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domingo, 23 de fevereiro de 2014
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014
Blue Jasmine
de Priscilla Cheli
O filme
nos conduz através da história uma mulher rica, que perde todo o
seu dinheiro e é obrigada a morar em São Francisco, com sua irmã,
Ginger, interpretada por Sally Hawkins, em condições financeiras
muito diferentes da que estava habituada. Como se diz popularmente,
Jasmine perde o dinheiro, mas não perde sua pose. Portanto, tal
mudança, a faz mergulhar em um universo que ela se nega
constantemente em digerir.
Logo no
início do filme, Jasmine, a protagonista interpretada por Cate
Blanchett, já mostra um traço muito significativo. Ela está num
avião e passa todo trajeto a falar e contar a mesma história para
ela mesma. Esse “ela mesma”, ora é encarnado em algum corpo que
se põe próximo a ela ora no puro nada, na própria ausência.
Ao
estilo Woody Allen, Jasmine vive um “colapso nervoso”, sempre
regado de uma boa dose de tagarelice, como uma forma de externar tal
estado. Ela revive suas lembranças se ausentando completamente do
presente e travando diálogos do passado em sua memória. Enquanto
isso, nós, expectadores, vamos sendo convidados a conhecer sua
história.
Sua
fala é vazia, não se endereça a ninguém, não há outro. É um
falar por falar. Não há, aparentemente, nem mesmo um sujeito. E
parece que foi assim que Jasmine viveu.
Vinha
de um casamento no qual era mimada pelo marido, interpretado por Alec
Baldwin. Aparentemente, seu único dever era usar suas “habilidades
sociais”. A crença em tais habilidades a alienavam num mundo
particular. Participava de ações filantrópicas, cujas quais a
faziam sentir-se diferentes das demais socialites,
sabia como receber amigos e realizar festas. Neste mundo particular,
sentia-se protegida, imunizada contra qualquer preocupação mundana.
Uma vida, que para ela, aspirava a perfeição.
Sua
irmã, Ginger, por sua vez, representava o avesso de seu mundo, ou
seja, mostrava o suburbano, a falta de classe e de nobreza. Em suma,
simbolizava tudo aquilo que Jasmine não queria ver, nem saber.
Debruçada
em sua alienação, Jasmine fazia questão de não perceber o que
todos ao seu redor já estavam cansados de enxergar: ela era
frequentemente traída pelo marido, todo seu universo luxuoso não
provinha de um homem perito em honestidade, muito menos, esbanjador
de filantropia, como ele gostava de afirmar e ela de acreditar.
Mesmo
se em alguns momentos, ela arriscasse uma espiada para fora de sua
crença, poucas palavras do marido eram suficientes para conduzi-la
novamente ao seu mundo cor-de-rosa.
A
história vira as avessas quando Hal, o marido, decide deixá-la por
uma au pair
de uma amiga do casal. Jasmine toma uma decisão que põe seu mundo a
perder. Ela denuncia o marido ao FBI, ele vai preso e na prisão se
suicida. Ela se vinga daquele que a tirou de sua alienação.
Desprovida
de qualquer recurso financeiro, pois tudo lhe foi tomado pelo Estado,
e sozinha, pois o filho de seu ex-marido, ao se deparar com toda a
realidade, envergonha-se perante os amigos de ter uma pai corrupto e
deixa tudo para trás, Jasmine recorre a Ginger.
Perdida
e sem rumo, mergulha muitas vezes em sua fala vazia. Vivendo por um
hiato a lembrança prazerosa de sua alienação. Ou seria mais
acertado falarmos a lembrança de seu gozo aparentemente perdido?
Jasmine
fica face a face com tudo aquilo que jamais quisera saber. Convive
diariamente com sua irmã, com os sobrinhos “mal educados”, no
sentido literal da expressão, pois os meninos não receberam a
educação que ela considerava adequada e ainda com o novo namorado
de Ginger, um homem simples e rústico, que, no entanto, demonstra
muito afeto a irmã.
Na
tentativa de sair daquele mundo, a protagonista passa a trabalhar
como secretaria em um consultório odontológico a fim de manter um
curso de computação, que a permitiria se formar em design de
interiores em um curso online. Esse curso representa a possibilidade
de retomar sua vida como era anteriormente e lhe lançaria num
mercado de luxo, na inserção em meios de pessoas da mesma classe
social que ela não aceitava em abrir mão de pertencer.
Em uma
festa de uma colega de curso, Jasmine conhece um homem bem sucedido e
educado. Ela se vê diante da possibilidade de se cercar de todo
aquele antigo mundo novamente. Utiliza de todas as suas habilidades e
o conquista. Assegura-se apenas de vestir-se na tão conhecida antiga
imagem, escondendo seu passado e recriando uma história. Mostra-se
uma mulher de alta classe, viúva de um médico, e bem sucedida como
design de interiores. Na tentativa de não o perder, se perde. Logo
ele descobre qual realmente era sua história e Jasmine volta a falar
com ninguém sobre como era seu mundo, sozinha em um banco publico,
lembrando que tocava Blue Moon
quando conheceu seu ex-marido.
Ginger,
por um momento, se influencia pelas críticas da irmã, como alguém
que não tem nada e se conforma com o pouco que tem. Nesta mesma
festa, conhece um homem, se ilude momentaneamente com a possibilidade
de ter uma vida diferente, porém descobre que ele era casado. Volta
ao seu rustico, porém afetuoso namorado, e parece de acordo consigo
mesma em seguir sua vida como era antes da chegada da irmã.
O filme
nos daria margem a vários recortes que permeariam diferentes formas
de olhar. Um desses recortes nos leva aos conceitos de alienação e
separação. Sabemos que um processo não existe sem o outro e que
ambos ocorrem concomitantemente. Se há alienação é porque há
separação. A alienação é um mergulho no desejo do Outro, e nele
abre-se mão do ser. Porém, ao escolher o ser, abre-se mão do
sentido e do tornar-se sujeito. Afinal, “o sujeito é o desejo do
Outro”. Na separação, o sujeito se divide tal como o Outro. Ambos
são faltantes e é dessa operação que nasce a possibilidade de
desejar.
Poderíamos
pensar que, enquanto Jasmine encontrava-se em seu estado de
alienação, agarrada a sua identificação imaginária, nada queria
saber sobre si mesma? Quando decide se separar, quando rompe essa
cola com o Outro, cai de seu estado seguro e protegido, e, muito
embora entre em colapso, algo de seu desejo aparece. Algo é posto em
funcionamento. Todavia, não se sustenta. Seria o velho gozo,
atropelando e fazendo-a cair novamente em seu “nada quero saber
sobre mim mesma”?
Trailer oficial do filme fazer
Priscilla Cheli é psicanalista com pós-graduação em psicologia clínica pela PUC-SP.
sábado, 11 de janeiro de 2014
O Analista e o Mestre dos Magos
de Isloany Machado

Antes
abro parêntesis para dizer que o mestre dos magos é um personagem
do desenho “Caverna do Dragão” cujo enredo é, em linhas gerais,
o seguinte: Cinco adolescentes e uma criança estão em um parque de
diversões e resolvem entrar num brinquedo chamado “caverna do
dragão”. Esse brinquedo é uma espécie de passeio por um submundo
cheio de fantasmas e monstros, o detalhe é que esses seis
personagens ficam perdidos nesse submundo e não conseguem voltar pra
casa. Cada episódio é uma nova tentativa de voltar e, nesse
percurso, precisam enfrentar os monstros, matá-los. A única pessoa
que os “auxilia” é o mestre dos magos que, supostamente saberia
o caminho de volta, mas ele apenas aparece em alguns momentos, não
como um guia, mas como um portador de enigmas a serem decifrados
pelos adolescentes. Quando mais precisam, o mestre evanesce, some. A
busca pelo caminho de volta é incessante, mas eles nunca conseguem
encontrá-lo e dão voltas e mais voltas nesse lugar perdido.
Voltamos
ao paralelo entre a análise e a caverna do dragão. As pessoas que
chegam à análise nos perguntam: “O que eu tenho? Quanto tempo
isso vai demorar? O que devo fazer?”, assim, é como se dissessem:
“Mostre-nos o caminho, mestre dos magos”. Às vezes o mestre
respondia que havia encontrado um caminho que os levaria de volta pra
casa, mas não os guiava até lá, pelo contrário, fazia enigmas:
“Eu localizei uma nave capaz de levar vocês para casa. A resposta
está com as crianças perdidas”. Vejam, “a resposta está com as
crianças perdidas”, o que poderia ser mais parecido com o que
sabemos em psicanálise sobre a criança perdida? Em outras palavras,
sobre aquilo que é da sexualidade infantil e que sofre ação do
recalque, causando-nos desconhecimento, estranhamento. Por isso, o
analista interpreta com enigmas, para que o analisante possa decifrar
seu próprio inconsciente. A resposta não está com o
analista/mestre dos magos, mas sim naquele saber que não se sabe: o
inconsciente. Para Lacan, “A interpretação – aqueles que a usam
se dão conta – é com frequência estabelecida por um enigma.
Enigma colhido, tanto quanto possível, na trama do discurso do
psicanalisante, e que você, o intérprete, de modo algum pode
completar por si mesmo.” (LACAN, 1992, p. 38).
Assim,
uma interpretação por enigmas, ou que aponte para a raiz do desejo
do analisante, coloca o analista no lugar de objeto a. Para Lacan, “o
analista, se faz de causa do desejo do analisante” e em seguida
pergunta: “O que quer dizer essa coisa estranha?”, responde
dizendo que “o próprio analista tem que representar aqui, de algum
modo, o efeito de rechaço do discurso, ou seja, o objeto a.”
(1992, p. 45). O analista/mestre dos magos deve, em seu trabalho,
representar nada mais que o lugar de rechaço do discurso: o
objeto a que
seja causa de desejo do analisante para que este possa encontrar o
caminho de um desejo inédito.
Mas
é claro que isso não é algo tranquilo em um processo analítico.
Não raras vezes os analisantes se angustiam e, tal como o personagem
Éric – o histérico que passa todos os episódios a reclamar e
apontar para a falta do mestre dos magos – dizem: “Ora, já vem
ele com essas histórias de novo!”. Éric se exaspera com os
enigmas do mestre dos magos, bem como com seus sumiços. Assim é com
o analista: “Por que você nunca responde o que eu pergunto?”,
“Me diga, o que eu devo fazer?”, “Eu não suporto os seus
silêncios”. O sumiço do mestre dos magos poderia estar em
paralelo, desta forma, com o silêncio do analista ou também com o
corte de sessão, momento em que o sentido evanesce. Assim, nem o
analista nem o mestre dos magos (apesar do título de mestre)
encarnam o discurso da mestria, ou seja, não ocupam o lugar de um
saber absoluto. Enquanto os adolescentes acreditavam que ele sabia o
caminho de volta pra casa, suponho que ele não soubesse de nada.
No
desenho, até hoje há controvérsias quanto ao último episódio, se
eles chegaram ou não ao seu objetivo de voltar pra casa. Em
psicanálise, voltar pra casa é apenas uma parte do processo. O mais
importante é que, ao dar voltas e mais voltas para encontrar O
caminho, se descubra que ele não existe, o que se encontra é a
busca constante, isso pode apontar para a construção de UM novo
caminho. Não se volta pra casa, porque não há mais uma casa, pois
algo se perdeu para sempre. Há que se construir uma nova morada. E
este poderia ser o último episódio da caverna do dragão. Mas
“lembrem-se: às vezes, olhando para trás, vocês podem ver mais
claramente o que está adiante”. (MAGOS, 1994).
Campo
Grande, 30 de abril de 2012.
Endereço para assistir a série: http://www.youtube.com/watch?v=35eQMyCxeSI
Isloany Machado é Psicanalista, Escritora e Professora da UFMS. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção, é autora do livro “Costurando Palavras” (ed. Life, 2012) e fundadora do blog www.costurandopalavras.com.br
domingo, 15 de dezembro de 2013
Puzzle - Compulsões Sexuais (toda compulsão é sexual)
de Arnaldo Domínguez de Oliveira
Uma
compulsão é alguma coisa que empurra – zwang
– à repetição de dizer, fazer ou pensar alguma coisa. Compete a
nós, psicanalistas, “domar a compulsão de repetição” e
transformá-la em motivo para recordação na ‘neurose de
transferência’, uma neurose artificial.
Será
também de nossa competência apoiar o fechamento do vão livre do
MASP contra a invasão dos “craqueiros” e outros tipos
indesejáveis? – lugar onde eu próprio conheci nos anos oitenta,
um “Orixá” graças a cuja intervenção posso ainda estar neste
país. Talvez sim. Hoje em dia eu nem frequentaria esse lugar urbano
em horários impróprios.
Os
humanos – segundo Freud em Novas Recomendações Sobre a Técnica,
1913 – somos a miúde adeptos à “política do avestruz”.
Digamos, à razão cínica pela via da Bela Indiferença ou da Alma
Bela. Seremos, então, os psicanalistas os domadores que colocaremos
às rédeas da transferência nas pulsões indomadas? Entretanto,
posto que o analisante não reproduzirá o esquecido ou recalcado
como lembrança, senão que o atuará,
ele não poderá se livrar da compulsão à repetição por ser o
modo de recordar de que dispõe.
Em
1932, por ocasião das Novas Conferências apenas escritas em plena
crise de falência da editora da IPA – quando esse autor acreditava
produzir seu último livro – Freud associou os “sonhos de
punição” ao supereu e os ”sonhos de angústia” à Compulsão
de Repetição já ligada à Pulsão de Morte no Mais Além do
Princípio do Prazer de 1920.
Ele
próprio parece-me que se livrava da angústia da temporariedade numa
compulsão pela escrita. (Tomara que nos contagiemos deste sintoma).
E assim Freud enviou uma carta para Max Eitingon em 20 de março de
1932, onde dizia: “Sempre
se deve estar fazendo alguma coisa, mesmo com o risco de ser
interrompido – mais vale isso do que desaparecer em estado de
preguiça”.
E
por falar sobre a escrita eu assisti ontem (28 de novembro de 2013)
no Teatro Paulo Autran, em São Paulo, o “Lado A” da peça
“Puzzle”, dirigida por Felipe Hirsch. Um quebra-cabeça em três
partes (A, B e C) apresentado para o Programa Brasil Convidado de
Honra da Feira do Livro de Frankfurt neste mesmo ano. Um Brasil já
não mais colorido, como àquele dos tempos de Carmem Miranda, senão
o atual, em branco e preto.
Cíntia
Moscovich na Zero Hora comentou: “’Puzzle’
mostra na Alemanha um Brasil tão de verdade que chega a ser
constrangedor: sem concessão alguma”.
Hoje
eu penso que Genet resulta quase ingênuo perante a
“literobucetalidade” de uma escritora ou frente ao
discurso de nossos guardiões da ordem estabelecida que gritam: “que
se foda toda metapsicologia”. “A gente é burra mesmo!”. Aliás,
“burros” porque somos machos!
Eu
já havia redigido o texto que segue antes do espetáculo e vivi um
déjavú
ao
experimentá-lo.
Pois
bem, vamos enfrente, não fui inibido por isso, senão que me senti
empurrado: “O
leitor abrirá Nossa Senhora das Flores como se abrisse um armário
de um fetichista e encontrará ai, dispostas nas prateleiras, como
sapatos que foram cheirados e beijados e mordidos cem vezes, as
palavras úmidas e perversas que brilham com a excitação que elas
despertam em outra pessoa e que nós não podemos sentir”.
Jean-Paul
Sartre
.Os
sonidos do silêncio. As
palavras a que Sartre se refere ao apresentar o livro de Jean Genet,
“Nossa Senhora das Flores” (Ed. Nova Fronteira) são
materializações de uma
Wiederholungszwang
(compulsão à repetição no dito ou na escrita), que se manifestam
em letras substitutas dos objetos fetiches tais como seriam os
sapatos mordidos. Digamos, então, que falar também é um gozo e que
tais palavras gozadas podem comparecer na cena dialética para
fornecer um brilho de excitação que muitos não poderemos sentir,
mas poderemos escutar se suportarmos o silêncio presente nos
meandros. Destas materializações Freud certamente condensaria em
nota de rodapé nos Três ensaios: As
fantasias claramente conscientes dos perversos (que, em
circunstâncias favoráveis podem transformar-se em atos), os temores
delirantes dos paranoicos (projetados em outrem num sentido hostil),
e as fantasias inconscientes dos histéricos (descobertas por trás
de seus sintomas através da psicanálise) e coincidindo até os
mínimos detalhes em seu conteúdo. Entretanto,
a teorização tantas vezes assumirá também um teor compulsivo
invasor, por exemplo – em nossa prática psicanalítica – dos
escritos, dos debates, das supervisões em grupo, etc., quiçá
visando por um lado, preencher todas as frestas de angustia que o não
saber produz em nós e por outro, provavelmente, seduzir o
interlocutor quando posicionado nos extremos lugares de + 1 ou de não
saber interessado (histérico). Seja como for, a clínica sempre se
sobrepõe instrutiva para o bom escutador. Em nosso campo de
investigação privilegiado pela relação transferencial a histérica
insiste em nos tornar mestres e é expert
em encurralar-nos contra a parede para exigir a produção de um
saber. Decifra-me ou me devoro! Assim era enunciada a ameaça
autopunitiva forjada pelos excessos de uma mulher obesa cuja demanda
era endereçada a mim.
Em
contrapartida, o perverso anuncia – pleno de mestria – seu
direito ao gozo. Assim gravou uma mensagem em minha Caixa Postal do
telefone fixo: “Yo
tengo derecho a chuparte la pija y quiero saber quién será el hijo
de puta que me podrá impedir!”,
e essa enunciação de “direito” (do mal) representava o grito
proferido depois que o paciente fora informado sobre meu recurso às
leis jurídicas para me defender de sua ameaça erotomaníaca e de
sua denúncia no Conselho Regional de Medicina alegando que eu o
teria “seduzido no divã”, o que lho autorizava ao usufruto do
caráter descrito por Freud (sem mencionar o Édipo): As
Exceções.
Antes do ato me fizera saber que, em sua adolescência havia perdido
uma importante bolsa de estudos e fora detido (e humilhado) na
delegacia de polícia ao ser encontrado praticando a fellatio
no
namorado da professora de Geografia (dele). Seu pai concordara
plenamente com tal punição e sua mãe, que foi, durante a infância
dele, amante do médico da pequena cidade utilizando-o como álibi
perante as eventuais suspeitas do marido, desta vez não demonstrou a
cumplicidade (devida) esperada por ele, pois se inverteu a dívida
simbólica.
Escreveu
Freud nos Três Ensaios: “O
caráter histérico permite identificar um grau de ‘recalcamento
sexual’ que ultrapassa a medida normal... Esse traço de caráter,
tão essencial na histeria, não raro escapa à observação casual,
ficando encoberto pelo segundo fator constitucional da histeria, ou
seja, o desenvolvimento desmedido da pulsão sexual;... enigmática
contradição – par de opostos – uma necessidade sexual desmedida
e uma excessiva renúncia ao sexual”.
Não
podemos esquecer que, para Freud, a fantasia (fantasma perverso) é
positiva (consciente) na perversão e negativa (inconsciente) na
neurose.
E
na psicose retorna desde fora onde foi projetada de maneira hostil:
uma paciente que vinha regularmente às sessões em que estava
terminantemente proibida (por ela e por seu delírio) a emissão de
qualquer som ensinou-se duramente a dar suporte a todo o seu silêncio
constrangedor e ajudou-me a constatar que eu poderia suportar o meu
próprio silêncio. Por outro lado, uma analisante de elevada
formação intelectual me advertiu durante uma sessão: -
Não leve tão em sério as minhas arguições. Elas, muitas vezes,
se exibem usando lingerie vermelho!
Contudo,
suportar os silêncios não é tarefa muito simples. Ainda mais,
quando eles se apresentarem na forma de desafios, pois nestes casos
competirá ao analista fazê-los falar ou calar, dependendo da
motivação. Cito como exemplo, o torpedo enviado por outra
analisante que disse: -
Desculpe, eu não vou... desculpe por perturba-lo... Agradeço mais
não vou... Eu só quero desaparecer e silenciar
E
essa proposta de silêncio seria um grito de desespero ou uma
constatação suicida? Há um ruído que pode ser ensurdecedor nestes
silêncios. Os humanos somos muito ruidosos porque a pulsão sexual,
mesmo surgindo na calada da noite, é sempre barulhenta. Apesar de
que quando se mostrar charlatã pode também nos enganar com uma
roupa que não conseguiremos ver se não pudermos fechar os olhos (da
pulsão) onde o rei está nu!
Primum
non nocere!
“Os
antigos celebravam a pulsão e se dispunham a enobrecer com ela até
mesmo um objeto inferior, enquanto nós menosprezamos a atividade
pulsional em si e só permitimos que seja desculpada pelos méritos
do objeto”, Freud,
Três Ensaios – Nota de rodapé acrescentada em 1910.
O
tema do diagnóstico em psicanálise é sempre um assunto de grande
relevância, sobre tudo, para que não provoquemos surtos psicóticos
por imperícia. Mas, muitas vezes, tal debate pode apresentar-se qual
um modo de tamponar o que falta: o não saber. No discurso da
sexologia oitocentista e persistindo ainda na teoria freudiana, a
perversão referia-se às condutas sexuais cuja finalidade era
diferente da procriação. O avanço promovido pela psicanálise
consistiu em torna-la um elemento sempre presente seja de maneira
negativa ou positiva, em todos nós.
Para
Lacan, no Seminário IV (As relações de objeto), a perversão está
considerada em relação ao falo e à identificação. O paradigma é
o fetichismo, pois o fetichista se identifica com o falo como objeto
imaginário que completa o desejo materno. Primeira fase do Complexo
de Édipo (Seminário V, As formações do inconsciente). Ser ou não
Ser, 1957/58. No Seminário X, sobre a Angústia, o falo será o
significante do desejo, causa do desejo: objeto ‘a’ e muda assim
o estatuto do fetiche que passou de “ser o falo” a ser o “objeto
causa do desejo”. No Seminário XVI (De um outro ao Outro), Lacan
eleva a perversão ao grau de estrutura. Posição do sujeito
perverso: identificação com o objeto ‘a’ para servir, de tal
maneira, como instrumento do Gozo do Outro. Um bom exemplo disto é o
discurso de Feliciano no atual comando da Comissão de Direitos
Humanos no Planalto Central do país com cinco mil alto falantes!
Eu
acrescentarei aqui, a estes critérios lacanianos para pensarmos
sobre a perversão, a constatação discursiva da negação da
alteridade e, em consequência, da subjetividade que constitui o
outro enquanto tal, diferente de mim, indo, assim, do sexual ao
social.
Digamos
como exemplo, Maluf ao relatar sua lua de mel ocorrida há 58 anos
antes da entrevista diz: eu me casei em tal data, viajei para tais e
tais lugares, fiquei em tais hotéis, etc. Parece-nos que a esposa
não participou dessa experiência, ao menos no discurso dele não há
lugar para isso. É o UM de dois.
Pois
bem: sob a desconfiança diagnóstica de “perversão” foi
apresentado, numa “hora clínica” (no CEP), um recorte referente
ao atendimento de uma mulher casada com seu primo irmão quem também
tinha um caso amoroso com a cunhada (irmã da esposa) dentro da
residência do casal. Ela, por sua vez, iniciara um relacionamento
com um Policial Militar, guarda da creche onde deixava o filho. Os
encontros sexuais aconteciam pela manhã e dentro do carro dela. O
marido, desconfiado, colocou uma escuta no carro e descobriu tudo.
Depois disso, ele ficou ainda mais apaixonado e excitado o que o fez
procurá-la sexualmente a toda hora. Assim, entre o policial pela
manhã e o marido à tarde e à noite, ela chegou à análise
chorando e se queixando:
-
Não aguento mais transar!
Porém,
não conseguia parar, afinal, o marido afirmara: “Você é uma
mulher muito gostosa para ser somente minha!”. E a analista pensou:
“o homem se reconhece amando quando sente ciúmes”?
Não
conseguir parar coloca a questão desta mulher numa dimensão
temporal. É o tempo que não para!
Conforme
Hegel, o primeiro monista, a temporalidade está incluída na razão
no pensamento ocidental. Na origem do ser se encontra o espírito
(existência em si). Para ir em direção a si o ser tem que se
expressar: dirigir-se à matéria> natureza> história>
homem> consciência> filosofia> e por fim, numa elipse
recuperar a história do espírito. Em Hegel, o desejo é sempre
desejo de desejo (Fenomenologia do espírito). Já para Marx o
espírito surge como expressão da consciência humana e não como a
origem. Lacan demonstrou como o Eu vem de fora, no Estádio do
Espelho, sendo uma ilusão na qual eu me alieno para poder me
reconhecer: quem sou eu?
Quero
dizer com isto que
“o princípio de identidade é diferente para a psicanálise e para
a ciência, com o qual digo que a psicanálise não é uma ciência”
afirmou
Graciela Brodsky em Córdoba (16 de outubro de 2006) ao falar sobre
“A diferença sexual na experiência analítica”.
Para
a psicanálise freudiana, o espírito que age inconscientemente na
sobredeterminação do funcionamento do Eu é a Fantasia Inconsciente
- o Fantasma - realidade do inconsciente enquanto sexualidade (falta
em ser). E é próprio da lógica do Fantasma que os sujeitos
inventemos um lugar incestuoso que funcione qual “identidade”
destinada a negar a falta. Nesse caso relatado pela paciente foi: a
“gostosa”.
A
proposta do fantasma é a realização do incesto e como múltiplos
fantasmas em massa constituirão o social e possível supor que a
realidade social em que estamos inseridos tenha estrutura
fantasmática regressiva, ou seja, contra a lei. Podemos afirmar que
esse social seja um estado de exceção: de destruição. Ou, pelo
menos, um estado pleno de direitos (sem deveres) para alguns
“eleitos” representantes da Vox Pópuli. Um estado de perversão.
Por isso é fundamental, de acordo com Freud, que exista ao menos uma
lei reguladora que controle o mal estar na civilização: não
matarás! Entretanto, essa lei falta (falha) em muitas circunstâncias
em nossa cultura o que faz com que nos tornemos cada vez mais
“matáveis” conforme afirma Giorgio Agamben em seu escrito sobre
o Homo Sacer e a vida nua.
Ao
dizer de Albert Camus sobre o mito de Sísifo, é essa dor sem
escolha (dor de existir) que o obriga a realizar um trabalho inútil
e sem esperança e o transforma em proletário dos deuses, trágico
porque consciente: “a tragédia começa no momento em que se sabe”.
Daí a importância que eu outorgo ao citar sempre o imperativo
categórico formulado pela mãe romena do meu amigo Schlomo: melhor
você não sabe!
A paixão pela ignorância que pretende defender pela via do
verleugnung
(desmentido) que A
vida é bela!
E
eis que começou a tragédia dessa analisante “gostosa” porque
veio para construir um saber. O que também a situa dentro da
perspectiva ética do desejo. Veio em busca da lei do desejo para
escapar da lei do gozo.
Comparemos,
então, este breve relato clínico com uma matéria publicada na
http://revistatrip.uol.com.br/revista/179/reportagens/Ruth-pega-geral.html,
em 01/10/2013 e que me foi sugerida pelo jornalista Romulo Osthues, a
quem agradeço profundamente.
Ruth
pega geral:
Ruth, 52 anos, professora, transa com até 41 homens numa noite sem
cobrar e sem perder o tesão. São sessões de gang
bang.
Durante a reportagem um homem sai cambaleando da suíte nomeada “O
cantinho da Ruth” e desabafa: “Porra,
merrrmão, foi surra de boceta, foi surra!”.
Quem bateu no grandalhão foi Ruth! Escreve Lino Bocchini na revista,
como se fosse um espetáculo de luta. E talvez o seja, não?
Novamente
o tempo: “A
celulite já está aparecendo, e as ruguinhas também... mas os
peitinhos continuam em pé e a bundinha, durinha, fazendo o maior
sucesso. A vontade de trepar segue no auge, e minha resistência para
ser fodida diversas vezes seguidas não diminuiu. Aliás, acho que
aumentou!”
Ela
se tornou uma celebridade na cena swinger
carioca
e na internet ganhou fama como Ruth36. O marido explica que é por
ter transado com 36 homens numa noite só, mas já bateu o recorde.
Agora são 41.
A
explicação de Ruth sobre as origens desse espírito erótico está
na infância, quando brincava de médico com os meninos do prédio.
“Hoje
eu adoro quando tem uma meia dúzia de homens em torno de mim, me
usando e abusando”. Festas
liberais! Sou total flex! (Homens e mulheres), afirma Ruth.
As
pessoas podem assistir tudo o que rola dentro do Cantinho da Ruth
através de um vidro e sentadas confortavelmente em uma sala de
estar.
Ruth
aguarda com ansiedade as quintas feiras, quando tudo acontece e ela
tem que estar “gostosona”. Gosta de se definir como uma
“exibicionista completa”. Conta com alegria como teve um caso
amoroso com oito fuzileiros navais ao mesmo tempo. De acordo com o
repórter, narra isto com a mesma naturalidade com que poderia falar
sobre o café. Na última quinta – diz – morreu de prazer durante
um gang bang anal com 15 homens.
Todavia,
considera que as melhores transas da noite são, depois, com o marido
que não tem ciúmes em absoluto. Porém, faz uma ressalva: evita o
sexo quando está menstruada.
A
matéria esclarece: se trata de um casal de vida social normal,
profissionalmente bem sucedido, pais dedicados e, além disso, muito
educados e simpáticos.
Mas
o marido alerta: “Ela
gosta de carinho, de cuidadinho. E não gosta dessa história de tapa
na bunda, que puxem o cabelo ou apertem o bico do peito muito forte.
Isso corta o barato dela”.
E
assim falava Ruth VIP: a Very Important Puta.
Finalmente
a reportagem dá a palavra aos psicanalistas, que explicarão:
relação anaclítica, Mauro Hegenberg, sem querer ser politicamente
incorreto. Insaciabilidade e voyeurismo constituiria o casal, sendo o
único limite, a menstruação. Sueli Gevertz. Ruth oferece de graça
aquilo que a sociedade de consumo cobra, diz Jacob Pinheiro Goldberg.
Ruth tem uma compulsão, conclui Luiz Alberto Hans. E postula uma
contabilidade que para mim soa estranha: transar com cinco é uma
coisa, já com 30 é outra. (?)
Os
psicanalistas também gostamos muito de falar e às vezes beiramos
pelas bordas de certo exibicionismo. Quiçá seja porque o
dispositivo nos obrigue a permanecer tanto tempo em silêncio.
Todavia, neste caso, Ruth não quer saber (não demandou nenhuma
explicação, pois ela “sabe” gozar) e é provável até que se
divirta com os disseres dos peritos. Porque, para Ruth (a despeito de
Lacan) a Relação Sexual existe! E é nessa tão estranha
contabilidade incompreendida por Hans – para ela, certamente, um
pequeno Hans – que ambos (ela e seu marido) realizam em Áurea
Proporção, o encontro com o Número de Ouro da substância gozante:
o objeto “a”. E a perspectiva da Castração apenas acena marcada
numa existência temporal (futura) que será postergada enquanto a
bundinha e os peitinhos permanecerem duros. Ou seja, enquanto possa
se manter – dentro de uma lógica masculina – a Idade Viril.
Eu
desconfio que seja dentro desta lógica que assim caminhe a
humanidade globalizada. E que esta represente a tal corrida contra o
tempo proposta pelo capitalismo tardio, pós-modernidade,
globalização, neoliberalismo, para todos os proletários, atuada
por Ruth36 às quintas feiras num jogo incessante de repetição que
não resulta tão estranho se nós levarmos em consideração a parte
que nos cabe neste latifúndio da existência contemporânea. Como
define Bauman, tão líquida. Tanto, que escorre pelo vão de nossos
dedos entrelaçados. Afinal, embora ainda não fôssemos capazes de
inventar algum novo discurso eficaz sobre o amor, já tornamos a
enobrecer a pulsão, como os antigos, mas quiçá só gozemos
degradando o objeto.
Itaquaciara, 16 de novembro de 2013
Arnaldo Domínguez de Oliveira é Psicanalista e Professor do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, fundador do PROJETO ETCÉTERA E TAL... Psicanálise e Sociedade, conselheiro da Biblioteca Popular de Itaquaciara D.Nélida e médico de formação.
Itaquaciara, 16 de novembro de 2013
Arnaldo Domínguez de Oliveira é Psicanalista e Professor do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, fundador do PROJETO ETCÉTERA E TAL... Psicanálise e Sociedade, conselheiro da Biblioteca Popular de Itaquaciara D.Nélida e médico de formação.
domingo, 1 de dezembro de 2013
Em “Um Homem Sério” dos Irmãos Coen: Neurose Obsessiva e Produção de Indeterminação
de Christian
Ingo Lenz Dunker
1.
A Função do Amor na Neurose Obsessiva
O
filme “Um Homem Sério” (A Serius Man) dirigido
pelos irmãos Coen (2009) é uma releitura do livro de Jó à luz da
proverbial experiência suburbana de um professor de classe média,
Lawrence Gopnick (Michel Sthulbarg).
A
atitude de obediência e impassividade do protagonista serão
expostas crescentemente a uma experiência de indeterminação
sentida inicialmente como insensata, depois como indeterminada e
finalmente como irrepresentável. Desta maneira podemos argumentar
que a gramática do sofrimento obsessivo oscila, em seu estado
natural, entre a necessidade e a possibilidade, como modalizações
da demanda associada ao estado de angústia flutuante. A crise de
gozo, que normalmente induz a produção de novos sintomas, ou de
sintomas secundários com a eles se referia Freud, ocorre pela
emergência de uma contingência. Temos aqui a angústia de segundo
nível. Finalmente, é pelo encontro com a impossibilidade, como
gramática fundamental do desejo obsessivo que a angústia real (Real
Angst) pode ser tematizada.
A
abertura e o fechamento do filme ligam-se à trilha sonora
Somebody to Love,
gravada em 1966, pelo grupo de rock Jefferson´s Airplane. O
estribilho insiste em três perguntas e uma recomendação:
“Don´t
want somebody to love?”
(Você não quer alguém para amar?) “Don´t
need somebody to love?
“ (Você não precisa de alguém para amar?). “Wouldn´t
you love somebody to love?”
(Você não amaria ter alguém para amar?). “You
better find somebody to love”
(É melhor você encontrar alguém para amar). E aqui se concentram
muitas das perguntas que levam o amor ocupar uma posição específica
na economia do desejo obsessivo. Querer
e precisar
de alguém para amar
é forma de demanda de autorização (amorosa) do outro para
sustentar seu próprio desejo. Se o outro me ama, meu desejo está
garantido. Contudo, se meu desejo está garantido ele não é mais
desejo, mas apenas demanda.
2.
A Religião Individual
Gopnick
representa um ótimo exemplo desta transformação anunciada por
Lacan de que as neuroses clássicas, como a fobia, a histeria e a
neurose obsessiva iriam ser substituídas pelo incremento das
neuroses caracteriais, neste caso neuroses narcísicas. A principal
diferença que podemos notar entre a neurose obsessiva clássica e
sua variante narcísica dos anos 1960 é a redução do papel central
ocupado pela dúvida no primeiro caso, substituída pela atitude de
complacência funcional e conformada do segundo contexto:
“A
produção da incerteza é um dos métodos que a neurose obsessiva
emprega para retirar o enfermo da realidade e isolá-lo do mundo, o
que constitui, por certo, uma tendência de toda perturbação
psiconeurótica. Também aqui é muito nítido o tanto que os doentes
colocam de si para esquivar-se da certeza e poder aferrar-se a dúvida
(...)” 1
Contra
esta expectativa de coloca o Outro na posição de conceder,
autorizar ou legitimar o desejo como ato, nosso protagonista situa-se
em uma espécie de suspensão continuada do ato. Como em o “Anjo
Exterminador” de Luiz Buñuel, no qual um grupo de burgueses
não consegue levantar-se das privadas, nas quais estão sentados em
um interminável jantar repleto de conversação vazia, ou como em “O
Segredo de seus Olhos” no qual Ricardo Darin não consegue
dizer “te amo”. A falta da letra “a” em sua
máquina de escrever faz com que ele se prenda ao “Te mo”
que adia indefinidamente seu ato.
Lawrence
Gopnick quer saber antes de agir, quer entender onde está seu erro,
para poder corrigir-se diante do destino. O filme se desenrola em
torno do encontro e da história de quatro Rabinos, com os quais
nosso herói se encontra ao longo de sua relação com sua relação
ao desejo.
Freud
já havia postulado este paralelo estrutural entre a neurose
obsessiva e a religião. A neurose obsessiva é uma religião
individual, assim como a religião é como neurose obsessiva coletiva
universalizada. Pode-se atribuir esta afinidade entre a obsessão e a
religião ao fato de que as religiões voltam-se frequentemente para
a exploração de temas cuja solução é indeterminada:
“A
predileção dos enfermos obsessivos pela incerteza e a dúvida se
converte em motivo para aderir-se seus pensamentos, preferentemente,
a aqueles temas nos quais a incerteza dos homens é universal, nos
quais nosso saber ou juízo permanecem por natureza expostos à
dúvida. Estes temas são, sobretudo: a filiação
paterna, a duração da vida, a vida depois da morte e a memória,
na qual podemos acreditar sem possuir a menor garantia de confiança.”
2
O
personagem Lawrence Golpnick em nenhum momento parece tomado pela
dúvida. Não lhe ocorre que ele deve agir. Sua disposição é
antes para saber daí sua demanda dirigir-se a advogados e
rabinos. A verdade, que ele declara a cada momento, sem se dar conta
de suas consequências trágicas, é simples e nominalmente declarada
como “eu não fiz nada”. Sua convicção neurótica
baseia-se no fato de que se alguém “não faz nada” nada de mal,
de responsável ou de culposo pode advir.
Inversamente,
há uma aura de cinismo nos personagens que envolvem o protagonista,
como se todos eles simplesmente “não quisessem saber” das
implicações e consequências de seus atos sobre Golpnick. Eles
vivem um trâmite funcionalizado da demanda. Não há amor, promessa
ou compaixão e mesmo nos momentos mais tristes do filme, como uma
única exceção que comentaremos mais adiante, ninguém experimenta
uma relação autêntica de piedade pelo nosso inocente incidental.
Aquele
que demanda saber e compreensão para justificar seus atos, antes e
em vez de praticá-los, estará condenado a receber em escala
invertida a violência requerida por seu próprio masoquismo. O ato é
um ato, porque ele é “sem saber”, caso contrário ele seria
apenas obediência desimplicada. É por isso que Golpnick não é
um Homem Sério. Ele pode ser um homem bom, um homem inocente,
um homem piedoso, um homem que “não fez nada”, um homem que
“tentou ser um homem sério”.
3.
O Falso Rabino:
O
dybbuk
é um demônio ou espírito presente na mitologia judaica. Ele se
apresent como uma forma
de possessão por meio da qual um espírito malicioso se apossa do
corpo de um morto recente. O dybbuk
opõe-se ao ibbur
("impregnação")
que acontece com o consentimento do possuído e geralmente orientado
para boas ações.
As
formas da loucura na antiguidade judaico-cristã baseiam-se quase que
exclusivamente na oscilação entre perda e recomposição da fé. É
a relação com a lei, que articula o paralelo entre bom-mal e dizem
“quem
você é”.
A loucura é indeterminação entendida como falta
de determinação
(de fé, de nomeação, de fidelidade à lei).
O
caso greco-romano é quase o inverso. São os deuses que se apossam
dos homens e seus desígnios desconhecidos que comandam nossa ação.
A loucura é indeterminação entendida como excesso
de determinação
(perda de autonomia, supressão do ato). Os deuses gregos se apossam
dos heróis e fazem com que eles executem atos valorosos ou
desmerecedores, sábios ou incautos.
Por
isso a figura do dybbuk,
assim como a excepcional narrativa de Jó, constitui uma exceção a
esta regra. Ele coloca um problema moral que é “como
saber?”
O
conto polonês que se encontra na abertura do filme dos irmãos Coen
retrata um camponês que volta para casa em meio a uma nevasca quando
a roda de sua carroça quebra. Azar. Mas é justamente nesta hora que
aparece um velho rabino que se oferece para ajudá-lo e em recompensa
o camponês o convida para sua casa. Mas chegando em casa sua esposa
desconfia que o rabino seja de fato o rabino. Ela acha ele é na
verdade um dybbuk
que se apossou do corpo do rabino. Mas então: como saber? Se se
tratar do rabino um prato de sopa quente fará a recompensa merecida
e a gratidão do sábio, uma benção. Mas e se se tratar de um dybuk
ela
terá deixado entrar em sua casa a semente da maldição. A reposta
da esposa se dá em ato, enfiando um punhal no peito do dybbuck
que sai sangrando da casa, nevasca a dentro, não sem um riso
enigmático.
O
dybbuk,
no caso da esposa do conto Polonês, coloca à prova a dimensão da
fé, dividida entre o testemunho da autoridade humana e a crença nos
sentidos imediatos. Uma amiga da irmã contara à esposa do camponês
que o Rabino Traitle Groshkover havia morrido de tifo. Ela devia,
portanto, confiar na amiga, e por extensão na comunidade oral à
qual pertencia, ou em seus próprios sentidos que lhe mostravam o
Rabino diante de seus olhos?
O
marido camponês retrata a presa na “crença fácil”, que
confirma nossas expectativas de um destino protetor, ao passo que a
esposa representa o princípio da “crença difícil”, que é
capaz de suspender a complacência do saber que se confirma por si
mesmo. A solução da esposa coloca o ato adiante do saber. Ela não
pode de fato saber diante de quem está, mas deve agir assim mesmo.
Esta é a solução que Gopnick não consegue engendrar.
4.
O Método das Cenas Cruzadas e o Objeto Entrelaçado
O
método do filme baseia-se na montagem de cenas sempre em paralelo,
que se encontram em um elemento convergente cujo sentido é
insensato, contingente e irrepresentável. Por exemplo, na sala de
aula, o filho de Gopnick tenta enganar o professor de hebraico
ouvindo “Somebody to Love”, em seu fone de ouvido. É pego
e seu rádio é apreendido pelo professor. Junto vão-se os 20
dólares que ele havia tomado da irmã, para pagar o traficante na
escola.
Ao
mesmo tempo na sala de exame seu pai está sendo examinado pelo
médico. Este apalpa, pergunta e introduz um iluminador em seu
ouvido. O ouvido da primeira cena se fundo com o ouvido da segunda
cena, dividindo o sentido das cenas cruzadas: será suficiente ouvir?
Será preciso ainda realizar um Raio X.
O
método das cenas cruzadas, com um objeto dividido que as articula,
pode ser descrito como um entrelaçamento de sentidos no interior do
qual emerge uma incerteza. Por exemplo, no famoso experimento mental
proposto pelo físico Erwing Schrödinger em 1915, e mencionado na
primeira aula de Gopnik, um gato é encerrado em uma caixa contendo
uma substância que pode ou não ter um de seus átomos decaídos.
Isso pode acontecer a qualquer hora ou simplesmente nunca acontecer.
Sabemos com certeza que se abrirmos a caixa o gato estará morto, mas
não sabemos se dentro da caixa está um gato vivo, um gato morto, ou
um gato com partes igualmente vivas e mortas3.
O gato de Schrödinger é a extensão do princípio da incerteza de
Heisenberg e exemplifica o conceito da física quântica chamado de
Verschränkung
(entrelaçamento).
“É
típico destes casos que uma indeterminação
originalmente confinada ao domínio atômico venha a transformar-se
numa indeterminação macroscópica,
a qual pode então ser resolvida pela observação direta. Isso
previne-nos de tão ingenuamente aceitarmos como válido um "modelo
impreciso" para representar a realidade. Em si mesma esta pode
não incorporar nada de obscuro ou contraditório. Há uma diferença
entre uma fotografia tremida ou desfocada e um instantâneo de nuvens
e bancos de nevoeiro.”4
O
domínio da incerteza articula ciência e religião, por exemplo, na
figura novamente irônica do “Mentaculus”, o mapa de
probabilidades do universo, desenvolvido pelo irmão de Gopnik e
utilizado para ganhar dinheiro com o jogo, mas que em verdade
corresponde a garatujas sem sentido.
Também
a sabedoria dos Rabis aparece como um “repertório de problemas e
soluções comuns dentro de uma tradição que são transmitidos”,
mas ao mesmo tempo como um conjunto de truísmos de obviedades que
questionam a natureza das perguntas mais do que sugerir respostas.
Outra
sequência que se presta a ilustrar o método do entrecruzamento
ocorre quando nosso herói aparece filmado em posição superior, uma
vez que subiu ao telhado para consertar a antena de televisão.
Lawrence Gopnick no alto de sua casa depara-se com a sensual vizinha,
Mrs. Samski, tomando sol, nua. A cena seguinte mostra seu extasiado
irmão, filmado na mesma perspectiva ascendente, saindo da água com
a mirabolante ideia de “engarrafar o ar daquela praia”. Entre as
duas cenas o ar puro e a sensação ascensional de dominação ...
inútil. Freud utiliza a noção de entrelaçamento em Pulsão em
suas Vicissitudes (1915):
“Pode
ocorrer que um mesmo objeto simultaneamente sirva para a satisfação
de diferentes pulsões, o caso do entrecruzamento pulsional
(Triebeverschränkung)”
Na
primeira sequência o ouvido une e separa as duas cenas, a da sala de
aula e a da sala de exame. Ao final isso se revelará na inversão
entre o tato e ao ouvido. Ele está com saúde, diante do olhar e do
tato do médico, mas o Raio X mostrará um sentido pior que nos
escapa. Na segunda sequência trata-se do olhar que também se
mostrará divisão entre potência de dominação e a futilidade de
seu sucesso.
5.
Divórcio e Suborno
O
filme aplica o método do entrelaçamento a dois problemas que
articulam a trama. Como professor de física ele recebe um aluno
coreano (Clive) que se queixa que não sabia que era necessário
saber matemática para fazer a prova de Física. Gopnick explica que
isso é evidente, mas ele não se conforma e entrega um envelope
contendo dinheiro, supostamente para que o professor o aprove.
Aceitar ou não o suborno, denunciar ou não o aluno, em meio às
tratativas para ser contratado como professor permanente na
universidade constroem o dilema moral da primeira série. Mas ele
parece não estar de fato em dúvida, ele apenas adia as providências
que poderia tomar.
A
segunda série é composta pelo pedido de divórcio feito pela esposa
de Gopnik, que se envolve com o compreensivo e ardiloso Sy, viúvo há
três anos. Ela quer o get (consentimento ritual para que o
novo casamento siga a ordem religiosa), sugere que Gopnik vá morar
em um Motel nas redondezas e posteriormente retira as economias do
casal do banco. Tudo isso sem que Gopnick se mostre indignado,
irritado ou perca a sua paciência de Jó.
A
lógica do caldeirão furado, explicitada por Freud, exemplifica esta
possibilidade de “entrelaçamento” dos motivos que desconhecem a
contradição posto que dependentes do inconsciente. O que o
entrelaçamento produz é um efeito de “desubjetivação” diante
do ato. Uma versão do caldeirão furado aparece na cena com o
estudante coreano: “Dê uma chance assim não perco minha
bolsa” diz o estudante. Diante da firmeza do professor o pai do
estudante vem interpelá-lo:
a.
você difama meu filho (ao acusá-lo de propor suborno)
b.
você é corrupto (ao aceitar o dinheiro do suborno)
c.
você está agindo sob “choque cultural”
Outra
versão do mesmo problema aparece no impasse sobre o divórcio. Sua
esposa pede: “Dê o get assim posso casar com Sy Eableman”.
Sy, difícil não ser atraído pela assonância
irônica com Psychologist, Psychoanalist, Scientist.
Acrescido de Ableaman, ou seja, “Homem Capaz”.
6.
A Indeterminação como Entrelaçamento (Verschränkung)
do Possível
Um
acidente de carro mata Sy Ableman – “A Serius Man, symply”
solucionando o problema do divórcio. Enquanto ele bate o carro, ao
xingar Clive, o estudante coreano, ele descobre que estão cobrando
por uma coleção de discos que ele não pediu. Como ele “não
fez ao nada” ao receber, agora estão a lhe cobrar. Esta é a
máxima que torna a experiência moral incompreensível para o
neurótico obsessivo: o fato de que ele não fez nada deveria
imunizá-lo contra a culpa ou responsabilidade sobre os acidentes do
mundo. No entanto é exatamente porque ele não fez nada, que
ele é punido.
O
filme é uma crítica à moral da inocência e sua ligação com o
giro paranoico na Neurose Obsessiva. Ele gira em toro da ideia de que
“não fazer nada” é justamente “fazer alguma coisa”.
Confia-se assim numa inanidade, em uma extraterritorialidade que é
diferente da “Bela Alma que assiste a tudo de fora do mundo.
Parece-se mais com um espectro que participa deste mundo sem dele se
apropriar. O dibbuck, portanto, é uma grande imagem, irônica
e ilustrativa, para estes seres sem alma, em ausência, em distância,
como espectadores em relação à própria realidade. Dispostos que
estão para se “apropriar de um cadáver”, que se lhes afigura
como um “personagem” do qual não conseguem se separar.
Exatamente
por que ele não fez nada, e lembremos que o nada é um dos
objetos a, descritos por Lacan, que trata-se de pedir uma autorização
ao Outro para desejar. O neurótico obsessivo está preso entre o
gozo contingente (deduzido do necessário) e o desejo impossível
(deduzido do possível). Seu sofrimento está duplamente determinado:
pela necessidade (cuja negação não lhe habilita chegar ao
exercício da contingência, mas da coerção insabida, da
obediência, como no sonho do encarceramento no caixão) e pela pela
possibilidade (cuja negação não lhe habilita chegar ao
reconhecimento da impossibilidade, mas apenas da impotência).
Como
ele diz: “Eu não sou um homem mal”, “Eu não fiz
nada”, “Eu tentei ser um homem sério”. Ao contrário
de Sy que se declara como tal, Gopnick, apenas tentou.
Em
um filme sem piedade ou compaixão Gopnick procura consolar o irmão
na cena da piscina. Irmão que o inveja. Ele tenta ajudar o irmão a
chegar ao Canadá, mas é abatido pelo vizinho e seu filho (de porte
e apresentação racista). Para “ajudar o outro” ele acaba usando
o dinheiro do “suborno”, tornando-se se assim objetivamente
culpado. Isso explica a virada sensacional que o filme imporá nas
suas sequências finais. A religião obsessiva se alimenta de seus
próprios fracassos, ao transformar toda indeterminação em déficit
de determinação.
1 Freud, S. (1909) A propósito de um caso de neurose
obsessiva (O Homem dos Ratos), 181-182.
2 Freud, S. (1909) A propósito de um caso de neurose
obsessiva, 181-182
3 “Um gato é
trancado dentro de uma câmara de aço, juntamente com o dispositivo
seguinte (que devemos preservar da interferência direta do
gato): num tubo contador
Geiger há
uma pequena porção de substância radioativa, tão pequena
que talvez,
no decurso de uma hora, um dos seus átomos decaia, mas também,
com igual probabilidade, talvez nenhum se decaia; se isso acontecer,
o tubo contador liberta uma descarga e através de um relé solta
um martelo que estilhaça um pequeno frasco com ácido
cianídrico.
Se deixarmos todo este sistema isolado durante uma hora, então
diremos que o gato ainda vive, se nenhum
átomo decaiu durante
esse tempo. A função-Ψ do
sistema como um todo iria expressar isto contendo em si mesma o gato
vivo e o gato morto simultaneamente ou dispostos em partes
iguais.” Schrödinger,
Erwin (1935).
"Die
gegenwärtige Situation in der Quantenmechanik (A
situação Atual
da Mecânica Quântica)". Naturwissenschaften.
4 Schrödinger,
Erwin (1935).
"Die
gegenwärtige Situation in der Quantenmechanik (A
situação Atual da Mecânica
trailer do filme
Link para o filme completo:
http://filmesonlinetocadoscinefilosvideos.blogspot.com.br/2013/10/um-homem-serio-2009-direcao-ethan-coen.html?m=1
Christian
Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de
Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de
Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação
Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado
(IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University
(UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do
Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica
psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e
tratamento” (ed. Annablume, 2011)
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