de
Emeline Costa
Este
texto pretende fazer uma leitura Psicanalítica da “Ninf()mania”,
mais especificamente da personagem “Joe” do filme de Lars Von
Trier, e levantar algumas hipóteses acerca da mesma.
Para
além das cenas e conteúdos eróticos do filme, o que chama a
atenção desde o início é a ausência
de uma letra já
apontada no próprio nome da obra, a saber, “Ninf()maníaca”.
O
sentido da letra em Psicanálise foi apontado por Lacan em 1950 no
texto “A instância
da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”
(1957/1998, Escritos). Lacan deixa claro que “é toda a estrutura
de linguagem que a experiência psicanalítica descobre no
inconsciente” (p 498)
É
neste sentido que não podemos falar de estrutura na psicanálise sem
a referência de estrutura na linguística. O termo estrutura vem do
latim structure,
que significa construir e, no sentido figurado, “arranjo das
palavras (na frase para produzir um ritmo)”. Segundo o Dicionário
de Filosofia, o termo estrutura pode ser tomado em dois sentidos. O
primeiro seria o sentido lógico, equivalente à construção,
constituição. Ou seja, é sinônimo de sistema. Saussure emprega a
palavra sistema para se referir ao sistema da linguagem. O outro
sentido da palavra estrutura diz respeito ao fato de que não se
trata de qualquer sistema de relações, essas relações têm que
ser hierarquicamente ordenadas. Isto quer dizer que estrutura é um
sistema constituído por determinados elementos articulados dentro de
certo limite, sendo possível encontrar variações mais ou menos
autônomas.
A
aplicação do termo estrutura à linguística foi de
responsabilidade de Ferdinand de Saussure. Isso porque ele propõe
estudar a língua falada em um determinado espaço. Cada elemento da
língua constitui um signo linguístico, que é a relação entre um
significado e um significante. Saussure (1916/1998) chega a esse
signo linguístico porque critica o vínculo simplista que une um
nome a uma coisa (nome/coisa). Entendemos significado como conceito,
e significante como imagem acústica – que é a impressão psíquica
de um som, independente da materialidade do som e da imagem. É
precisamente a articulação entre esses dois termos – s e S –
que produz a significação.
É
essa articulação de Saussure entre significado/significante que
chamará a atenção de Lacan (1956/1998), pois ele está interessado
em aplicá-la em sua teoria da letra. Ou seja, estabelecer uma
relação entre linguagem, inconsciente e pulsão.
Mas
ele retoma as elaborações
de Saussure mudando o tipo de relação entre significado e
significante. No que diz respeito à barra, que, para a linguística
tem a função de unir as duas faces (s/S), para Lacan ela cumpre a
função de separar esses dois elementos. Ele também opera uma
inversão no signo linguístico, colocando na parte superior da barra
o significante: S/s.
No
exemplo que traz em seu texto “A
instância da letra e a razão desde Freud” (1957/1998),
Lacan localiza de modo ímpar o que quer dizer com essa inversão.
Propõe representar essa relação do seguinte modo:
Homens Mulheres
█ █
Lacan
(1957/1998), desse modo, chama a atenção para o fato de que, no
lugar do significado, aparecem dois elementos iguais, ou seja, duas
portas, mas cada uma delas correspondendo a um significante
diferente. Notamos que, no lugar do significado, introduz-se outra
função – a função de simbolização de uma lei, que, nesse
exemplo, constitui a de segregação sexual. Lacan extrai mais
consequências dessa inversão. Ele demonstra de que modo o
significante se insere no significado, ou seja, é o significante que
vai marcar, por meio da diferença, a possibilidade de cada um se
localizar: como homem ou como mulher. Mais ainda, o significante é
um elemento cuja função é representativa.
Então,
a significação não surge por uma relação que pode ser
estabelecida entre o conceito (s) e a imagem acústica (S), mas pela
articulação entre dois significantes:
S – S. É a partir desse encadeamento de significantes, enquanto
elementos diferenciais, que um efeito de sentido pode ser produzido.
Vejamos
isso sob outro ângulo. Antes de uma criança vir ao mundo, ela já
existe no discurso dos pais, ou seja, a linguagem a antecede e a
inscreve nesse campo através de seu nome próprio
Entretanto podem
ocorrer casos de crianças que não estão inscritas no desejo dos
pais e não serão incluídas nestes discursos, como nos casos de
psicose. Ele percebe as palavras, inicialmente, como um enxame de
sons, sem nenhuma significação. É esse campo da linguagem, lugar
em que a criança é sempre interpretada, que Lacan designa como
Outro. Quando a criança articula esses sons entre si e, com isso,
produz um efeito de sentido, passando a organizar seu pensamento em
cadeia, sob a forma de discurso, podemos afirmar que é possível
localizar nessa cadeia associativa o efeito sujeito. Sob essa
perspectiva, é perfeitamente pertinente dizer que o sujeito advém
do campo do Outro.
Lacan,
portanto, formaliza que esse sujeito inventado por Freud está sempre
se fazendo representar numa cadeia – cadeia de pensamentos, cadeia
de palavras – por um significante para outro significante. E isso
só é possível porque o inconsciente é estruturado como uma
linguagem. E, sendo estruturado como uma linguagem, as formações do
inconsciente obedecem às suas leis:
a metáfora e a metonímia. A frase “o inconsciente é estruturado
como uma linguagem” quer dizer que as formações do inconsciente
sempre têm uma mensagem veiculada. Em outras palavras, podem ser
tomadas como um texto para ser lido.
A metáfora funciona por uma
substituição, ela aparece nas formações do inconsciente como o
sintoma, o esquecimento, os chistes e os atos falhos. Podemos usar o
exemplo de Freud, no capítulo III, O mecanismo psíquico do
esquecimento, sobre um fato ocorrido, com ele mesmo, quando
conversava com um amigo e tentava lembrar o nome do pintor de uma
obra que queria indicar para que o amigo que visse. O nome do pintor
era Signorelli, porém Freud não conseguia se lembrar dele; em sua
lembrança, vinham os nomes Boticelli e Boltrafio. Podemos perceber
que há nos significantes Signorelli e Boticelli uma semelhança. Na
metáfora, dizemos que a troca foi feita por similaridade. Não
entraremos nos pormenores do caso. Mas o usamos apenas para mostrar
como isso funciona nas formações do inconsciente. No caso dessa
substituição, o significante Signorelli remetia Freud a outros
conteúdos que só puderam se apresentar na consciência por uma
substituição. É
através desta estrutura metafórica que se produz os efeitos de
significação. E, segundo Lacan (1957/1998), “a condição de
passagem do significante para o significado, essa transposição da
barra S/s, exprime provisoriamente o lugar de sujeito... mesmo não
havendo encontro ou centralização entre essas partes” (p519).
Acompanhando a metáfora,
temos a metonímia, que também podemos perceber nesse exemplo. A
metonímia é o deslizamento de significante a significante, e se dá
em uma relação de deslocamento. De um significante se passa ao
outro, como vimos com o Signorelli, Boticelli e Boltrafio, que surgem
a partir de um deslizamento da cadeia significante.
Para
Lacan:
A
metonímia é a conexão de significante a significante, e se dá em
uma relação de deslocamento “indicando que essa conexão do
significante com o significante permite a elisão mediante a qual o
significante instala a falta-a-ser na relação de objeto,
servindo-se do valor de envio da significação para investi-la com o
desejo visando essa falta que ele sustenta... Pela metonímia e pelo
seu valor negativo no que diz respeito à significação vemos o
valor da manutenção da barra no S/s Lacaniano.” (LACAN,
1957, p 519).
Outro
ponto importante na teoria de Lacan a respeito da metáfora e da
metonímia, é que o sujeito vai advir se uma operação metafórica
for bem-sucedida. É a metáfora paterna. É o que vai possibilitar
que o sujeito não deslize indefinidamente na cadeia significante,
funcionando como um ponto de amarração.
Lacan
vai dizer da metáfora paterna como uma substituição de
significantes que possibilitará o advento do sujeito: o significante
do Nome do pai, substituindo o significante do Desejo da mãe,
produzindo a significação fálica. A significação fálica é o
que permite ao sujeito significar seu ser sexual, responder acerca do
desejo do Outro e localizar seu gozo.
Não
havendo tal operação...
Pois
bem, falaremos então da personagem “Joe” do filme Ninf()maníaca
de Lars Von Tries. O filme nos revela através do próprio discurso
da personagem como ela localiza a ninfomania na sua história. Ela
vai falar desde a descoberta da sua vagina, em sua infância, à vida
adulta. “Joe” especialmente ela, nunca conseguiu nada que pudesse
dizer algo sobre si, sobre seu sexo, sobre o amor, sobre
relacionamentos, sobre falta. Desde sempre.
Em
suas relações sexuais pedia aos homens que lhe penetrassem a boca,
o ânus, à vagina. Seu pedido, na verdade, era que preenchessem seus
orifícios, pois como resposta ao Real do sexo ela só podia pedir
isso. Real enquanto uma categoria topológica estabelecida por Lacan.
Entretanto, ela nada sabia sobre o que pedia, pois não sabia o que
faltava a ela. O que seu discurso nos sugere é que faltava algo que
pudesse simbolizar aquela repetição infinita em
que se encontrava
por conta da Ninf()mania, dizer seu lugar acerca
do desejo do Outro, e localizar seu gozo.
Tentou
inscrever-se no mundo pela via da sua “Ninf()mania”,
que lhe lançava
numa repetição infinita sem possibilidade de um ponto de basta,
além de nunca ter possibilitado a ela participar ou fazer laço
social. A tão repetida frase de “Joe” ao longo do filme:
“preencha meus
buracos!” se mostra
comovente. Trata-se também de um pedido impossível.
O
pai de Joe um dia lhe falou da alma das árvores, mas será que ele
tinha uma? A alma a que me refiro aqui é a alma no sentido
Lacaniano. Alma enquanto um dom. O pai e a mãe de “Joe” não a
engajavam nas trocas simbólicas, não demonstravam um amor como um
dom capaz de tirar-lhe da condição de puro objeto e remeter-lhe a
algo da falta-a-ser. O amor e olhar de seus pais eram sempre
objetalizantes.
O
termo ninfa e a definição que “Seligman” – outro personagem
do filme - lhe dá nos interessa: “fase
inicial da vida de um inseto”.
É uma fase muito imatura do desenvolvimento de um inseto e de outros
bichos também. Mas ninfa é uma palavra que tem outros significados.
Vem do grego “Nimphe”,
que são espíritos, habitantes dos lagos
e riachos,
bosques,
florestas,
prados
e montanhas.
Como
ela diz
de maneira bem
clara no filme: “Não
sou viciada em sexo. Sou ninfomaníaca”.
Podemos pensar a “ninf()mania de Joe” como um problema mesmo com
a “fase inicial da sua vida”. Lá onde o sujeito se constitui,
com a entrada no universo da Linguagem.
Recorreremos
a Freud e nos basearemos no que ele conseguiu elucidar quanto à
constituição do sujeito. Freud em seu texto sobre “Pulsões de
Destino da Pulsão” (1915/2004) denomina essa fase inicial da vida
ou do desenvolvimento do Eu como Narcisismo. Fase durante a qual suas
pulsões sexuais se satisfazem de maneira auto-erótica. No mesmo
texto ele enumera os destinos possíveis da pulsão, a saber: “a
transformação em seu contrário, o redirecionamento contra a
própria pessoa, o recalque e a sublimação e condiciona tais
destinos à organização narcísica do Eu” e como este se
relaciona com o objeto. (p 152)
Nesse
caso não se pode tratar a ninf()mania como um sintoma que indicaria
a existência de uma operação metafórica,
permitindo ao
sujeito construir alguma significação para o seu sexo e um sentido
quanto ao enigma do gozo sexual do Outro. Entrar na partilha dos
sexos inclui um processo de simbolização, capaz de dar outro
estatuto à vagina enquanto órgão e engajar o sujeito no mundo
quanto ao seu ser sexuado, oferecendo-lhe um lugar no campo feminino
referenciado a um homem ou no masculino referenciado a uma mulher. Um
saber mínimo que permite ao sujeito posicionar-se minimamente na
partilha simbólica entre os sexos e no mundo, ou seja, no laço
social. Assim, o título deste texto – “a” ssexualidade se
justifica, pois nossa hipótese é que “Joe” não chega a
significar seu ser sexual.
Para
Lacan
“se
digo que o inconsciente é o discurso do Outro com maiúscula, foi
para apontar o para-além em que se ata o reconhecimento do desejo ao
desejo de reconhecimento. Em outras palavras, esse outro é o Outro
invocado até mesmo por minha mentira como garante da verdade em que
ela subsiste. Nisso se observa que é com o aparecimento da linguagem
que emerge a dimensão da verdade”. (LACAN, 1957, p 529).
Lacan
aqui se refere ao inconsciente enquanto um saber, à pulsão e ao
gozo, ou seja, como a articulação desses termos aparece na fala do
sujeito, indicando assim o lugar desse sujeito na busca de sua
verdade.
A
nossa hipótese é que a tal repetição infinita de “Joe”
apresentada por sua ninf()mania refere-se à inexistência de uma
letra que faça limite entre o saber inconsciente, a pulsão e o
gozo. Apontada no próprio nome do filme, podemos supor também a
falta de uma operação metafórica, fazendo com que o caminho pulsão
seja redirecionada contra seu próprio eu sempre, nos termos
Freudianos, por não haver separação entre ela e o outro ou o
objeto. Em termos da organização narcísica de “Joe”
consideramos a hipótese de Melancolia. Uma categoria que se enquadra
dentro da estrutura clínica da Psicose.
Freud
em seu texto “Luto e Melancolia” (1915/2006) se ocupa dessa
afecção para entender a “constituição do Eu humano” (p107).
Neste texto ele demonstra que no caso de um melancólico algum
estremecimento ocorreu na relação desse sujeito com a primeira
pessoa escolhida como objeto de amor. Como se trata de uma primeira
relação, Freud sugere uma forte fixação da libido nesse primeiro
objeto.
Podemos
pensar que esta primeira pessoa seria a mãe, geralmente, a primeira
pessoa com a qual a criança estabelece uma ligação. Esse
“estremecimento da relação” (p 108) entre a criança e a mãe
aconteceria em uma fase bem precoce da constituição do Eu. Fase em
que algo começaria a se dar em termos de separação entre a
criança, a mãe e o objeto que seria extraído dessa relação
primeira. No caso da melancolia, no momento em que cai um objeto do
Outro, segundo Freud (1915/2006), “o próprio Eu do sujeito é que
sofre uma perda” (p 105). Dito de outro modo, o Eu se identifica
com o objeto abandonado, como se fosse o próprio objeto.
Outro
aspecto dessa fase de constituição do Eu, segundo Freud
(1915/2006), é que já existe uma parte do Eu que se separou e se
contrapôs a outra. Essa parte que se contrapõe Freud a reconhece
como uma instância crítica que trata a outra como se fosse um
objeto (p 107). Mais tarde Freud a denominará de Supereu. Daí a
forte caraterística de autodepreciação que esses sujeitos
apresentam. No relato de “Joe” podemos reconhecer claramente essa
autodepreciação - “insensibilidade”,
“sou um ser humano
ruim”, “eu...
nada” dentre outros.
Diante
disso, pensamos a ninfomania de Joe como uma amarração em resposta
a sua estrutura melancólica. Apesar de ser uma amarração frágil
por lançar lhe sempre a um gozo mortífero - uma repetição
infinita de procura por sexo o que podemos inferir à mania,
tendência da melancolia de se transformar em seu oposto. Pois, o
contrário disso seria justamente o que aparece no início e fim do
filme “Ninf()maníaca”: A escuridão... O buraco... O vazio... O
nada à semelhança de uma experiência de “fim do mundo” como,
curiosamente, Lars Von Trier trabalhou em um filme anterior chamado
“Melancholia”.
Para
finalizar compartilhamos a opinião de Charlotte Gainbourg, atriz que
interpreta a personagem “Joe”, de uma entrevista sobre o filme:
"Joe
não tem uma visão muito otimista da humanidade. Sendo assim, sim.
Não concordo com ela, mas eu a amo muito. Acho que ela se torna
comovente. É estranho ver a si mesma em um filme, é estranho falar
dessa forma, mas é fácil defendê-la."
Trailer do filme
EMELINE
COSTA. Psicanalista. Membro dos Seminários Retorno a Lacan,
Seminários de Leitura e Café com Freud. Consultório em Macaé (RJ)
Nenhum comentário:
Postar um comentário