de
Nilson Perissé
De
que falamos quando falamos de amor é uma pergunta que pode ter
respostas distintas a partir do sujeito que a responde. Para os
personagens de Birdman,
amor parece estar associado a reconhecimento, ao olhar aprovador do
Outro, olhar onipotente que dá sentido e pode legitimar uma
existência. Riggan Thomson (Michael Keaton) é um ator hollywoodiano
que, na década de 90, protagonizou três filmes blockbusters
de um super-herói, o Homem-Pássaro do título. No protagonismo da
franquia de sucesso, o ator ganhou seu passaporte para a fama e para
o coração de milhares de espectadores que se apaixonaram pela
trilogia. Ator e personagem se fundiram no imaginário social e, de
certa forma, no imaginário de Riggan também. Tanto que, vinte anos
depois, já velho e sem o physique
du role apropriado para
representar o herói, ele continua a ser atormentado pelo imaginário
Birdman
(que aqui bem representa sua divisão subjetiva)
para participar de um quarto
filme da série, ao invés de aventurar-se numa missão aparentemente
suicida de reinventar-se como ator dramático na Broadway, numa peça
adaptada, dirigida e protagonizada por ele (no caso, uma adaptação
de “De que falamos quando
falamos de amor?” de Raymond
Carver). A tentação de voltar atrás e retomar um sucesso fácil
nas telas não sai de sua cabeça ao longo do filme, mas,
ironicamente, seus novos esforços de ator-escritor-diretor são
apenas outra face de uma mesma busca - o reconhecimento de público e
critica no circuito sofisticado do teatro novaiorquino. Mudam as
identidades (ator de filmes de ação X ator dramático) e o outro
(público de filmes-pipoca X público refinado do teatro), mas a
busca é a mesma. Entre fugas alucinatórias nas quais se imagina com
o poder de levitar, de projetar objetos contra a parede ou mesmo
voar, Riggan quer ser amado - não apenas como ator legitimado pelo
talento, mas também como pai, pelas vias de um tardio reconhecimento
da filha Sam (Emma Stone), e como marido, através de fracassadas
tentativas de retomar o casamento com a ex-mulher Sylvia (Amy Ryan).
Mas
Riggan não está só. Lesley (Naomi Watts), uma das atrizes que
participa de sua peça, segue a mesma trilha, vendo na possibilidade
de pisar num palco da Broadway a aspiração maior. Ao longo da
narrativa, porém, ela demonstra um certo estranhamento, como se a
proximidade da realização de sua ambição profissional não
trouxesse o contentamento esperado ou a fizesse perceber-se diante da
nudez do seu próprio enigma (ainda não era isso, diria Lacan). Mike
Shiner (Edward Norton), outro ator da peça, leva ainda mais longe a
questão - impotente na vida real, tem uma ereção enquanto atua, da
mesma forma que só se sente verdadeiramente vivo quando representa
um papel diante da plateia (aqui metaforizada como o Outro ou o
objeto olhar).
Não
é apenas com esses personagens que Birdman
brinca com a tentação fácil do prestígio, do poder, do dinheiro e
do amor dos fãs. Num divertido, porém melancólico momento do
filme, Riggan tenta substituir um dos atores de sua peça por algum
artista talentoso, porém todos de quem lembra estão ocupados com
projetos blockbusters:
Woody Harrelson está filmando a franquia “Jogos Vorazes”,
Michael Fassbender está ocupado com os filmes dos “X-Men”.
Ironicamente, mesmo os atores reais de Birdman
têm currículos semelhantes: Naomi Watts atuou em King
Kong, Emma Stone em
Homem-Aranha,
Edward Norton foi Hulk
e o próprio Michael Keaton protagonizou dois filmes de Batman.
A
psicanálise nos alerta que a constituição subjetiva não se dá
apenas por olhar o outro
(espelhar-nos num pai, num irmão, ou numa figura representativa de
nossas relações), mas também pelo
olhar do outro. Lacan lembra que
tornar-se sujeito passa ainda pelo momento em que a criança,
mirando-se no espelho, volta-se para a mãe e a olha como que pedindo
que aquela autentique sua descoberta. Será no reconhecimento da mãe,
que reagirá dizendo algo como “Sim, é você, Pedro”, que
confirmará para a criança a ideia do “sou eu”. Lacan dirá: “É
desse lugar que depende o fato de que tenha direito ou defesa de se
chamar Pedro” (O Seminário:
Livro I, pág. 97).
A
necessidade de ser alguém para alguém, de ser legitimado, de ter
uma identidade reconhecida (segundo os analistas da obra de Raymond
Carver, temáticas presentes nos textos deste autor) perpassa toda a
tessitura deste Birdman,
porém com um enfoque realista. Não se trata aqui dos tradicionais
filmes nos quais o personagem central luta para provar seu talento e
ao final é reconhecido e aclamado por uma crítica severa e
exigente, porém justa. Em Birdman,
o valor da adaptação teatral que estava sendo encenada não será
medido por suas próprias virtudes, mas pelo olhar que lhe será
depositado através de uma poderosa crítica do caderno cultural do
New York Times,
Tabitha Dickinson (Lindsay Duncan). Esta personagem secundária tem
apenas uma pequena participação no filme, mas oferece importantes
elementos de reflexão, pois assemelha-se a um supereu autoritário,
exigente, cruel, impossível de ser saciado, motivada que ela está
por razões diferentes de um critério de justiça – no fundo,
guiada por seus próprios preconceitos. Também é significativo que
a personagem não passe de uma mulher envelhecida, solitária e
amarga, feia como “alguém que lambeu o rabo de uma cabra”
(conforme comparação feita no filme). Essa crítica tem na história
– como o supereu na vida – o poder de erguer ou demolir a
produção artística alheia, mas não se sustenta como autoridade
detentora de uma verdade, apenas como semblante instituído pela via
simbólica de um jornal de prestígio. Birdman
mostra que, ao fim e ao cabo, o Outro que me destrói ou me legitima
não é autoridade de nada, apenas alguém que eu, por minhas
próprias razões, legitimo nesse lugar e dou consistência.
Riggan
Thomson, então, se dá conta do vazio e da inconsistência desse
reconhecimento. Em momentos nos quais recapitula seu passado, lembra
da fase em que foi aclamado, rico e invejado – sintomaticamente,
uma fase na qual, esvaziado de motivação e desejo de viver, tentou
o suicídio por afogamento. Ele identifica que, nos momentos em que
parecia que havia conquistado tudo, seu casamento ia mal, o papel de
pai era insípido e o vazio era tamponado com a bebida.
Porém,
elaborar e compreender seu percurso através desse prisma não lhe
traz iluminação nem paz. Ao contrário, faz parecer – como diz o
subtítulo do filme - que a ignorância é, de fato, uma virtude
inesperada. Riggan não pode voltar ao passado e recuperar o
casamento desfeito nem preencher as lacunas de convivência com a
filha cujo crescimento não acompanhou. Projetar-se no vazio do alto
de um prédio ou da janela de seu quarto de hospital parece ser o
símbolo máximo da dificuldade em lidar com o próprio desencanto, e
ainda que possa não fazê-lo realmente, ele assim alucina. Incapaz
de inventar sua própria solução, ele busca saídas na bala de uma
arma ou na inveja pelo voo alienado e anônimo de uma ave em meio ao
bando.
O
desfecho da trama é ambíguo e sujeito a múltiplas compreensões.
Porém, mais importante que encontrar uma interpretação genial e
definitiva é contemplar Riggan como qualquer homem contemporâneo
perplexo diante de seus impasses. Mais que um homem dividido entre um
personagem imaginário (Birdman)
e um personagem atormentado pelo Real (o personagem do texto de
Raymond Carver a quem dava vida na peça): Riggan Thomson é cada um
de nós que se procura e se perde em equivocadas buscas de poder,
reconhecimento, popularidade e prestígio – ou naquilo que falamos
quando falamos de amor.
Trailer Oficial do filme
Nilson
Perissé é sujeito em permanente formação psicanalítica. É
autor da dissertação de mestrado “As pessoas já entram se
sentindo menores: impactos da terceirização na subjetividade do
trabalhador”. No Cinefreudiano, publicou o artigo “O Desejo em
Woody Allen” e resenhou o filme “Freud, Além da Alma” em três
partes. Para correspondência: nilsonperisse@hotmail.com
4 comentários:
Excelente! Uma das melhores resenhas que li aqui. Bravo! Mirelle Araújo
Este comentário oportuniza uma excelente revisitação do filme, para quem já o assistiu, e, imagino, uma grande instigação em quem ainda não o viu. A reflexão a partir da pergunta central do filme, que é tema de adaptação pelo protagonista, dá um significado todo especial à resenha: de que falamos quando falamos de amor?...
“Birdman”, na realidade, poderia ser subintitulado como “A Metáfora do Ego Inflado” ou “O Efeito Destruidor da Vaidade Alienante”, ou definições do tipo. É o melhor filme de Edward Norton, é de admirar o profissionalismo deste ator, trabalha muito para se entregar em cada atuação o melhor, sempre supera seus papeis anteriores, o demonstrou em: Beleza Oculta um filme que se converteu em um dos meus preferidos.
Puta resenha. Parabéns
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