas que o tornaram
possível: nem vítima, nem culpado, apenas um ato decidido.
A jornalista, e o
Outro por extensão, são e não são os mesmos depois do ato de
Gale, aliás um ato real, que exprime o momento de verdade da questão
da pena de morte, em acordo com a estrutura de ficção contida no
filme. Ele mostra que a vida de cada um só pode ser medida pela dos
outros, daí o título do filme “A Vida de David Gale”.
Aqui podemos traçar
uma distinção a partir das posições de alguns dos personagens
diante do ato de que se trata. O sujeito da caminhonete, assim como a
jornalista, colaboram em posição de desejo decidido, que realiza e
contém sua própria finitude ao ser desejo do desejo do Outro. Mesmo
amando Constance, o caubói colabora com seu suicídio. Mesmo estando
em apenas mais um trabalho a jornalista se engaja subjetivamente na
busca da verdade, ela se compromete. Ética do desejo.
Os militantes, pró
ou contra a pena de morte, o sistema judiciário e político, por sua
vez estão às voltas com a ética alteridade. Distinguem-se pela
qualificação do gozo que concerne a esta alteridade. Abstrata,
anônima e sistêmica, no caso do político, concreta, humana e “com
rosto” no caso dos militantes.
Mas
é finalmente e apenas Gale que nos põe em contato com a ética do
real, ele faz a função de objeto a para
o sistema judiciário, mas também a função de sujeito para uma
nova formação do Outro.
Artigo original publicado na Revista Leitura Flutuante – Volume 2
Christian
Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de
Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de
Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação
Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado
(IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University
(UK). Autor de
vários
livros, entre
eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura
e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das
práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011)
Um comentário:
Gostaria de parabenizá-los. Essa relação filme e psicanálise e as análise aqui apresentadas são fantásticas e frutuosas. Por isso que sugerir o filme GENIO INDOMÁVEL dirigido por Gus Van Sant Com Matt Damon, Robin Williams, Ben Affleck mais Gênero Comédia dramática Nacionalidade EUA. Por favor analisem e se possível façam a postagem aqui.
Prof. Carlos
Língua portuguesa
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