de Dorothee Rüdiger
Quero falar do amor. Não do
amor romântico, recíproco e sentimental, mas do amor que Jacques Lacan chama de amuro. Em
tempos difíceis é bom falar do amor. Nem tanto para escapar do espírito do
tempo, nem tanto para deixar-se embriagar pela paixão para não sentir as dores
do momento, mas para talvez encontrar no duro amor do amuro sustento
para viver apesar da impossibilidade de encontrar a palavra certa no
encontro com o outro e, porque não num
sentido mais político, com os outros.
Motivos parar essas
reflexões sobre o amor para lá do muro da impossibilidade do entendimento encontrei
recentemente, quando me deixei tocar pelo filme “A garota
dinamarquesa” e pelas palavra ditas por Jacques Lacan lidas
em voz alta durante o último encontro do Projeto Análise de Jorge Forbes.
Visto pelo prisma do seminário 20 de Jacques Lacan, o filme trata, além
da questão da identidade sexual, desse
novo amor chamado amuro.
A história do amor singular
e revolucionário entre Einar Wegener e sua mulher Greta passa-se durante os anos 20 do século
passado. Einar e Greta formam um belo casal recém-casado e apaixonado. Vivem
como podem em Kopenhagen.
Ele, além de fazer sucesso como pintor, trabalha como cenógrafo. Ela tenta
vender os quadros dela sem grande êxito. Falta vida nos retratos que pinta de
pessoas conhecidas da sociedade.
O acaso vai fazer com que a
vida desse casal vá tomar um rumo imprevisto. Uma das modelos de Greta, uma bailarina,
fica doente. Na falta do modelo, a mulher pede para o marido se deixar
pintar segurando o vestido dessa bailarina. Einar descobre no
momento da pose de bailarina um estranho desejo de vestir roupas femininas. “Por
que não?” Greta acha graça do marido e os dois passam a brincar de cross dressing vestindo Einar de “Lili”. Pouco a pouco, vai se manifestar o desejo de Einar de
não só se vestir como mulher como também
ter um corpo de uma mulher. A cena em que descobre seu estranho desejo, uma cena
quase “schreberiana”, é muito bem alocada nos bastidores de
um teatro, onde há possibilidade de se representar diversos papéis no palco
que significa a vida. Einar poderia
continuar simplesmente a fazer de conta que é uma mulher. Mas, o que
corresponde para Einar ao desejo de ser uma mulher é ter um corpo de uma mulher,
livrar-se dos órgãos sexuais do homem percebidos ali, diante do espelho, como sendo apêndices
que o incomodam. O homem resolve fazer coincidir a identidade de
mulher com o corpo de uma mulher.
No entanto, “a garota
dinamarquesa” não é ele. E o filme é mais que uma história
sobre a transsexualidade. É
uma história de um amuro, do
amor de uma mulher que começa, quando a distância entre ela
e o marido aparece provocada pelo desejo
dele de tornar-se uma mulher. Marido e mulher passam a viver um
amor que ultrapassa os padrões da moral vigente, um
amor sustentado para lá do prazer das relações sexuais. Como amar
um marido “capado” que não dá mais “conta do recado”? O amuro vive
da diferença, da falha, do abismo entre um e outro, da castração, aqui tomada
no sentido literal da palavra. Esse abismo
aparece na história (filmada pelo diretor Tom Hooper, e premiado com o “Oscar” pela atuação da atriz Alícia Vikander), quando o marido segue seu desejo e decide transformar
seu corpo. Greta o
ama para lá das convenções, do “o que os outros vão pensar” e de
seus próprios desejos sexuais. Einar, por sua vez, não
deixa de amá-la . Sem referência alguma nos códigos de conduta, os
dois inventam um amor. São dois artistas. Conseguem expressar sensibilidade e singularidade na arte. Superam, muito à frente de seu tempo, suas angústias
diante dos caminhos estranhos que
o desejo possa trilhar.
Texto publicado em primeira edição no "Mundo visto pela psicanálise".
Trailer
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em direito pela Universidade de São Paulo, sócia do Instituto da Psicanálise Lacaniana - IPLA em São Paulo.
4 comentários:
Uma professora de psicanálise minha fez um comentário a respeito do filme que eu achei muito válido: buscar a mulher e a morte se encontram ali.
Quando assisti o filme, só pensava na questão do desejo de tornar-se mulher. Achei maravilhoso ler por aqui “schreberiana”.
O filme é uma pintura.
Mas não se compara a historia narrada no livro. Neste existe um traçado na psique dos personagens principais, desde a época da infância dos mesmo.
Tal visita ao passado deles, acaba embasando muitas atitudes ocorridas na fase adulta. O surgimento de Lili ganha traços de anterioridade.
Filme é lindo... o LIVRO profundo e revelador.
Belo e sensível.Amar é doar o que não se tem...
Belo e sensível.Amar é doar o que não se tem...
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