quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O PROCESSO DO DESEJO (LA CONDANNA)

de Laerte de Paula


“O impossível tem um preço. Se tem medo da condenação,  jamais conseguirá”



INTRODUÇÃO: Comento o filme citado como exercício reflexivo e erótico. A partir das cenas que visitei, faço incursão às minhas experiências e procuro realizar ligações associativas. Se tal jogo servir de inspiração ao leitor, o objetivo terá sido bem-sucedido. Aceitando o convite dos criadores do filme – e toda a razão de ser deste texto implica em aceitá-lo – podemos dialogar com os personagens e construir algumas ideias próprias. Advirto os leitores de que os comentários a seguir revelam uma boa parte da trama do filme.

Não bastasse a instigante trama construída, este filme, produzido em 1991, foi roteirizado em circunstâncias inspiradoras: Marco Bellocchio, renomado cineasta italiano, convidou seu ex- terapeuta, o psiquiatra Massimo Fagioli, para a empreitada(1). O resultado é uma perspectiva sobre a sedução e o erotismo que ganha espaço sob a forma de uma discussão ética, atravessada entre o campos íntimo e jurídico. O impasse se impõe: desde onde pensar e julgar os caminhos e descaminhos do desejo? Até onde o Estado haveria de arbitrar sobre este recanto íntimo tão arredio a normas?

PRIMEIRO ATO

Após uma visita acompanhada ao Palazzo Farnese, Sandra (Claire Nebout) esconde-se ali após seu fechamento. A cena é ambígua quanto às motivações, mas não deixa dúvida quanto à escolha: Sandra chega perto da porta e avista o funcionário que está trancando o museu. Pode-se ver que ela procura a porta de saída, mas há algo insinuado que nos diz que ela escolhe recuar. Poucos minutos antes, um guia falava aos visitantes de uma escultura (provavelmente Apolo e Dafne), a qual dizia algo do homem que perde o objeto do desejo...

Algo desta cena ressoa em mim, e imagino que tal intuito tenha ocorrido aos criadores: a fantasia de flanar por um museu, sozinho. Especialmente como alternativa à experiência por vezes perturbadora de entrar em contato com obras enquanto nos acotovelamos aos demais frequentadores. Se de dia temos que dividir a fruição das obras com centenas de anônimos, esta noite Claire procura garantir para si um contato mais puro, um acesso privilegiado a obras que falam de anseios, vitórias e derrotas humanas.

Esse contato com a arte visa remeter o espectador a uma experiência radicalmente íntima: um convite com vistas à produção de uma resposta inédita: a vertigem, a curiosidade, o espanto, a perplexidade. Soma-se a isso a experiência de sair de si, de descentramento. A mediação de tal experiência por câmeras, vozes, outros corpos, ruídos, em algum nível, faz oposição a este convite da obra. Para a contemplação, é preciso perder-se e descansar um pouco dos olhos do Outro.

Quando estou em um museu, este desafio está sempre posto: serei capaz de me ensurdecer ao meu entorno para deixar-me ser afetado pela obra? Nem sempre me é possível. A Monalisa, por exemplo, dentre muitas, é uma obra interditada para tal experiência há já últimas décadas. Assim, visitar um museu sozinho resgataria algo desta experiência privilegiada, talvez justamente o apelo de uma cena sexual, a proximidade com imagens que sobreviveram aos séculos, que se destacaram junto às demais, as escolhidas. Um acesso exclusivo a um ambiente requisitado, como encontrar-se com um corpo muito desejado.

A auto-observação que Freud compartilha em seu trabalho “O Moisés de Michelângelo” enriquece nossa construção: “as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos frequência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve o seu efeito. (...) Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber porque sou assim afetado e o que é que me afeta”(2). O leitor notará que este testemunho vale ser retido para este passeio.

Enquanto explora o museu à noite, Sandra descobre que há ali mais um visitante. Ambos se cruzam enquanto ela observa a Madona Litta, de da VInci, capturada. Logo descobrimos que o homem chama-se Lorenzo (Vittorio Mezzogiorno):

L: “Por que olha com tanto interesse?”

S: “O olhar do menino me impressiona: É como se ele tivesse medo que alguém possa impedi- lo de mamar”

L: “Não me parece amedrontado. É o olhar de Leonardo, o inventor, o gênio. Um seio é outra coisa para ele, não pode condicioná-lo. Esse olhar exprime uma intuição profunda do mundo, um nascimento que não corre mais perigo, no sentido de que o seio de nenhuma mãe jamais poderá afetar ou limitar sua criatividade”

De um lado, o medo de perder um objeto desejado... de outro, uma potência desejante que não se deixa obstruir por nada. Duas posições se delineiam.

Sandra diz de um desejo que teme pela perda de seu objeto: desejo tanto algo que temo perdê-lo. O brilho do objeto intimida o desejo. Lorenzo responde de outro lugar quando afirma a potência desejante como acima da primazia do objeto. É o desejo que se impõe, não o contrário. Sua fala aponta para o fato de que o desejo já não depende do objeto para se afirmar. Ele se afirma como potência indeterminada. Desejo de desejar.

O que responde nestas falas é a posição subjetiva possível a cada um diante disso que nos habita, força sem nome, que irrompe, faz furo e pede resposta, destino.

O desejo é sem objeto, diz-se em psicanálise. Articulo com a ideia de que o que separa o seio da mãe da boca do bebê é a linguagem, o sistema cultural que para sempre descola o desejo de seu objeto natural, para apresentá-lo ao universo de múltiplos e infindáveis objetos substitutos possíveis. A abertura para tal multiplicidade implica na queda do Éden infantil: o objeto que completaria o desejo perde-se de forma irremediável e a linguagem será ferramenta privilegiada (na melhor das hipóteses) para um reposicionamento em busca do objeto perdido.

Em outra passagem, Lorenzo procura explicar sua posição: “Busco sempre uma imagem: as curvas e a candura de uma mulher bonita. Busco a demissão de uma mulher que as obras de arte não me dão”

A demissão de uma mulher: que ela aceite se perder por desejo a ele. Que sacrifique seu Eu – aquilo que oferece a todos – por desejo a este homem. É parte de uma fantasia: causar tal perdição no outro. Viver esta demissão na matéria, emprestar o corpo a tal subversão: Que o outro faça isso por desejo de mim. Que eu seja tão especial que o outro se entregue: porque tenho/sou aquilo que lhe falta. Talvez corresponda ao anseio de receber do outro um olhar tão penetrante e arcaico quanto aquele que primeiro nos despertou para a vida: o olhar materno. Trata-se da busca por aquela sideração primeira, nossa primeira hipnotizadora.

Mas não só a demissão, Lorenzo diz mais de sua procura: busca uma imagem, de modo que podemos dialogar com a noção do objeto parcial que suporta o desejo masculino: o objeto fetichizado, que sustenta o corpo excitado do homem e apresenta à mulher uma situação de impasse: afinal, ele me ama pelo que sou ou ama a imagem que recorta de mim? Ama a mim ou deseja apenas o pedaço de carne que carrego em mim? Desejo e amor caminham juntos ou são reinos independentes?

O encontro sexual se sucede a partir daí, em um jogo de gato e rato. Entre os movimentos de avanços e recuos do casal, um parágrafo de Baudrillard me vem à mente:

“É o que transparece no jogo mais banal da sedução: eu me esquivo, tu não me farás gozar, sou eu quem te fará jogar e tem que roubará o gozo. Jogo móvel, do qual é falso supor que seja apenas estratégia sexual. Muito mais uma estratégia de deslocamento (se-ducere: afastar, desviar de seu caminho), de desvio da verdade do sexo; jogar não é gozar. Existe aí uma espécie de soberania da sedução que é uma paixão e um jogo da ordem do signo, sendo ela quem prevalece a longo prazo, pois é uma ordem reversível e indeterminada”(3)

Outro mistério se apresenta: que pensar do gozo de Lorenzo? Este gozo tão ordenado, tão bem dito. Não dá um pio. Uma ficção que, embora possa seduzir Sandra, não precisa passar despercebida a nós. Lorenzo não sai de si, não mostra sua dissolução, não se demite. Mal vemos seu corpo, é Sandra que se desnuda para a contemplação dos nossos olhares.

Indago Bellochio e Fagioli: supuseram o gozo masculino por demais óbvio para ser mostrado e inquirido? Que homem imaginado é este? Que quer dizer que Lorenzo seja tomado por um homem sem angústia, tão tranquilo com seu desejo? Um projeto ideal de masculino? Não acredito.

Chego a uma leitura mais plausível. Lorenzo cumpre uma função incorpórea, me ocorre dizer. Não interpreta um homem na relação sexual(4): ele desempenha uma voz. Uma voz que abre portas, que desobstrui. Uma voz que habita o clandestino. Não tem corpo que goza e, veremos, não tem corpo que sofre. É o próprio desejo que nenhuma mãe pode ameaçar com a privação do seio. Um desejo que “dá vida”, nas palavras do próprio Lorenzo.

SEGUNDO ATO

Ao amanhecer, Lorenzo convida Sandra a irem embora do museu. “Como?”, ela pergunta. “Para fora, eu tenho as chaves”. Novamente, ele tem as chaves: pode abrir passagens, entrar e sair quando quiser.

A cena seguinte já nos conduz ao tribunal, onde Lorenzo é julgado por estuprador. Sandra o acusa de tê-la violentado com sua sedução. Ainda que não atribua o estupro a uma coação física, o que ela reivindica é que Lorenzo seja punido por ter gozado dela e por ter causado seu desejo à sua revelia.

Lorenzo apresenta-se de forma plácida e recita sua fala com serenidade. De seu discurso, uma questão é central: nada do que se passou entre ambos poderá ser deliberado diante de juízes, em um ambiente preocupado primordialmente com tradições e costumes. O desejo sexual está alhures. Traçar a fronteira de que direitos e controle temos sobre a sedução, pensar a violência (palavra degradada para o debate atualmente) que pertence ao domínio do contato corporal e do encontro entre duas intimidades insondáveis não poderia ficar reduzido a uma discussão objetiva sob a cuidado do Estado.

Sandra denuncia Lorenzo por lhe ter revelado sua alienação a um desejo que a evocava desde fora de sua consciência. Em outras palavras, insinua que ele a hipnotizou: “Sem discursos longos ou simplesmente falando de arte, ele remexe os sentimentos mais íntimos que temos direito de esconder”. Penso que o inconsciente quer irromper e Lorenzo derrubou as censuras defensivas de Sandra: deve ser punido!

O que faz desta questão uma reflexão social é uma fala de Lorenzo: “A beleza é aceita enquanto confinada nos museus, imóvel, contemplada. Mas dar-lhe vida, corpo, ação, movimento, é uma ideia intolerável para a sociedade normal”. A beleza aterroriza, aflige, borra limites, derruba fronteiras, nos torna vulneráveis e desamparados. É preciso mantê-la à distância, sob chapas de vidro, para os cliques dos visitantes. Leio: é preciso capturar a aura da obra (em seu clássico sentido benjaminiano) e ferir seu brilho insuportável. É preciso neutralizar a beleza, degradar sua transcendência, reproduzindo seu espectro à exaustão. Deixemo-la dentro de limites administráveis e ocupemo-nos da ordem e do trabalho. Seria uma tática: a outra seria encarar a beleza e suportar seus efeitos. Mas não foi o próprio Freud que há pouco dizia revoltar-se contra a beleza que não compreende?

E o que ofendeu Sandra? Ocupo-me da hipótese de que foi ter descoberto que Lorenzo tinha um outro desejo na cena. Supôs em Lorenzo um parceiro, ignorante das mesmas coisas, ambos sob um mesmo recalque, para depois descobri-lo não apenas diferente como possuidor de um interesse não declarado. Tinha consciência de seu poder (as chaves e as palavras) e não esclareceu Sandra como em uma relação contratual. Ao derrubar a ilusão de que se entendiam livremente, a única reação possível foi a perplexidade, queda narcísica: não gozamos juntos! Sandra esperou de Lorenzo uma complementaridade que este não apenas não ofereceu como não a lamentou: deve ser punido por ser perturbadora e irresistivelmente excitante.

O juiz chega a consultar Lorenzo. Pergunta se, na sua opinião, a ação de Sandra teria sido consenciente. Lorenzo refuta o termo: “Consenciente seria escolher livre e conscientemente uma determinada ação. Só que na relação sexual, liberdade e consciência, de certo momento em diante, perdem importância, são obstáculos. A beleza do ato sexual está no grau de inconsciência que o homem e a mulher, juntos, conseguem atingir”. Belíssima fala!

Lou-Andreas Salomé escreveu, há pouco mais de 100 anos, um belo ensaio sobre o tema. Recupero uma fala sua: “O erotismo – tal como a faculdade criadora do espírito – deve ser indubitavelmente, em sua essência, concebido como um ato intermitente, que surge e se interrompe, e nem a intensidade nem a felicidade de que nos inunda esclarecem, em cada caso particular, sua duração provável. Eles podem tanto lhe assegurar uma certa duração como, se for caso disso, se consumir como um fogacho, precisamente devido à sua maior violência”(5).

É o que Sandra declara no tribunal: “Como se ele movimentasse a angústia de uma violenta sensualidade”. Ela acusa Lorenzo por lhe ter mostrado sua sobredeterminação ao desejo: Não sou senhora de minha morada e quero que reconheçam de que fui despojada e de meu direito ao auto-controle! Quero ser dona das próprias chaves que abrem minha percepção.

O impasse reside no fato de que é precisamente desta estrutura que depende nossa natureza falante (portanto sexual). Se o erotismo (sexualidade mediada pela linguagem, dirão Octavio Paz e Charles Melman(6)) envolve deixar-se penetrar – não somente genitalmente, pois há aqui uma penetração mútua de outra ordem –, ele também implica em um convite à violência da dissolução identitária, como diz Bataille(7). A identidade tão bem ensaiada do Eu é esgarçada, rompida, furada, deslocando fronteiras e borrando limites. O homem-social tem pavor dessa dissolução.

Não existiria, assim, relação íntima que não envolva um deslocamento do centro do sujeito. Transar com um outro envolve debruçar-se sobre este abismo vertiginoso e invisível. Uma relação erótica, portanto, seria sempre heterocêntrica, arrancando. o sujeito de suas fronteiras habituais. O que causa o desejo e nos rouba de nosso domínio vem de outro lugar, algo nosso habita outra cena, a qual não temos acesso direto, mas somente por estes efeitos de captura e irrupção violenta. Não há o que reter da experiência erótica a não ser um vestígio marcado em nosso íntimo, como uma cifra que não se deixa esclarecer.

Sobre a alegação da posição de inferioridade em que Sandra se encontrou durante o ato, Lorenzo diz algo desde um lugar inspirador: “A inferioridade é ligada a não ter coragem de assumir o próprio desejo”. Quer dizer menos que todo desejo deva ser passado ao ato do que que o sujeito se responsabilize por dar figurabilidade a eles: que possa emprestar-lhe imagens e palavras justas em um movimento criativo. Que ouse querer saber algo daquilo que lhe vem sob a forma de enigmático desde o obscuro.

Ela lhe ofereceu uma máscara para seduzi-lo. Ele lhe revelou outra figura por detrás da máscara. Ela lhe ofertou seu desamparo e ele fez disso uma obra, como um pintor. Como a Tentative de L’impossible(8). Mas e Lorenzo, que fez? Ora, ele gozou! Desde então, o comércio se mostra controverso. Talvez Sandra tenha pensado que trocava sacrifícios com Lorenzo: ela mostrava o dela e ele mostraria o dele. Mas Lorenzo trabalhava com outra moeda, que não envolvia a vergonha e o pudor. A voz que é Lorenzo não tem nada a perder.

É uma forma possível de leitura: Sandra se ressente que o desejo que se fez nela não pode ser retido nem controlado: faz experimentar a violenta passagem da descontinuidade a um estado de continuidade que nos transcende. Acusa Lorenzo por ter descoberto que seu desejo não lhe pertence como um brinco ou uma blusa. Se for este o caso, ela estaria coberta de razão. O desejo pulsa, passa, voa, nossas portas se abrem e se fecham, em um ritmo singular... Lorenzo revelou que, à Sandra, falta-lhe algo, que não se reduz a nenhum corpo, nenhuma palavra, mas que vibra a cada atravessamento enigmático.

Que estas breves reflexões não tirem de ninguém as próprias questões que o filme possa suscitar. Bellochio e Fagioli abrem um campo reflexivo que merece ressoar.

[1] Juntos, Bellocchio e Fagioli produziram três filmes: La condanna (1991), Il sogno della farfalla (1994) e Diavolo in corpo (1996), este último baseado no livro de Raymond Radiguet.
[2] Freud, S. (2006). O Moisés de Michelângelo, In Edição Standard Brasileira das obras psicológicas
completas (Vol. XIII). Rio de Janeiro: Imago. p. 217. (Trabalho original publicado em 1914)
[3] Baudrillard, J. (1991). Da Sedução. Campinas, São Paulo: Papirus Editora. p. 28
[4] Este modelo fica muito mais a cargo de Giovanni (Andrzej Seweryn), personagem de outra parte da trama
[5] Andreas-Salomé, L. (1991). O erotismo seguido de reflexões sobre o problema do amor.
São Paulo: Princípio. (Trabalho original publicado em 1910)
[6] Paz. O. (1999). Um mais além erótico: Sade. São Paulo: Mandarim e Melman, C. (2003). A condição subjetiva moderna. In Novas formas clínicas no início do
terceiro milênio (pp. 147-157). Porto Alegre: CMC Editora.
[7] Bataille, G. (2013). O Erotismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora. (Trabalho original
publicado em 1957).
[8] René Magritte (1928)

Cena do filme

LAERTE DE PAULA é psicanalista, acompanhante terapêutico, mestre em Psicologia Clínica pelo Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP, docente do curso de formação do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP), coordenador-assistente da Rede de Atendimento do CEP e coordenador do Setor de Triagens da Rede de Atendimento do CEP.

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