de Luiz Fellipe de Almeida Santos
Jeanne
Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) é considerado a obra-prima de Chantal Akerman
(1950-2015), que, embora menos conhecida que outros grandes diretores
experimentalistas, deve ser lembrada por sua originalidade na retratação do
feminino. Jeanne Dielman, solitária viúva há seis anos, mora com o filho adolescente
Sylvain. Seus dias são ritualmente iguais. A beleza de Delphine Seyrig, conhecida
pelo incomparável cinepoema L’année
dernière à Marienbad (1961, Alain Resnais), esteve na mente de Akerman
desde a concepção do filme. Em entrevista, a cineasta comenta que esse detalhe
contrasta com nossa ideia comum de dona de casa, muitas vezes invisível.
O filme de três horas e meia – para
além de conjecturas feministas – é claro: a vida cotidiana é.
Intransitivamente, somos convidados a penetrar na rotina de Jeanne sem receber
mais que a repetição. Ela acorda, faz o café, engraxa os sapatos do filho,
pergunta se ele lavou as mãos, dá-lhe dinheiro para a escola ajeitando suas
roupas, arruma as camas, lava a louça, seca-a, resolve coisas no centro
comercial, limpa a casa, cuida de um bebê, sai novamente ao centro da cidade,
toma café num mesmo café todos os dias, volta para começar a preparar o jantar,
prostitui-se em casa às 17h, toma banho, lava a banheira, seu filho chega, o
jantar é servido, eles comem, ele lê, ela faz tricô ouvindo o rádio, eles saem
para algum lugar (o filme não revela, apenas mostra a rua escura), ela coloca
Sylvain para dormir com beijos (“O que eu faria sem ele?”, conversa Jeanne com
o sapateiro), e vão dormir: fim do dia X.
Por
mais elementos curiosos que possamos encontrar na rotina de Jeanne e Sylvain (a
prostituição, metafórica, por exemplo), Chatal Akerman conseguiu magistralmente
fazer dessa rotina um instrumento projetivo precioso para o espectador. Coisa
dificílima de se fazer; noutras mãos, o filme cairia numa espécie de BBB dos
anos 70. Em sua exibição em Cannes, Akerman conta, em entrevista, sobre a
desistência de grande parte do público em acompanhar a dona de casa nessas três
horas e meia.
Este não é um filme confortável de se
ver; seu minimalismo hipnotiza. A experiência, para mim, foi justamente uma
meditação sobre essa monotonia basal inevitável que estrutura nossas vidas.
Viver, verbo intransitivo. Jeanne vive. Não se pode julgar sua rotina. O que
importa não é o que ela faz, sua meticulosidade, sua higiene rigorosa, seu
comércio insólito. Akerman mostra, para além da questão da mulher e os destinos
de seu corpo, que o cotidiano é essencialmente... o que é. Nem bom, nem ruim;
continuação que é fim em si mesma. Não se pode fugir de seu tédio ocasional, de
sua repetição, de suas alegrias naturais. Mesmo os mais criativos sustentam um
circuito subjetivo diário, que não é necessariamente o que todo o mundo faz
(tem que fazer) todo dia, mas é, antes, nossa rota significante
idiossincrática, inconsciente. E é
justamente na banalidade e na lentidão do secar a louça, pentear os cabelos ou
meramente sentar e pensar que deduzimos Jeanne entrando em contato com o que há
de mais heroico, singular, íntimo, efervescente, miserável. Afinal, como Andrei
Tarkovsky, mestre do silêncio falante, pensava, e executou isso como ninguém, é
na quietude que o movimento é mais significativo. Os três dias da rotina de Jeanne ilustram, muito
simplesmente, uma coisa tão clara e tão trivial, colocada por Lacan em termos
cotidianos: “O gozo é aquilo que não serve para nada”. É ver o final para crer.
trailer do filme
Luiz Fellipe de Almeida Santos é psicanalista, formado em Psicologia pela USP. Participa das Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo.
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