de Christian Ingo Lenz Dunker
Em
seu texto sobre a Proposição de 9 de
Outubro de 1967 sobre o psicanalista de Escola[1],
Lacan aponta três temas fundamentais para pensar o lugar da psicanálise no
mundo: a identificação no Imaginário, o Complexo de Édipo no Simbólico e a segregação no Real. Apesar da
grande dedicação que os lacanianos tem prestado ao conceito real muito pouco se
obteve até aqui sobre uma concepção psicanalítica da segregação[2].
Segregar não é apenas excluir ou negar, nem repudiar ou isolar. Segregar deve
ser deduzido da operação de retorno no real, segundo a tese: o que não é
inscrito no simbólico retorna no real. Há várias maneiras de não se inscrever
no simbólico. A segregação é uma delas. Sua imagem topológica mais simples é a
de um grupo psíquico separado, um círculo dentro de outro, um condomínio com
muros que o separam do mundo do qual ele, contudo, faz parte. Essa é também a visão intuitiva e ideológica
do mundo como um conjunto de esferas, círculos, territórios, áreas ou
disciplinas entre os quais nós podemos trafegar e aos quais nos pertencemos por
origem ou direito.
Segundo Lacan a Garrafa de Klein é um modelo muito melhor
para entender mundo moderno, no qual interior e exterior se comunicam, com
pontos de passagem indeterminados, com sua confusão estrutural entre público e
privado. Podemos pensar que a segregação tem a estrutura de uma falsa Garrafa
de Klein, na qual interno e externo são determinados e concêntricos, reproduzindo
a lógica do mundo a-cósmico, com suas
esferas e pontos de passagem, mas sem pontos de saída.
“Alphaville:
uma estranha aventura de Lemmy Caution” dirigido por Jean Luc-Godard, em
1965, é um filme sobre a segregação que descreve em detalhes a formação desta
falsa Garrafa de Klein, formada por um universo fechado no qual sabendo-se tudo
que importa sobre o passado, e onde todos são “escravos das probabilidades” neste presente que é a “única forma de vida”.
Godard começa a desequilibrar a redoma de Alphaville
formalmente. Ele perturba a divisão habitual de gêneros, ao qual o público
estava acostumado: policial noir,
drama e ficção científica. Ou seja,
não é apenas no conteúdo da narrativa que vamos encontrar uma solução para a
segregação representada em Alphaville,
mas também, e sobretudo, na forma da linguagem fílmica. Seu protagonista, Eddie
Constantine, cujo nome se escreve Ivan Johnson, mas se pronuncia Lemmy Caution,
o sucessor de Dick Tracy e Flash Gordon, é um espião que vem do mundo exterior disfarçado de jornalista
do Pravda-Figaro, para investigar os planos de destruição feitos pelo professor
Von Braun, arquiteto do programa de computador Alpha 60, que comanda e organiza
Alphaville. Sua filha, Natasha Von Braun (Ana Karina), acompanha e vigia Lemmy
até o ponto de se apaixonar por ele. Mas a paixão, assim como outras emoções, e
tudo o que é ilógico, são atividades proibidas, puníveis com a morte. Há uma
preocupação extrema com o uso da linguagem, pois “tudo está escrito, a não ser que as palavras mudem de sentido”.
Para que tudo funcione é preciso dizer sempre “porque” e nunca “por quê?”.
Lemmy Caution atira contra perseguidores, com rosto
impassível e sem deixar cair o cigarro da boca, como se estivesse espantando
moscas. Eles aparecem no banheiro, atrás da porta, de carro no pátio,
disfarçados de Sedutrizes, mas assim
como os policiais de A Carta Roubada,
de E.A. Poe, nada enxergam. O verdadeiro confronto entre Lemmy e Alpha 60 é um
confronto de palavras e de discursos, que se concentra na cena do
interrogatório. A máquina pergunta “o que
você sentiu ao passar da Galáxia Exterior para Alphaville?” ao que ele
responde, com Pascal “o silêncio eterno
destes espaços infinitos me apavora”. “O
que transforma a luz em escuridão?” pergunta a máquina. Lemmy responde: a poesia.
A trama termina com a fuga do casal Lemmy e Natasha, rumo ao
exterior, enquanto Alphaville se asfixia envenenada pelo raio da morte. Final
que parece ter inspirado Ridley Scott, em Blade
Runner e também, antes dele, Fritz Lang em Metropolis[3].
Final que nomeia esta nossa grande utopia e forma maior da demanda, no mundo a-cósmico, que é a demanda de “sair”.
Godard insistia que seu interesse
não era tanto na ilusão de realidade,
mas na realidade da ilusão. O real
que se esconde ou se mostra na imagem do mundo, como uma realidade unificada e
coerente, diante e nossos olhos, criando assim a perspectiva simbólica onde nos
localizamos. Foi também este o ponto de partida de Lacan em seu texto sobre o Estádio do Espelho como formador da função
do eu [Je] em psicanálise, de 1936 e 1949. A segregação acontece quando
esquecemos o hiato entre a realidade e o Real, quando identificamos ambos ao
custo de uma particularização simbólica. Logo no começo do filme somos
apresentados à voz gutural de Alpha 60 que diz: “a realidade é complexa demais para sua transmissão oral”. É
exatamente esta particularização simbólica que está em jogo na formação destes
universos fechados, que podem ir do sistema de castas e acessos, como em Admirável Mundo Novo, publicado em 1932
por Aldous Huxley, até o próprio
conjunto da terra e do espaço como em 2001,
uma Odisséia nos Espaço, dirigido por Stanley Kubrick em 1968. Ou seja, não estamos falando do espaço
geométrico apenas, mas do espaço como linguagem.
Diz-se que o cinema começou com os
irmãos Lumière (1895), filmando, como um documentário, a realidade dos
operários saindo de uma fábrica e com Georges Méliès (1902) usando truques de
montagem, para criar a ficção científica de “Viagem à Lua”. Ou seja, ambos filmes sobre “saídas”. Saída do mundo
do trabalho e saída do planeta terra. Contra esta repartição simples, Godard
usa a ficção científica (no roteiro) de modo documental (sem efeitos
especiais). Este processo se observará no uso da trilha musical, de Paul
Miraki, que alterna o uso de artifícios tensionais, típico do suspense, usado
em cenas de deslocamentos rodoviários banais, ao passo que as cenas de tiros e
ação são pontuadas por uma paisagem sonora naturalista. Esta habilidade de “reunir arranjos cômicos com sonetos de amor
em uma única sensibilidade singular”[4]
é própria do método de Godard para extrair a verdade do real.
Temos aqui as duas faces do Real, melhor dizendo, duas verdades
das quais podemos extraí-lo, enquanto estrutura de ficção. Com isso argumento
que o conceito lacaniano de ficção compreende tanto o que entendemos como
ficção (romance, ficção-científica, drama) quanto o plano da história (documentário,
descrição, fotografia). Aqui me refiro ao trabalho de Hal Foster que, usando a
teoria freudiana do trauma em dois tempos e a concepção lacaniana do temo
lógico, mostrou a íntima conexão entre as vanguardas dos anos 1930 e a sua
retomada nos anos 1960 como uma espécie de “retorno do real”. As neovanguardas pop, retomam a temática da
ilusão de realidade, enquanto os formalismos retomam o problema da realidade da
ilusão. Lacan atravessou estes dois momentos, 1932 e 1966, das vanguardas e das
neovanguardas, sem deixar que uma problemática do Real fosse substituída pela
outra. Nosso atual estado de desgarramento entre a crítica baseada na autonomia
da obra, de arte de um lado, e o sociologismo da autoria, por outro, é um
efeito da incompreensão histórica da relação entre linguagem e lógica da
segregação. “Lemmy ... consciência ... consciência .... destruir ... faça Alpha 60
destruir a si mesmo ... delicadeza ... salve aqueles que choram”. Esta é a
mensagem cifrada que nosso herói usa para lembrar de sua missão, uma vez que
outros espiões que o antecederam, esqueceram disso e ficaram perdidos em
Alphaville. Esta mensagem, no fundo lembra que a arma fundamental de Lemmy
contra Alphaville é a poesia. E se esta é também o antídoto contra a segregação
precisaríamos saber algo mais sobre que tipo de poesia é esta.
Alphaville é organizada por uma lei, contida na
bíblia das palavras que são permitidas. Um homem que chora pela morte da esposa
é executado em um ritual “estético”. Há uma sala de recepção, garçons e
recepcionistas, depois um camarote envidraçado de onde se vê uma piscina. O
condenado faz sua declaração final, caminha na prancha e é abatido por tiros.
Lindas mulheres de bikini, com facas
na boca, pulam na água e estraçalham o que pode ter restado da vítima. O
público bate palma. Para além da perturbação de gêneros, dos debates dos anos
1960 em meio à guerra fria e o papel do cinema no pós-guerra, Alphaville é um filme que recupera o
surrealismo, não apenas como plataforma estética de investigação do Real, mas
como antídoto político contra a segregação. Para isso teríamos que atentar para
o volume que ele indica para Natasha, para “inocular” nela a cura. “Capitale
de la Doulor” é um dos livros principais de Paul Éluard [5],
surrealista próximo do grupo de Breton, e amigo de Jacques Lacan[6].
É por meio de outro verso de Éluard que Lemmy seduz Natasha: “Por causa do amor tudo se move. Todos
precisamos apenas avançar para viver, ir em frente para tudo o que você ama. Eu
estava indo em sua direção. Eu estava indo perpetuamente em direção da luz”.
O problema em Alphaville é que, com a exceção dos tipos
poéticos que vivem nos “setores condenados”, o que todos estão fazendo é
simplesmente viver como ocupação de espaço e não “morrer” e principalmente
“morrer de amor”[7].
Quando Alpha 60 pergunta: “qual é o
privilégio de morrer?” Lemmy responde: “não
continuar morrendo”. Para os surrealistas morrer de amor é a condição para
continuar a viver, como tematizou Éluard em “Morrer de não mais Morrer” (1924). Daí que o condenado declame o
seguinte trecho de Paul Éluard, antes de ser executado: “Escutem-me seus normais! Nós vemos a verdade que vocês não enxergamos
mais. Esta verdade é que não há nada verdadeiro no home exceto amor, fé,
coragem e ternura.” Daí também que o primeiro mandamento seja: “Alphaville: silêncio, lógica, segurança e
prudência”, mandamento cuja prática é acompanhada pela ingestão contínua de
pílulas pacificadoras.
Caution, torna-se assim o significante
mestre para esta operação de confronto com a morte, sem medo e insegurança. Ele
é o perfeito personagem surrealista. Não é o intelectual literário de gabinete
enfurnado em sua erudição, mas um detetive prático de olhos atentos na
transformação da realidade por meio de atos. Essa é a primeira dimensão
esquecida do poema em Lacan, que aparece na década de 1930[8]
e ressurge em seus últimos seminários da década de 1970: o poema é um ato de
anti-crença contra o silêncio conformista. Por isso o que nele conta não é sua
estrutura de ficção, mas a verdade em seu ato de produção. Se no caso da ficção
extraímos a verdade do real, aqui é a verdade que cria um efeito de Real. São
os dois pontos de torção invertido, das Bandas de Moebius que constituem uma
garrafa de Klein.
Alhaville é a primeira reflexão sistemática
sobre a vindoura vida em forma de condomínio. Uma forma de vida que antes de
tudo expulsa a poesia, e recusa toda ternura, como dizia Éluard. O surrealismo
em geral e Lacan em particular percebem que a segregação começa no discurso,
nas estereotipias que impõe o ritmo á frase, “nas palavras, sílabas,
sonoridades obsedantes e assonâncias”[9],
como um automatismo no qual a linguagem não pode mais questionar o pensamento.
A segregação termina nos muros, não é lá que ela começa, mesmo que seja dali
que ela se reproduza. A segregação começa pelos maus tratos dedicados ao que
não faz sentido, pela expulsão do não sentido para fora dos muros. E desde lá
ele retornará como Real. Por isso precisamos urgentemente de menos lemas de
condomínio e de mais heróis como Lemmy Caution e Lemmy Kilmister[10].
[1]
Lacan, J. (1967) Proposição de 9 de Outubro
de 1967 sobre o psicanalista de Escola. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
[2]
Tentei contribuir para tratar desta questão em meu livro: “Mal-Estr, Sofrimento
e Sintoma” (São Paulo:Boitempo, 2015)
[3]
Particularmente os trabalhadores que escapam da cidade inundada.
[4] Andrew
Sarris “You Ain’t Heard Nothin’ Yet”: The
American Talking Film: History and Memory, 1927-1949”.
[5] Benedick,
M. (2004) Jean-Luc Godard: uma antologia crítica. Dutton, et. Ali, San
Francisco: Toby Mussman.
[6]
“O Sr. A (filósofo) apareceu neste sábado, não sei de onde, para me apertar a
mão e fez ressurgir o título de Tzara, da época Dada, ou seja, nada da
futilidade que começou com Littérature.
De boa vontade é imputado a mim um surrealismo, o que está longe de seu de meu
agrado. Certo, provei disso, mas apenas contribuindo de forma lateral e tardia
(o que zangou Breton), no entanto devo dizer que Édouard me enternecia.” Lacan,
J. (1980) Nota A. Ornicar 20-21. Paris:
Seuil.
[7] “Nós vivemos no limbo da metamorfose. Mas
este eco que corre por todo dia, este eco além d tempo, do desejo e do cuidado
continua a pedir. Estamos longe ou perto, de nossa consciência.” Paul Elouard,
tradução do autor.
[8]
Tlatli, S. (2000) Le Psychiatre et ses
Poétes – le jeune Lacan. Paris: Tchou.
[9]
Lacan, J. (1932) Esquizografia: escritos inspirados. In Da Psicose Paranóica em suas Relações com a Personalidade. Rio de
Janeiro: Forense, 1988.
[10]
Ian Fraiser Willis (1945-2015)
ou Lemmy the Lurch, foi
um baixista e cantor inglês, conhecido por ser o fundador da banda de rock inglesa Motörhead. Era adorado pelos seus fãs por sua postura roqueira,
estilo de tocar e timbre de voz marcante.
Trailer do filme
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de vários livros, entre eles Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012. Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015)
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