domingo, 1 de fevereiro de 2015

Sonata de Outono : uma relação perigosa

de Henrique Senhorini
 
Não, não estou misturando os filmes, porém a relação entre Charlotte e Eva, apresentada por Bergman em seu belíssimo representante da Sétima Arte, me remeteu ao título de um outro, pois é mais que uma relação conturbada. Muitas vezes é uma relação perigosa mesmo.
   E não estou falando isso só pelo que assisti no filme, mas sim pelo que escuto também na clínica, com pequenas variações da fala de Eva: “meu obstáculo maior é eu não saber quem eu sou” e também “se alguém me amar do jeito que sou, talvez eu finalmente me arrisque a olhar para mim mesma”. E, em alguns casos clínicos, fico com a impressão que este tipo de relação mãe e filha é mais que o outono bergamaniano, onde não só as folhas caem, mas também os véus, as máscaras, os semblantes que usamos em muitos momentos como tentativas de tamponar a falta, como protetores das nossas próprias feridas narcísicas para não ficarem tão expostas ao público e até de nós mesmos. Dá a impressão que o sofrimento que vem na clínica está mais para o clima do deserto, onde os dias são desoladamente quentes e as noites impiedosamente frias, onde a possibilidade de alguma coisa nascer, crescer - desde uma flor até o amor - é consideravelmente remota. Uma catástrofe! Uma devastação!
          E essas são, pela ordem, expressões utilizadas por Freud e Lacan à se referirem a relação entre mãe e filha. Freud utiliza este termo em 1931, no seu artigo “Sexualidade Feminina”, quando menciona a imensa e tensa relação ambivalente de amor e ódio que marcam a ligação da menina com sua mãe, na sua fase anterior ao Édipo, na famosa fase pré-edipiana, de forma intensa: “A transição [da mãe] para o objeto paterno é realizada com o auxílio das tendências passivas, na medida em que escaparam à catástrofe” (Freud, 1931)
          Já Lacan usa o termo devastação em “O Aturdito”, de 1973, com todo cuidado e respeito ao pai da psicanálise, quando diz: “Por esta razão, a elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit), contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai – o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação.”
Quer dizer que há algo da mãe que é não-todo apreendido pela lei simbólica, pela metáfora paterna, pela castração, diferente do todo-falocentrismo freudiano.
           Freud, até por ser de uma época mais moralista, mais vitoriana e marcada fortemente pelo patriarcado e monoteísmo (já houve uma época do matriarcado e de mulheres como deusas) que exercia uma influência imperialista - e ainda exerce até hoje - sobre a sociedade, tentou, mas não conseguiu, fazer da mulher mais um peixe na água, como os outros peixes do oceano falocêntrico. Porém, diferentemente dos peixes comuns, a mulher vai além do só nadar, além do gozo fálico.
          Lembremos que há também um tipo de peixe - o peixe voador – que, além de nadar, voa. Trata-se de um peixe que possui uma espécie de par de asas que permite que ele consiga planar por 45 segundos acima do nível do mar, além de nadar dentro d'água como os demais peixes do oceano.
          Assim é a mulher com seu gozo feminino, um gozo suplementar, justamente por estar não toda na função fálica. Isto a faz ter acesso a um outro gozo, o gozo do Outro, o gozo suplementar. E foi essa diferença entre gozos e não entre sexos que permitiram Lacan, com muito esforço e com o máximo rigor teórico, ampliar para além do falo a obra gigantesca iniciada por Freud, promovendo grandes contribuições para a Psicanálise e avanços, através de suas construções teóricas e clareando o enigma da feminilidade. Através de sua matematização da Psicanálise, de sua teoria da sexuação, ele ordenou esta, a sexuação, para todos os seres falantes e isso é somente um dos grandes exemplos desses avanços.
           Então, a mulher, além do gozar na ordem fálica, tem um gozo suplementar justamente por ser não-toda inscrita na metáfora paterna e não ter o falo como significante da falta, o significante do desejo do Outro. Por isso há uma classe de homens, mas não há uma classe feminina. As mulheres, portanto, “são únicas e só podem ser contadas uma a uma” (Valdivia,1997). Não há mulher “artigo definido” para designar o universal, pois não há um significante nela que lhe seja específico, diferente dos homens.
          Será por isso, por ser homem e consequentemente inscrito na ordem da universalidade através do falo, que também fico meio atordoado com esse tipo de relação que não escuto na minha clínica entre um homem e sua mãe? Uma relação que não ata e nem desata, que não autoriza a filha a se autorizar ser mulher e nem abandonar (não fisicamente) sua mãe a favor de uma vida própria, uma vida com tudo que ela já representa e pode vir a representar mais ainda? O que será que prende essas mulheres nessa posição de refém, posição de sequestradas de si mesmo, até de seus próprios corpos e que não prende os homens da mesma forma? Seria a face oculta de um amor, de um deus?
          Há pacientes, não as mulheres, que também tem mães Charllotes e pais invisíveis como o de Eva, mas não ficam presos como elas, como as Evas. Aliás, existem várias Charlottes cujos filhos não encontram o lugar que gostariam de ocupar no desejo da mãe. Temos ciência, através de Freud, que em se tratando de histórias familiares, não há infância feliz e, apesar do esquecimento, são histórias de desespero, principalmente em relação à mãe, visto que primeiro objeto de amor é justamente ela ou quem ocupa seu lugar. Porém outros objetos surgirão, o que não significa que ficaremos livre do primeiro, pois o segundo, terceiro..., assim por diante, “carrega as marcas do Outro primordial concernido na primeira demanda de amor”, de acordo com Colette Soler (2012). E quem é o Outro primordial nas nossas vidas, assim como na vida de Eva? É a mãe. Portanto, o amor é repetitivo, como demostrou Freud. Nas palavras de Soler, “um amor repete-se num outro”. E todos nós, no mínimo neuróticos, passamos por isto.

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E sobre os infortúnios da infância, para quem quiser ler mais a respeito, há uma página dedica ao tema no texto freudiano “Além do Princípio do Prazer” de 1920.
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... Para as Chalottes da vida, os filhos são, também, praticamente invisíveis ocupando um lugar que eles consideram de menos valia. E, algumas vezes, essas Charlottes introduzem seus filhos na ordem simbólica também pela via da devastação, através da rejeição, dos insultos e até mesmo pelo silêncio, quase do mesmo modo como assistimos por meio de Eva.
          E como uma das consequências possíveis, a consagração da “crença inabalável na onipotência de um Outro não castrado, de uma mãe que escapa à falta da castração” nas palavras de Marie-Hélène Brousse (2002). Bem, sabemos que esse tipo de consagração, de tornar sagrado, de se oferecer a divindade Mãe também acontece com neuróticos e neuróticas, portanto não é uma exclusividade das meninas. Porém, parece que é aí mesmo - como Freud já havia indicado em “Feminilidade” de 1933 - nesse período pré-edipiano da relação com a mãe, que as meninas (algumas), diferentes dos meninos, tem um encontro com algo do Real (a queda de um semblante pode provocar esse encontro) que as marcam como sulcos, como cicatrizes na alma que parecem permanecer por quase toda uma vida. Cicatrizes estas que uma experiência de análise podem não removê-las, mas podem transformá-las em cicatrizes de cirurgias plásticas, com aqueles pontos quase imperceptíveis.
          Não que os meninos não sejam afetados por essas Charlottes também, porém dão a impressão que absorvem e ou lidam com as marcas de um jeito diferente. O que os protegem? Talvez, o falo como significante, a identidade, o traço unário. Mas, as marcas também são diferentes nas meninas, parecem muita mais profundas, quiçá por não ter um significante que as represente e as protejam das mães fálicas, das mães Charlottes.

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Em seu artigo intitulado “Mãe e Filha – Da Devastação E Do Amor”Cristina Marcos(2011) sobre isso diz: “É no romper do semblante que algo do gozo se evoca como um desgaste, uma erosão que marca um território. É na queda dos semblantes que a devastação se dá a ver revelando um gozo opaco, refratário à ordem simbólica. Devastar é tornar deserto, despovoar, remetendo a uma destruição completa, a um aniquilamento.” E, ainda de acordo com autora, “a devastação provém de um defeito que tocou a palavra".
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É... Bem que eu poderia recorrer aos poetas como Freud recomenda, mas suponho que de forma chistosa, para tentar saber algo mais sobre o enigma da feminilidade. Pois os meninos não se atrelam, não se aprisionam da mesma maneira que algumas meninas neste tipo de relação tão bem representado em Sonata de Outono apesar de alguns, como já mencionei, passarem por algo próximo das meninas, como o de não reconhecer seu lugar no desejo da mãe, de uma mãe não-toda castrada como Charlotte. Ah... e isto não quer dizer que se trata de uma psicose, pois ela está inserida na ordem simbólica pelo Complexo de Édipo, pela Lei do Pai, pelo Complexo de Castração, que tem funções normativas e normalizadoras. São estruturantes do e no Sujeito. Elas, as Charlottes, também tem a metáfora paterna como ponto de ancoragem como todos os neuróticos ditos normais.
           Entretanto, algumas meninas - como a representante bergamaniana – sofrem como Eva e algumas, mais ainda. Não conseguem avançar na vida, além da vida prática. Conquistam a condição do trabalhar, mas não do amar. Muitas vezes, dá até a impressão que conseguem ficar aquém da condição de desejante, presas como objeto do Outro, apreendidas pela repetição. Para quê? Tentativas que em algum momento a mãe possa reconhecê-la, nomeá-la, dar-lhe consistência e inscrevê-la no registro da troca através de um significante que a represente? Ou, na fantasia, ficam esperando alguém que faça isso, que as retirem desse lugar marcado pela impossibilidade do amor? Ou, ainda, aguardam uma autorização materna para ter acesso ao gozo feminino? Permissão para amar além de trabalhar (o que não é pouca coisa) ? Ir além até dessas conquistas?
          Bem, uma mudança de posição subjetiva é a perspectiva de um dos principais fins da experiência de análise. E o sujeito desidentificado é um sujeito mais livre das limitações impostas, pela repetição, as suas escolhas de objeto, possibilitando a abertura de um leque maior de opções, uma maior “variedade de encontros”.
Como diz Colette Soler (1998), “des fins... de l'amour”.

Trailer do Filme
Link para assistir o filme completo:
https://www.youtube.com/watch?v=SGfD4fZFn1w

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