de
Christian Ingo Lenz Dunker
Há
uma longa tradição no ocidente cristão que associa inovações
estéticas na forma de falar da sexualidade com transformações
políticas em nossas formas de vida. E entre tais políticas há as
que privilegiam a vida como finitude, com seus afetos fundamentais de
medo e desamparo, e as que pensam a vida incluindo o problema do
infinito, seja ele o infinito do desejo, seja ele o infinito do
tempo, ou ainda o infinito indeterminado do diálogo entre vivos e os
mortos. Assim é o Marques de Sade, e sua Filosofia
na Alcova,
e a aurora da revolução francesa de 1789; os românticos de segunda
geração, como Byron e Mary Sheley e seus seres góticos adoecidos
no sexo, bem como maio de 1968, a revolução sexual de Reich a
Bukowsky e principalmente o feminismo. Cada um destes momentos
tiveram também seus teóricos: os libertinos e suas controvérsias
em torno da existência ou não de uma moral natural, no século
XVIII, a sexologia de Kraft-Ebbing a Havelock Elllis, no século XIX
e a psicanálise de Freud a Robert Stoller no século XX. Cada um
destes momentos esta marcado por uma problemática relativa ao
infinito: o divino marquês investigava o infinito
no corpo-natural,
os ultrarromânticos queriam saber do infinito
da vida
(vampiros, Frankensteins, fantasmas e zumbis), enquanto a psicanálise
nasce como uma investigação sobre o infinito
do desejo
(sem tempo, sem negação, sem contradição).
Foucault
queria que a análise crítica desta sucessão servisse para que
parássemos de localizar a verdade do sujeito neste campo
heteróclito, de desidentidade do sujeito, que é a sexualidade.
Eventualmente sua crítica contém algo mais importante do que ele
mesmo teorizou. Não só a saga da dominação do homem pelo homem, a
partir de sua subserviência ao sexo rei. Não apenas a dominação
por discursos impróprios, nem mesmo a neutralização a sexualidade
na medida em que somos incitados a falar mais e mais dele. Foucault
chamou de hipótese
repressiva, certas
condições históricas de emergência da psicanálise, como a
naturalização da maternidade, a perversão dos adolescentes e a
sexualização da infância. Uma característica forte desta
“estrutura de ficção” é o horror ao infinito. A sexualidade é
perigosa, principalmente para os desprevenidos, por que ela sempre
pede mais, se damos a mão ela quer o braço, e se damos o braço ...
não sabemos onde vamos parar. É este temor ao infinito que Lacan
pensou por meio de uma crítica da gramática da necessidade
(nécessaire
= ne – cesse:
o que “não cessa”). Ora, o que não
cessa de se escrever
(necessidade), presume o que cessa
de não se escrever
(contingência), assim como o que não
cessa de não se escrever (impossível)
presume o que cessa de
escrever (possível).
A crítica de Lacan tenta reduz o potencial de periculosidade da
coisa sexual, mostrando que o infinito não está apenas na
necessidade, mas desdobra-se em várias incidências do infinito,
inclusive este infinito negativo e impossível que não para de não
acontecer.
Ninfomaníaca,
o filme de Lars Von Triers é também um exercício estético sobre
as modalidades do infinito. Ele caminha entre as três narrativas
fundamentais sobre a sexualidade, do naturalismo descritivo que nos
lembra as enciclopédicas 120
Jornadas de Sodoma e Gomorra
de Sade, à investigação científica de Joe (Charlotte Gainsbourg)
em torno de seu próprio corpo, que nos lembra os anatomistas do
prazer, além do tratamento espontâneo e experimental de um sintoma
sexual, qual seja sua súbita perda da capacidade de sentir prazer, o
que nos faz pensar na experiência psicanalítica. Ela conta suas
aventuras para Seligman
(Stellan
Skarsgard)
mistura de psicanalista, estudioso da sexualidade e religioso
assexuado. Assim como em Melancolia,
Von Triers aborda a experiência do fim, do fim do mundo, do fim do
desejo, agora em Ninfomaníaca
ele estuda o que seria uma vida em estado de infinitude. Podemos
dizer que Melancolia
é um estudo em torno da substituição da hipótese repressiva pela
hipótese depressiva.
Esta
tematização do infinito não se restringe a trama entre os
personagens e à estrutura da narrativa. Ela aparece como
consequência direta da forma como Von Triers pensa os problemas da
produção cinematográfica e da linguagem fílmica. Daí a
relevância do filme para pensar uma sexualidade por vir. Daí a
relevância de seu cinema para pensar nossa época que se vê às
voltas com a produção de limitações que não podem depender
apenas de restrições normativas, higienistas ou jurídicas. Basta
pensar em questões análogas: que princípio nos fará parar diante
da posse dos meios para destruir o planeta ou de recuar diante de uma
catástrofe ecológica? Ou seja, por que parar se nada me impede?
Lembremos os dez pontos que Von Triers e Thomas Vintenberg
formularam, em 1996, como fundamento de seu programa
estético-político conhecido como Dogma 96:
- As filmagens devem ser feitas no local.
- O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa.
- A câmera deve ser usada na mão.
- O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial.
- São proibidos os truques fotográficos e filtros.
- O filme não deve conter nenhuma ação "superficial".
- São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos.
- São inaceitáveis os filmes de gênero.
- O filme final deve ser transferido para cópia em 35 mm.
- O nome do diretor não deve figurar nos créditos.
Os
dez pontos do manifesto são restrições, limitações
auto-impostas, suspensões do uso de recursos tecnológicos, de
produção e de filmagem que estão
disponíveis, mas que
não serão usados.
É uma forma de criar liberdade escolhendo seus limites. Muitos leram
neste manifesto uma espécie de recuo regressivo a um naturalismo
moral. Uma tentativa de associar novamente produção e linguagem
fílmica. Uma crítica à excessiva divisão de tarefas, com
autonomização das funções (fotografia, som, direção, direção
de atores, etc). Uma indisposição antipática contra a ingerência
genérica da força dos meios de produção (recursos tecnológicos,
mobilidade de set, etc) no resultado produzido para o público. A
ideia de que um filme deva colocar o montante do valor de sua
produção como um “índice” de sua qualidade ou como parte de
seu apelo ao consumo soava de forma brutalmente estranha aos
partidários do Dogma-96. Por outro lado eles não queriam se
contentar com uma espécie de retorno ao cinema de autor, que
colocava o nome do diretor como ponto de convergência e unidade, que
produziria, com o tempo, um traço de “vendabilidade” do filme.
O
ponto de amarração da verdade não está nem no excesso da
produção, duplamente representado dentro do filme e em seus meios
de produção, nem na garantia oferecida pelo nome do diretor e sua
suposta confiabilidade induzida pelo efeito obra. O problema que
surge daí é muito mais interessante do que sua solução empírica.
A ideia enfrenta o desfio que é o desafio ao capitalismo de nossa
época: como não usar tudo de que dispomos? Como recuar diante de
uma enunciação que não é bem um imperativo, do tipo “isto
sim” ou “isto
não”, mas uma
espécie de falso silogismo irresistível: “se
não há nada que proíba ... então se torna obrigatório”.
Ou “se eu posso”
então “eu devo”?
O
filme de Von Triers segue de perto o esquema narrativo proposto pelo
Marquês de Sade. Variação repetitiva de modalidades de prazer, com
especial ênfase no sadismo e no masoquismo. Cena confessional com a
figura do professor benevolente, mas assexuado, que lentamente vai
sendo convencido e convertido libidinalmente. Evolução
naturalística das formas de prazer, descritas como um processo de
descobertas sucessivas, em torno de uma experiência enigmática ou
a-sexuada, no caso, o gosto paterno por folhas e árvores.
Indiferença, frieza e contratualismo institucional na abordagem
discursiva da sexualidade, tratada com distanciamento memorialístico,
científico ou moral. Pares de opostos são hierarquizados na
construção de uma moral experimental: o natural e o artificial, o
universal e particular, o necessário e o possível. É assim que
chegamos, no segundo volume, ao discurso de que a Igreja Católica do
Ocidente está para o sofrimento assim como a Igreja Ortodoxa do
Oriente está para a felicidade. Lembremos que no concílio de
Constantinopla, em 1054, decretou-se esta divisão, estabelecendo-se
a partir de então dogmas.
Lembremos ainda que o chamado cisma do oriente baseava-se na
interpretação diferencial da origem a trindade. A querela “filoque”
opunha os que achavam que o espírito santo provinha do pai (o
um vem do um) e os que
pensavam que o espírito santo vinha do pai e do filho (o
um vem do dois).
Estamos de novo diante de duas concepções sobre o infinito: o
infinito entre dois, ou o infinito dado de uma vez.
De
fato este é também o silogismo que se dissemina em nossa moral
sexual pós-civilizada. Tudo o que não é proibido é permitido. E
tudo o que é permitido pode ser levado ao obrigatório, até o
abuso. O que nos leva a proliferação de interdições regulativas,
de ordem médica, higienista ou educativa. Esta ideia de que a lei é
nosso único limite é uma ideia muito limitada para nosso tempo.
Basta lembrar o trabalho de Picketti, sobre a inanidade da ampliação
da distribuição de renda, dentro da lei, nos últimos séculos, na
maioria dos países do ocidente. Basta lembrar que a crise ecológica
simplesmente não será enfrentada apenas com novas leis punitivas e
restrições diretas ao uso dos meios. Basta lembrar a pobreza em que
se expressa nosso debate sobre a liberdade de expressão. A liberdade
de tudo dizer, sem consideração pelos meios de ampliação, de
transmissão, de dominação do espaço público, é contraposta de
forma brutal e massiva contra as restrições de censura, controle e
manipulação de consciências. Tudo se passa como se deduzíssemos
nossa liberdade apenas a partir do que não é proibido e como se
localizássemos o proibido no Outro. Resultado, uma forma de vida que
só consegue sofrer, e portanto, pensar sua liberdade encarcerada
entre o possível
e o não-possível
(hipótese depressiva) ou acossada pela lei do necessário
(hipótese repressiva). Nenhum lugar resta para a contingência. Como
se a única liberdade fosse aquela deduzida da lei, mesmo que em
escala invertida da lei do desejo, como argumentava Lacan até 1960.
E aqui estaria a novidade da reflexão contida em Ninfomaníaca.
Quando
Freud fala da sexualidade perverso polimorfa da criança ele não
está se referindo apenas a sua dialética com a lei, nem à
alternância entre possível e impossível, mas ao fato de que a
relação primária com o prazer é contingente. Esta é a regra de
formação da sexualidade. A perversão é o negativo da neurose
porque a neurose é experiência determinada do prazer. Na perversão
infantil é o prazer contingente, e sua experiência produtiva de
indeterminação, que possui valor formativo.
Quem
já atendeu pacientes em mania talvez concordará que existem três
sinais inconfundíveis: a aceleração da velocidade da fala (ou da
escrita), a impulsividade para o sexo e a propensão para o consumo.
São casos muito difíceis, senão quase inabordáveis, porque
justamente o tempo do para ouvir o outro é suprimido. O que se diz
ao paciente é quase indiferente diante de sua marcha solitária e
heroica rumo à exaustão. Mas o perigo nestes casos não está
apenas nas situações embaraçosas ou na “conta” que pode
aparecer depois, mas no ponto de inversão, no ponto em que o fósforo
queima tão completamente que se apaga. O ponto em que passamos da
Ninfomanía
para a Ninfo-melancolia.
Desta última poucos se queixam, tal a maneira como se dissemina em
nossa cultura fabril e febril, o excesso de trabalho e de
entretenimento. Esta vida sem sexo resolveu o problema foucaultiano
da exegese infinita de si mesmo, da narrativa da carne e da culpa.
Estaríamos assim curados de nossa compulsão a encontrar nossa
verdade nos excessos e faltas da sexualidade. Desconfio que muitas
das curas atribuídas a anti-depressivos devem ser realmente
creditadas a certos efeitos ninfo-melancolizantes, induzidos de forma
“colateral” pelos anti-depressivos. Não seria a primeira vez na
história da medicina em que o colateral é o essencial. Pode ser
estranho pensar assim, mas uma vida sem sexo pode ser uma vida muito
mais eficaz, com muito menos conflito, maior desempenho narcísico e
com muito maior adaptação social.
Mas
o ponto crucial, e realmente novo no experimento de Von Triers não é
obviamente a narrativa da recuperação da potência de prazer, por
meio de giros masoquistas, nem mesmo a dependência crucial entre
sexo e discurso, mas este enigmático ponto de inversão entre a
Ninfomanía e a Ninfo-melancolia. Ponto a partir do qual se poderia
entender o fim da história, como um ato inesperado que é e que
intrigou mitos espectadores. Sem spoiler,
posso dizer que se trata da aparição inesperada da contingência, e
da superação da lógica, antes consagrada pelo experimento
ninfomaníaco, que oscila do possível ao necessário.
Lacan
abordou este problema da disparidade entre infinitos, no interior da
sexualidade, recorrendo a duas teorias diferentes. O gozo fálico,
comum a homens e mulheres, estaria organizado ao modo de uma série,
no interior da qual procura-se um elemento comum. Uma série quer
dizer que conhecemos sua regra de formação, e pensamos o infinito
pela indeterminação de seu último termo, por exemplo, a série dos
números naturais N= {1,2,3 ... n}. O gozo feminino, ou gozo Outro,
não
se
organiza
desta maneira, mas ao modo de uma “lista” com elementos que podem
ser escolhidos aqui e ali, mas cuja regra de formação deverá ser
estabelecida depois, se é que ele pode ser descrita. Isso pode ser
ilustrado pelo conjunto dos números Reais,
que englobam não só os números
inteiros e
os fracionários,
positivos e negativos, mas também todos os números
irracionais,
por exemplo, R {0, 0.333.., 0.7, 1, Pi... n}. Os números Reais não
possuem
uma regra de formação, mas intercalam elementos cujas propriedades
não se reduzem às de outros conjuntos. Tipicamente o problema do
gozo fálico é que ele é formado por uma intersecção, por
exemplo, entre conjuntos abertos, produzindo o que se chama de
infinito contável ou infinito enumerável, desde que se introduza no
próprio conjunto os seus pontos limites (teorema de
Bolzano-Weierstrass).O gozo feminino não se faz por interseção,
mas pela reunião de famílias de conjuntos abertos, com o qual se
aborda finitamente a infinitude. Neste caso não se incluem os pontos
limites na série. Com uma lista finita pode recobrir o infinito.
Esta reunião de abertos em estrutura de lista corresponde a um
segundo tipo de infinito (teorema de Heine-Borel-Lesbegue).
Ocorre
que as mulheres possuiriam, de modo contingente, dois gozos: o fálico
(como o dos homens) e o especificamente feminino (gozo Outro). O
inconveniente, segundo Lacan, é que este segundo infinito só pode
ser exprimir, em termos de linguagem, constrangendo-se às regras
impostas pela lógica da série. Isso levou Geneviève Morel, uma
estudiosa da teoria lacaniana da sexuação, a afirmar que os homens
dependem de uma fantasia para gozar, ao passo que na sexualidade
feminina a fantasia é sempre um tanto incompleta, inacabada ou
manca. As mulheres, que não podem formar um conjunto unitário,
pelos motivos antes examinados, encontram sua modalidade preferencial
de inscrição discursiva da sexualidade no mito. Narrativas como a
de Don Juan, são compreensíveis como um mito, ou seja, uma
articulação lógica entre inúmeras fantasias. Entre gozo fálico
(enumerável) e gozo feminino (não enumerável) não há
continuidade, mas ausência de relação previsível. Por exemplo, se
encontramos o número “3” podemos tomá-lo como elemento da série
dos Números Naturais ou elemento da lista dos Reais. É apenas uma
contingência que ele pertença a ambos.
Ninfomaníaca
é um ensaio sobre a liberdade infinita, sobre os modos de uso do
corpo para além das restrições de segurança, da exaustão dos
corpos (velho tema sadeano) e da hermenêutica da proibição. Entre
o infinito representado pela relação entre liberdade e lei,
infiltra-se o infinito do infinito, representado pelo registro da
potência e da impotência. E é exatamente com relação a este
segundo infinito-ruim que se articula a narrativa de sofrimento que
articula o filme: o momento em que Joe se questiona o que há de
errado com a sua “boceta”. Momento que sucede a maternidade e no
interior do qual ela percebe que este é um órgão sem corpo.
Podemos
agora lançar nossa hipótese. Não seria possível que este ponto de
exaustão, o limite da prática sexual, o momento de conversão da
Ninfomania em Ninfo-Melancolia, o acontecimento de um ponto de
liberdade, entre o possível-necessário e o contingente? Não seria
esta a mais trágica experiência que poderíamos supor em matéria
sexual? A ninfomania pára de se escrever. Joe, apesar de ter se
dedicado de forma análoga ao mito de Sade, este sim um mito
masculino, a uma série infinita de encontros, talvez não estivesse
procurando apenas a razão de formação desta série, o traço
unário que reuniria todos os homens. Sua saga não teria a estrutura
da corrida de Aquiles contra a tartaruga, que tenta nomear os pontos
infinitos e infinitesimais que separam o Um do Outro, mas a estrutura
de uma perda infinita do objeto. Se isso é verdade ao contar sua
história para Seligman ela passa do infinito masculino ao feminino,
ainda que depois se veja obrigada a desfazer a totalidade assim
constituída. Neste caso sua aventura pode ser o prenúncio de uma
sexualidade além do possível e do necessário. Outro tipo de
verdade para a coisa sexual.
Trailer do filme
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor de vários livros, entre eles o vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011).
2 comentários:
Gostei bastante
Pertinente a explicação.
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