segunda-feira, 9 de março de 2015

BIRDMAN (OU A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA)

de Nilson Perissé
De que falamos quando falamos de amor?” é uma questão proposta num livro de contos de autoria de Raymond Carver, escritor norte-americano falecido precocemente de câncer aos 50 anos. De certa forma, em torno dessa obra gira o filme “Birdman (ou a inesperada virtude da ignorância)”, do diretor mexicano Alejandro Gonzalez Inarritu, lançado em 2014.
De que falamos quando falamos de amor é uma pergunta que pode ter respostas distintas a partir do sujeito que a responde. Para os personagens de Birdman, amor parece estar associado a reconhecimento, ao olhar aprovador do Outro, olhar onipotente que dá sentido e pode legitimar uma existência. Riggan Thomson (Michael Keaton) é um ator hollywoodiano que, na década de 90, protagonizou três filmes blockbusters de um super-herói, o Homem-Pássaro do título. No protagonismo da franquia de sucesso, o ator ganhou seu passaporte para a fama e para o coração de milhares de espectadores que se apaixonaram pela trilogia. Ator e personagem se fundiram no imaginário social e, de certa forma, no imaginário de Riggan também. Tanto que, vinte anos depois, já velho e sem o physique du role apropriado para representar o herói, ele continua a ser atormentado pelo imaginário Birdman (que aqui bem representa sua divisão subjetiva) para participar de um quarto filme da série, ao invés de aventurar-se numa missão aparentemente suicida de reinventar-se como ator dramático na Broadway, numa peça adaptada, dirigida e protagonizada por ele (no caso, uma adaptação de “De que falamos quando falamos de amor?” de Raymond Carver). A tentação de voltar atrás e retomar um sucesso fácil nas telas não sai de sua cabeça ao longo do filme, mas, ironicamente, seus novos esforços de ator-escritor-diretor são apenas outra face de uma mesma busca - o reconhecimento de público e critica no circuito sofisticado do teatro novaiorquino. Mudam as identidades (ator de filmes de ação X ator dramático) e o outro (público de filmes-pipoca X público refinado do teatro), mas a busca é a mesma. Entre fugas alucinatórias nas quais se imagina com o poder de levitar, de projetar objetos contra a parede ou mesmo voar, Riggan quer ser amado - não apenas como ator legitimado pelo talento, mas também como pai, pelas vias de um tardio reconhecimento da filha Sam (Emma Stone), e como marido, através de fracassadas tentativas de retomar o casamento com a ex-mulher Sylvia (Amy Ryan).
Mas Riggan não está só. Lesley (Naomi Watts), uma das atrizes que participa de sua peça, segue a mesma trilha, vendo na possibilidade de pisar num palco da Broadway a aspiração maior. Ao longo da narrativa, porém, ela demonstra um certo estranhamento, como se a proximidade da realização de sua ambição profissional não trouxesse o contentamento esperado ou a fizesse perceber-se diante da nudez do seu próprio enigma (ainda não era isso, diria Lacan). Mike Shiner (Edward Norton), outro ator da peça, leva ainda mais longe a questão - impotente na vida real, tem uma ereção enquanto atua, da mesma forma que só se sente verdadeiramente vivo quando representa um papel diante da plateia (aqui metaforizada como o Outro ou o objeto olhar).
Não é apenas com esses personagens que Birdman brinca com a tentação fácil do prestígio, do poder, do dinheiro e do amor dos fãs. Num divertido, porém melancólico momento do filme, Riggan tenta substituir um dos atores de sua peça por algum artista talentoso, porém todos de quem lembra estão ocupados com projetos blockbusters: Woody Harrelson está filmando a franquia “Jogos Vorazes”, Michael Fassbender está ocupado com os filmes dos “X-Men”. Ironicamente, mesmo os atores reais de Birdman têm currículos semelhantes: Naomi Watts atuou em King Kong, Emma Stone em Homem-Aranha, Edward Norton foi Hulk e o próprio Michael Keaton protagonizou dois filmes de Batman.
A psicanálise nos alerta que a constituição subjetiva não se dá apenas por olhar o outro (espelhar-nos num pai, num irmão, ou numa figura representativa de nossas relações), mas também pelo olhar do outro. Lacan lembra que tornar-se sujeito passa ainda pelo momento em que a criança, mirando-se no espelho, volta-se para a mãe e a olha como que pedindo que aquela autentique sua descoberta. Será no reconhecimento da mãe, que reagirá dizendo algo como “Sim, é você, Pedro”, que confirmará para a criança a ideia do “sou eu”. Lacan dirá: “É desse lugar que depende o fato de que tenha direito ou defesa de se chamar Pedro” (O Seminário: Livro I, pág. 97).
A necessidade de ser alguém para alguém, de ser legitimado, de ter uma identidade reconhecida (segundo os analistas da obra de Raymond Carver, temáticas presentes nos textos deste autor) perpassa toda a tessitura deste Birdman, porém com um enfoque realista. Não se trata aqui dos tradicionais filmes nos quais o personagem central luta para provar seu talento e ao final é reconhecido e aclamado por uma crítica severa e exigente, porém justa. Em Birdman, o valor da adaptação teatral que estava sendo encenada não será medido por suas próprias virtudes, mas pelo olhar que lhe será depositado através de uma poderosa crítica do caderno cultural do New York Times, Tabitha Dickinson (Lindsay Duncan). Esta personagem secundária tem apenas uma pequena participação no filme, mas oferece importantes elementos de reflexão, pois assemelha-se a um supereu autoritário, exigente, cruel, impossível de ser saciado, motivada que ela está por razões diferentes de um critério de justiça – no fundo, guiada por seus próprios preconceitos. Também é significativo que a personagem não passe de uma mulher envelhecida, solitária e amarga, feia como “alguém que lambeu o rabo de uma cabra” (conforme comparação feita no filme). Essa crítica tem na história – como o supereu na vida – o poder de erguer ou demolir a produção artística alheia, mas não se sustenta como autoridade detentora de uma verdade, apenas como semblante instituído pela via simbólica de um jornal de prestígio. Birdman mostra que, ao fim e ao cabo, o Outro que me destrói ou me legitima não é autoridade de nada, apenas alguém que eu, por minhas próprias razões, legitimo nesse lugar e dou consistência.
Riggan Thomson, então, se dá conta do vazio e da inconsistência desse reconhecimento. Em momentos nos quais recapitula seu passado, lembra da fase em que foi aclamado, rico e invejado – sintomaticamente, uma fase na qual, esvaziado de motivação e desejo de viver, tentou o suicídio por afogamento. Ele identifica que, nos momentos em que parecia que havia conquistado tudo, seu casamento ia mal, o papel de pai era insípido e o vazio era tamponado com a bebida.
Porém, elaborar e compreender seu percurso através desse prisma não lhe traz iluminação nem paz. Ao contrário, faz parecer – como diz o subtítulo do filme - que a ignorância é, de fato, uma virtude inesperada. Riggan não pode voltar ao passado e recuperar o casamento desfeito nem preencher as lacunas de convivência com a filha cujo crescimento não acompanhou. Projetar-se no vazio do alto de um prédio ou da janela de seu quarto de hospital parece ser o símbolo máximo da dificuldade em lidar com o próprio desencanto, e ainda que possa não fazê-lo realmente, ele assim alucina. Incapaz de inventar sua própria solução, ele busca saídas na bala de uma arma ou na inveja pelo voo alienado e anônimo de uma ave em meio ao bando.

O desfecho da trama é ambíguo e sujeito a múltiplas compreensões. Porém, mais importante que encontrar uma interpretação genial e definitiva é contemplar Riggan como qualquer homem contemporâneo perplexo diante de seus impasses. Mais que um homem dividido entre um personagem imaginário (Birdman) e um personagem atormentado pelo Real (o personagem do texto de Raymond Carver a quem dava vida na peça): Riggan Thomson é cada um de nós que se procura e se perde em equivocadas buscas de poder, reconhecimento, popularidade e prestígio – ou naquilo que falamos quando falamos de amor.
Trailer Oficial do filme

Nilson Perissé é sujeito em permanente formação psicanalítica. É autor da dissertação de mestrado “As pessoas já entram se sentindo menores: impactos da terceirização na subjetividade do trabalhador”. No Cinefreudiano, publicou o artigo “O Desejo em Woody Allen” e resenhou o filme “Freud, Além da Alma” em três partes. Para correspondência: nilsonperisse@hotmail.com

4 comentários:

Anônimo disse...

Excelente! Uma das melhores resenhas que li aqui. Bravo! Mirelle Araújo

Unknown disse...

Este comentário oportuniza uma excelente revisitação do filme, para quem já o assistiu, e, imagino, uma grande instigação em quem ainda não o viu. A reflexão a partir da pergunta central do filme, que é tema de adaptação pelo protagonista, dá um significado todo especial à resenha: de que falamos quando falamos de amor?...

Anônimo disse...

“Birdman”, na realidade, poderia ser subintitulado como “A Metáfora do Ego Inflado” ou “O Efeito Destruidor da Vaidade Alienante”, ou definições do tipo. É o melhor filme de Edward Norton, é de admirar o profissionalismo deste ator, trabalha muito para se entregar em cada atuação o melhor, sempre supera seus papeis anteriores, o demonstrou em: Beleza Oculta um filme que se converteu em um dos meus preferidos.

Clara Clara disse...

Puta resenha. Parabéns