domingo, 2 de agosto de 2015

What Happened, Miss Simone?

de Lia Silveira


O aguardado documentário sobre a vida de Nina Simone, uma das maiores vozes do século XX, não desapontou. A diretora Liz Garbus soube compor um mosaico sobre a vida e obra da cantora que passa longe de uma simples exaltação. A pergunta título já deixa entrever o que vamos encontrar ali: uma história demasiado humana e que, por isso mesmo, nos cativa.

What happened, miss Simone? Poderia ser respondia de diversas maneiras: pelo viés político, artístico, histórico. Mas, sem deixar de lado a importância de nenhuma dessas facetas, foi a mulher que encontrei ali que me tomou. Logo nas primeiras cenas, temos uma Nina que sobre ao palco em Montreux com um olhar ausente, perdida em meio aos aplausos que chovem. Talvez ela mesmo se pergunte neste momento: what happened?

Nascida Eunice Waymon, em meio a segregação racial da Carolina do Norte, se encantou por
 Bach na década de 40 e traçou uma carreira de sucesso que a levaria ao Carnegie Hall. Apesar da paixão pelo piano clássico, foi como cantora de jazz e blues que se revelou ao mundo. Tocar e cantar nos bares tornou-se a única alternativa para a filha de uma empregada doméstica com um marceneiro. Foi essa vicissitude do destino quem deu ao mundo o prazer de conhecer a voz robusta e aveludada de Nina (menina, como era chamada por um namorado) Simone (em homenagem a atriz Simone Signoret).

A composição escolhida para se re-nomear revela um ideal : a menina, branca, bem-sucedida, sensual e politicamente engajada, encarnada na atriz francesa com quem compartilha um mesmo sonho de liberdade. O encontro com seu grande amor, Andy, talvez tenha sido o primeiro descobrimento dessa imagem (todo amor, afinal, não é ao mesmo tempo narcísico e objetal?) A menina cai de amores pelo policial durão, pois ele “sabia o que queria”. Ele a protege, organiza sua vida, passa a ser seu empresário e lhe dá a segurança de que precisava para enfrentar o show business. Mas é este mesmo amor que vai revelar-se em sua face mais cruel, empurrando-a para o trabalho além das forças e espancando-a quando desobedecia.  “Ele me assustava”, dizia Nina, “mas eu o amava e achava que ele ia mudar”. História tão conhecida essa, dessas mulheres, brancas, negras, americanas, brasileiras, que por amor, se deixam (ou se fazem) destruir. What Happened, miss Simone? Como o sonho de liberdade acabou flertando com os grilhões de uma relação abusiva?

Uma palavra que ricocheteia em todo documentário, talvez seja a senha para respondermos à pergunta: anger. Seja uma raiva auto dirigida, nos momentos de depressão; seja nos ataques no palco, onde exigia a atenção que um pianista clássico merecia; seja quando dirigia essa raiva para a filha ainda criança: “minha mãe era movida pela fúria”, afirma Lisa Simone em determinado ponto. Foi essa mesma “fúria” que a permitiu, depois de muitos anos, separar-se de Andy, engajar-se no ativismo pelos direitos civis e fazer disso uma causa.   

Nessa militância ela usa toda sua raiva em prol do ativismos politico, culminando com "Mississipi, Goddam!". Algo como "Misssissipi, puta que pariu!", música feita após a morte de quatro crianças negras  num ataque a uma igreja. Ela disse o que estava engasgado e todo mundo queria dizer. Mas sua raiva levou-a mais longe, chegando a divergir de Luther King quanto ao uso da violência. 

“Are you ready black people? Are you ready to smash white things?”, ouvimos uma Nina quase em transe instigando o público em um de seus shows. O circuito pulsional faz seu trottoir onde "bater" e "ser batido" são duas faces da mesma moeda. “Strange Fruit” essa que carregamos no ventre, que vemos com horror (como o poema cantado 
por Nina diz), balançando nas árvores para apodrecer como os cadáveres dos negros linchados em Indiana, mas que também encontramos em nós mesmos como nossa causa mais íntima. Estranho familiar, diria Freud.

Nina sonhava com a liberdade, mas quando se desvencilhou das garras de Andy, não soube o que fazer com ela. Destruiu-se e perdeu tudo que tinha e, quando já era uma lenda, se viu completamente perdida cantando em bares anônimos de Paris.

Essa história me lembrou uma outra. A de Ysé, contada por Paul Claudel, e retomada por Colette Soler em seu livro “O que Lacan dizia das mulheres”. Frente a iminência da partida de seu amante para a guerra, Ysé lhe implora que não vá. Ele se vangloria: Então, no fim a gente tem que confessar que precisa mesmo é do marido! Mas Ysé lhe arranca o pedestal: “Não confie muito em mim. Não sei, sinto em mim uma tentação... E peço que não me venha essa tentação, porque não convém... De que precisa uma mulher, senão de segurança, como a abelha atarefada na colmeia, limpinha e bem fechada? E não esta liberdade assustadora!”
Diz Colette Soler: “Não era contra os perigos da China que ela fazia seu apelo, mas contra a coisa mais próxima. Em síntese, Ysé lhe diz: proteja-me de mim mesma.”

Acho que podemos ler na história de Nina também um apelo, algo que a defendesse dessa liberdade assustadora onde, no final do trilho, o que encontramos, são corpos decompostos balançando numa árvore. Strange Fruits.

O mérito do documentário foi, além de nos proporcionar momentos belíssimos em companhia de Miss Simone, mostrar os diversos ângulos de Nina: da entrega amorosa à fúria odienta, sem reduzi-la a nenhum deles, mostrando-a susceptível de todas as paixões humanas. Assim como qualquer um de nós.

Afinal, no one can always be an angel, não é Miss Simone?


Trailer Oficial

Lia Silveira é Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Fórum Fortaleza. Professora da Universidade Estadual do Ceará. Fundadora do blog Meio Rosa, Meio Lia - http://meiorosameiolia.blogspot.com.br/

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