de Laureci Nunes
A mudança do título do filme francês “À la folie... pas du tout” para “Bem me quer, mal me quer” em
português, afastou-o do tema abordado: a loucura, mais especificamente a
erotomania; outro problema é que ele é apresentado ao público brasileiro como “uma
história de amor cheia de surpresas”. É verdade que o amor é o tema central do
filme, mas trata-se do amor louco da psicose, e “surpresas” não é o que caracteriza
o filme que é de suspense e terror.
O filme, dirigido por Laetita Colombani, encenado por Audrey
Tautou, como Agélique e por Samuel Le Bihan, como Loïc, é montado de forma
genial, e pode ser dividido em três partes bastante distintas.
Na primeira parte, a personagem principal – Angélique
apresenta uma história de amor correspondido e com apenas um obstáculo: o fato
de seu amado, Loïc, ser casado. Obstáculo, no entanto, superável em breve,
pois, segundo Angélique, seu amado está decidido a separar-se. Somos levados a
acreditar na efetiva participação de Loïc na formação do sonho da jovem, pois
tomamos como dado da realidade o que advém da certeza delirante de Angélique,
isto é, de sua realidade subjetiva, o que o torna, à primeira vista, num
cafajeste.
Com o desenrolar da película, já na segunda parte do filme, quando
aparece o entrecruzamento dos fatos, é que nos damos conta tratar-se de uma
história de amor unilateral.
Verificamos então que o delírio erotomaníaco passou a ter um
papel preponderante na vida de Angélique. Que ele atravessou seus laços sociais
e sua arte, que é desde dele que ela armou seu mundo, e é de onde sua vida e
seu próprio ser adquirem sentido.
O desencadeamento do delírio amoroso ocorreu a partir de um
encontro contingente da jovem com o cardiologista; o médico, feliz ao saber da gravidez
da esposa, entrega-lhe uma rosa, retirada do buque que levaria à sua mulher.
Ato banal que Angélique levou à serio demais.
Desde a psicanálise podemos dizer que nesse momento ela
experimentou um gozo próprio da posição feminina, que desencadeou o fenômeno
chamado de empuxo-à-Mulher: ela se converteu em A mulher a quem Loïc amava. Ao interpretar o gesto do médico como
uma prova de amor, a jovem expressa o fundamento da erotomania: “o Outro me
ama”. Todo o real é tratado pelo imaginário (desde onde ela se sustenta),
conferindo sentido amoroso a tudo. A
cena em que envia um coração de presente ao cardiologista evidencia sua
particular forma de tratar o simbólico: sem metáforas. No limite vemos o que
prenunciava a romântica frase que a jovem escrevera: “meu coração é para sempre
seu”. O coração, órgão que encarna a metáfora do amor, fora tratado no real do
órgão, sem véu.
Foi através do estudo da paranoia que Lacan fez sua entrada
na psicanálise. Sua tese de doutorado: “Da psicose paranoica e sua relação com
a personalidade”, centra-se sobre a erotomania e nela Lacan reafirma, tal qual
seu mestre Clérambault, a existência de três fases clássicas: esperança,
despeito e rancor.
A erotomania não se
restringe à psicose, ao contrário, é um componente delirante comum às mulheres.
Pela falta de um significante que as defina, as mulheres tornam-se muito mais
propensas e dependentes do amor, amam visando ser amadas[1].
É por essa via que tentam significar e fazer consistir seu ser. Por isso, é
comum nas neuróticas a Interpretação de pequenos gestos ou palavras como signos
de amor; só que por necessitarem das provas correspondentes, demandam
insistentemente palavras de amor; mas, como não há a última palavra que encerre
uma mulher na certeza do amor do outro, a demanda de palavras de amor se
estende ao infinito, porque no limite, como nos diz Lacan, o que uma mulher
demanda é a garantia de ser a única para o objeto amado.
Na psicose, porém, uma vez instalado o delírio, a
consequência é a certeza do amor, por isso as palavras de amor não são
necessárias. No filme fica claro que Angélique não demanda à Loïc que fale, ao
contrário, manobra com o silêncio dele produzindo ela mesma o sentindo sempre na
direção dada por sua loucura. Lacan considera que o amor que se apresenta nas
psicoses é um amor morto, porque não está vivificado pelo desejo, o que nele
encontramos é o gozo mortífero: a pulsão de morte. Ainda que eventualmente
nessa estrutura a suplência amorosa possa efetuar uma estabilização (mesmo que
temporária), em Angélique tal encontro a conduziu ao pior.
As consequências trágicas da paixão de Angélique vão se
apresentando em um crescendo: desde horas de espera por encontros que não
acontecem, dois assassinatos, da tentativa de suicídio até a tentativa de
homicídio do próprio amado.
A tentativa de suicídio se dá após escutar Loïc declarar seu
amor à esposa. É na medida em que ela vê dirigida à outra o que ela tinha
certeza ser a destinatária que sua vida perde o sentido e a loucura chega ao
seu ápice. Nesse momento ela se encontra como um objeto caído do Outro, sem
esperanças. Literalmente tomada pela pulsão de morte, fez valer a frase que
dissera ao amigo: “se eu não acreditar nisso [no amor de Loïc], o que me
resta?”. Ela tornara-se o próprio objeto nada.
Encontramos também a evidência do poder de sedução,
persuasão, além da inteligência de Angélique para fazer valer sua verdade
delirante, quando a sua loucura arrasta outros sujeitos, levando-os a cometer
atos surpreendentes: furtos, agressões, omissões de crimes. Aqui vale a pena
destacar a passagem ao ato do próprio Loïc, quando agrediu a paciente. Ela é
ilustrativa para situar porque, em psicanálise, não fazemos diagnóstico da
estrutura clínica a partir do comportamento, da pura evidência, e sim a partir
do discurso e sob transferência, quando podemos localizar as coordenadas de
como o sujeito se situa no campo do Outro e como responde ao gozo do Outro.
Caso contrário, a loucura circunstancialmente manifesta de Loïc, recortado do
contexto, poderia facilmente ser tomada como indicativo da estrutura psicótica.
A tentativa de assassinato à Loïc, após o médico salvar-lhe a
vida, é a expressão da terceira fase da erotomania: o rancor: ela o golpeia
após ouvir dele a frase “tudo acabou”.
A terceira parte do filme dá conta dos efeitos do tratamento,
a partir de sua internação. Para além dos eletrochoques, das pílulas que não
engoliu e das conversas com o psiquiatra, que concedeu-lhe alta após alguns
anos, vimos manter-se intacta tanto sua capacidade artística quanto sua paixão
por Loïc, o que nos remete a localizar o lugar radical, nesta mulher, do amor e
da arte, que a ligam, paradoxalmente,
tanto à vida quanto à morte.
[1]
LACAN, J. O seminário, livro 8, A
transferência, Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor, 1992.
Publicado originalmente em PSICANÁLISE VAI AO CINEMA / Soraya Valerim (Org.) - Florianópolis: EBP-SC, SC, 2012, p.45.
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Laureci Nunes é Analista praticante, membro
da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise.
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