de Christian Dunker
O
cinema da Retomada (1992-2003) foi o primeiro movimento estético a captar a importância da vida em forma de condomínio como legado
histórico e pendência simbólica de uma época que não soube
reconhecer a diferença social como um problema de Estado.
O
que é isso companheiro? (1997) Bicho
de sete
cabeças (2001), Cidades
de Deus (2002)
e Carandiru (2003),
são reflexões sobre este polígono formado pelas favelas, prisões
e condomínios.
Característico
da Retomada é a tentativa de mostrar e de pensar o Brasil real,
entre a maquiagem desenvolvimentista e a cosmética da violência.
Por isso me parece que O invasor (2002) de Beto Brandt, é o filme que melhor capta esta contradição entre
ricos e pobres que termina em uma espécie de amizade paradoxal,
excessiva e obscena. Dois amigos, empresários, contratam um
pistoleiro de periferia para assassinar o terceiro sócio que estava
criando problemas no interior da dinâmica da corrupção. O pé de
pato faz o serviço, mas depois de receber o dinheiro, em vez de
voltar para casa e desaparecer, ele começa a frequentar a mansão e
a vida dos dois contratantes, envolvendo-se com a filha de um deles.
Nada
mais eficaz do que colocar no personagem paratópico do pistoleiro um
não-ator, Paulo Miklos, vocalista da banda de rock Titãs. Desta
forma seus gestos insólitos tornam-se obviamente exagerados. Um
exagero naturalista que funciona perfeitamente na lógica do filme
para mostrar como a insanidade da vingança praticada entre “amigos”
(empresários) se instrumentaliza pela aliança entre “inimigos”
(ricos e pobres). Nesta versão nacional de Macbeth, o crime não se
apaga. Os territórios da mansão no Morumbi e a favela de
Paraisópolis, uma vez fundidos, pingam sangue e culpa para sempre.
O segundo
momento fundamental da lógica do condomínio acontece,
naturalmente, com O
som ao Redor,
de Kleber Mendonça Filho (2013).
Agora, trata-se de entender a
gênese do condomínio como uma herança arcaica dos antigos
latifúndios. Francisco (W. S. Solha), literalmente senhor de
engenho, é também e simplesmente dono de uma rua inteira em Recife.
Nela, a vida apática e modorrenta, cheia de pequenas contravenções
e rebaixamento de sonhos começa a se movimentar quando uma equipe de
seguranças, liderada por Clodoaldo (Irandhir Santos) se estabelece
no local. Nela tudo funciona bem, a não ser o som que parece
denunciar o mal-estar e o esvaziamento das relações sociais, das
perspectivas de futuro e da densidade da vida amorosa. Novamente
temos uma trama de vingança inesperada, na qual um crime antigo
apagado agora retorna com cores vivas e surpreendentes no interior da
zona de segurança formada pelo condomínio. Novamente aqueles que
deveriam ser aliados “interclasses”, (os condôminos e os
seguranças) mostram que tal aliança erige-se em um pacto hamletiano
anterior, mal resolvido, e mal honrado.
O
ponto arqui-mediano da lógica do condomínio está sem
dúvida em Que
horas ela volta?
(2015), de Anna Muylaert. Aqui temos a mesma apatia e falta de
sentido que domina a representação da vida protegida e abrigada
entre muros, síndicos e regulamentos de ocasião. O conflito é
novamente caracterizado por uma espécie de dilatação da presença
do serviçal. Assim como Val deve aparecer para o que for necessário,
antecipando demandas e dificuldades de seus patrões, ela deve logo
em seguida tornar-se invisível quando se trata de existência não
funcional. Ela deve inexistir, sobretudo, quando o assunto é a
personalidade sensível de seus patrões: assuntos que envolvem
gosto, narrativas pessoais ou habitação de certos lugares da casa,
como a piscina. Era assim também a promessa dos primeiros
condomínios. Uma civilização artificial na qual os problemas
práticos com empregados domésticos estariam resolvidos: entradas
pelos fundos, uniformes, administração impessoal e mínimo de
convivência não controlada. Saneava-se assim a antiga e machadiana
figura do agregado, este misto de empregado e membro da família, que
perpassa a memória afetiva de todos nós, e que descende tanto do
aproveitamento sexual da senzala pela casa grande (Gilberto Freire)
quanto da mistura ibérica cordial entre o público e o privado
(Sérgio Buarque de Holanda).
Portanto,
a pergunta que não quer calar, não é por que Val (Regina Casé)
aparece como personagem caricata em seu exotismo linguístico
nordestino, que exagera no amor ao filho da patroa, na devoção
superlativa ao marido depressivo ou na tolerância para com a ignara
e displicente dondoca. Este
exagero não é um erro de casting ou
de construção de personagem, mas uma necessidade estrutural. Este
excesso representa o personagem ausente no filme, mas que é
facilmente dedutível da série na qual ele se inclui: a vingança e
a violência. A complacência e dedicação de Val tem por objetivo
induzir o mal-estar no espectador. Fazer com que ele se reconheça no
idiota apressado que não consegue escutar uma história de
sofrimento, de inverter uma perspectiva sequer sobre sua própria
vida, em relação a quem, por outro lado ama e experimenta gratidão,
ainda que narcísica.
Jéssica,
a filha abandonada, que reaparece “fora de lugar” faz a função
híbrida de Paulo Miklos e Irandhir Santos. Ela gruda, se insinua,
aceita ser tratada como hóspede, comporta-se como um objeto
intrusivo, age como se não soubesse que existe uma ordem e uma lei,
um semblante que mantém sob si a verdade de um discurso, que é o
discurso da segregação. Contudo, ela não volta para se vingar dos
patrões, mas da covardia moral da mãe.
Aqui tudo o que o personagem
de Val tem de determinação unidimensional Jéssica carrega de
indeterminação produtiva. Estaria Carlos, o herdeiro filho de
papai, reencarnando seu papel de senhor, assediando a senzala, ou
estaria ele tomado pelo redespertar verdadeiro do desejo, diante de
um ato real de reconhecimento, quando se encontra com alguém, como
Jéssica, dotada de um genuíno apreço pelas artes e pela
arquitetura modernista? Estaria Fabinho enciumando por ter que
dividir o afeto de sua ama de leite ou interessado em uma mulher real
que já não é mais virgem? Seria a alegoria do rato nadando na
piscina uma crítica invejosa da madame contra a irreverência da
jovem, um gesto para afastar o filho da intimidade demasiada com a
intrusa ou é apenas signo de sua derrota e impotência diante da
autenticidade da filha ou da intimidade da mãe.
Nada
mais distante desta lógica do que pensar que Regina Casé é uma
personagem-tipo do lulismo, uma batalhadora que deu certo, ostentando
seus signos de consumo, na parede de seu quarto dos fundos, para uma
casa que ela ainda não ousou sonhar. Casé vem da comédia nacional
semi-escrachada, do fulcro da indústria cultural, mas assim como
Paulo Miklos, ela é percebida como uma atriz diferente, uma espécie
de antropóloga interessada no Brasil. Aqueles que viram no filme
apenas uma reprise de uma comédia de ocasião, realista se não
governista, parecem aqueles antigos psicanalistas que só conseguem
olhar para um filme a partir de seu enredo. E com um martelo na mão,
tudo o que conseguem enxergar são… pregos.
O
trabalho de câmera é decisivo para entender como o problema central
do filme não é a conflitiva doméstica e seus sonhos de ascensão,
mas são os muros que atravessam as relações, induzindo um
ressentimento expresso pela perda de intimidade, pela solidão
compartilhada, pela inexplicável distância que faz Val, deixar de
visitar sua filha por 10 anos. É o abrir e fechar das portas da
cozinha, das portas do atelier de Carlos, das janelas do Copan, este
sonho contra-condominial de Niemeyer de criar um complexo urbanístico
onde ricos e pobres poderiam viver juntos entre apartamentos gigantes
e pequenas quitinetes.
São os takes de Campo Limpo, de onde se pode ver a cidade, ao contrário do
intra-muros residencial da casa no Morumbi e sua retórica da
asfixia.
Nos
acostumamos a ver no cinema brasileiro contemporâneo o excesso de
emprego da câmera subjetiva. Postada rente ao rosto do personagem
ela produz interioridade psicológica e densidade moral apropriada
para a tematização do herói dividido (como o Capitão Nascimento,
apesar de tudo). Mas não é neste plano subjetivo que Jéssica nos é
apresentada, mas numa espécie de plano subjetivo com uma
semi-torção, no qual a câmera está perto do rosto da personagem,
mas seu rosto vira-se para o lado, como que a recusar a sua
psicologização, sem por outro lado, recorrer ao distanciamento. Daí
que sejamos surpresos pela complexidade de motivos que trouxeram-na
para São Paulo. Daí também que sejamos surpreendidos pela
reconciliação diante de um dos sintomas mais temido pelos clínicos,
graças a sua força de repetição transgeracional: a gravidez
precoce.
O
último exagero imputado ao filme, procurando corroer sua
verossimilhança e com isso sua potência crítica, trata de insistir
que seria pouco plausível que uma moça vinda do nordeste, sem
cursinho, entrasse na USP. A objeção não procede, pois mostra,
antes de tudo, soberba ignorância quanto ao fato de que há muitos
alunos que não são ricos e indolentes como Fabinho, nas
universidades públicas. E é aqui que o filme vai melhor ao nos
apontar nosso próximo muro condominial a ser derrubado: a inequidade
na distribuição de bens simbólicos de qualidade, como educação,
cultura, justiça e saúde. É o ponto de inversão real no qual os
jovens protegidos e indolentes das classes altas estão sendo
sobrepujados nas universidades e nos empregos por jovens inquietos
atrás de uma única oportunidade. Mais do que atrás de um prato de
comida, atrás de um prato de saber. É a ridícula miséria cultural
daqueles que deveriam zelar pela sua distribuição que é posta em
questão de ponta a ponta no filme: as telas desperdiçadas de
Carlos, as declarações vazias de sua
esposa (“o estilo é a pessoa, sabe?”), a inconsequência de Fabinho.
esposa (“o estilo é a pessoa, sabe?”), a inconsequência de Fabinho.
A
síntese desta questão está na cena na qual guiado pelo pai,
Fabinho confessa sua ignorância de jamais ter entrado e sequer saber
como é a universidade onde queria estudar, ali tão próxima de sua
casa no Morumbi. Em contraste com Jéssica que sem jamais ter pisado
em São Paulo, pressentia o encontro indelével com o horizonte
futuro de seu desejo, e a hora da verdade quando ela e sua turma
poderão dar a volta por cima.
*Fonte: Blog Da Boitempo - http://blogdaboitempo.com.br/category/colunas/christian-dunker-colunas/
Trailer do Filme
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de vários livros, entre eles Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012. Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015).
Um comentário:
Por Christian Ingo Lenz Dunker
"Nada mais distante desta lógica do que pensar que Regina Casé é uma personagem-tipo do lulismo, uma batalhadora que deu certo, ostentando seus signos de consumo, na parede de seu quarto dos fundos, para uma casa que ela ainda não ousou sonhar. Casé vem da comédia nacional semi-escrachada, do fulcro da indústria cultural"
E eu, Osvaldo, acredito que realmente a atriz Regina Casé é de fato uma personagem-tipo do lulismo.
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