de Henrique
Senhorini
E
não estou falando isso só pelo que assisti no filme, mas sim pelo
que escuto também na clínica, com pequenas variações da fala de
Eva: “meu obstáculo maior é eu não saber quem eu sou” e também
“se alguém me amar do jeito que sou, talvez eu finalmente me
arrisque a olhar para mim mesma”. E, em alguns casos clínicos,
fico com a impressão que este tipo de relação mãe e filha é mais
que o outono bergamaniano, onde não só as folhas caem, mas também
os véus, as máscaras, os semblantes que usamos em muitos momentos
como tentativas de tamponar a falta, como protetores das nossas
próprias feridas narcísicas para não ficarem tão expostas ao
público e até de nós mesmos. Dá a impressão que o sofrimento que
vem na clínica está mais para o clima do deserto, onde os dias são
desoladamente quentes e as noites impiedosamente frias, onde a
possibilidade de alguma coisa nascer, crescer - desde uma flor até o
amor - é consideravelmente remota. Uma catástrofe! Uma devastação!
E
essas são, pela ordem, expressões utilizadas por Freud e Lacan à
se referirem a relação entre mãe e filha. Freud utiliza este termo
em 1931, no seu artigo “Sexualidade Feminina”, quando menciona a
imensa e tensa relação ambivalente de amor e ódio que marcam a
ligação da menina com sua mãe, na sua fase anterior ao Édipo, na
famosa fase pré-edipiana, de forma intensa: “A transição [da
mãe] para o objeto paterno é realizada com o auxílio das
tendências passivas, na medida em que escaparam à
catástrofe” (Freud, 1931)
Já
Lacan usa o termo devastação em “O Aturdito”, de 1973, com todo
cuidado e respeito ao pai da psicanálise, quando diz: “Por
esta razão, a elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz
da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida
(Freud dixit),
contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que
constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe, de
quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que
do pai – o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação.”
Quer
dizer que há algo da mãe que é não-todo apreendido pela lei
simbólica, pela metáfora paterna, pela castração, diferente do
todo-falocentrismo freudiano.
Freud,
até por ser de uma época mais moralista, mais vitoriana e marcada
fortemente pelo patriarcado e monoteísmo (já houve uma época do
matriarcado e de mulheres como deusas) que exercia uma influência
imperialista - e ainda exerce até hoje - sobre a sociedade, tentou,
mas não conseguiu, fazer da mulher mais um peixe na água, como os
outros peixes do oceano falocêntrico. Porém, diferentemente dos
peixes comuns, a mulher vai além do só nadar, além do gozo
fálico.
Lembremos
que há também um tipo de peixe - o peixe voador – que, além de
nadar, voa. Trata-se de um peixe que possui uma espécie de par de
asas que permite que ele consiga planar por 45 segundos acima do
nível do mar, além de nadar dentro d'água como os demais peixes do
oceano.
Assim
é a mulher com seu gozo feminino, um gozo suplementar, justamente
por estar não toda na função fálica. Isto a faz ter acesso a um
outro gozo, o gozo do Outro, o gozo suplementar. E foi essa diferença
entre gozos e não entre sexos que permitiram Lacan, com muito
esforço e com o máximo rigor teórico, ampliar para além do falo a
obra gigantesca iniciada por Freud, promovendo grandes contribuições
para a Psicanálise e avanços, através de suas construções
teóricas e clareando o enigma da feminilidade. Através de sua
matematização da Psicanálise, de sua teoria da sexuação, ele
ordenou esta, a sexuação, para todos os seres falantes e isso é
somente um dos grandes exemplos desses avanços.
Então,
a mulher, além do gozar na ordem fálica, tem um gozo suplementar
justamente por ser não-toda inscrita na metáfora paterna e não ter
o falo como significante da falta, o significante do desejo do
Outro. Por isso há uma classe de homens, mas não há uma
classe feminina. As mulheres, portanto, “são únicas e só podem
ser contadas uma a uma” (Valdivia,1997). Não há mulher
“artigo definido” para designar o universal, pois não há um
significante nela que lhe seja específico, diferente dos homens.
Será
por isso, por ser homem e consequentemente inscrito na ordem da
universalidade através do falo, que também fico meio atordoado com
esse tipo de relação que não escuto na minha clínica entre um
homem e sua mãe? Uma relação que não ata e nem desata, que não
autoriza a filha a se autorizar ser mulher e nem abandonar (não
fisicamente) sua mãe a favor de uma vida própria, uma vida com tudo
que ela já representa e pode vir a representar mais ainda? O que
será que prende essas mulheres nessa posição de refém, posição
de sequestradas de si mesmo, até de seus próprios corpos e que não
prende os homens da mesma forma? Seria a face oculta de um amor, de
um deus?
Há
pacientes, não as mulheres, que também tem mães Charllotes e
pais invisíveis como o de Eva, mas não ficam presos como
elas, como as Evas. Aliás, existem várias Charlottes
cujos filhos não encontram o lugar que gostariam de ocupar no desejo
da mãe. Temos ciência, através de Freud, que em se tratando de
histórias familiares, não há infância feliz e, apesar do
esquecimento, são histórias de desespero, principalmente em relação
à mãe, visto que primeiro objeto de amor é justamente ela ou quem
ocupa seu lugar. Porém outros objetos surgirão, o que não
significa que ficaremos livre do primeiro, pois o segundo,
terceiro..., assim por diante, “carrega as marcas do Outro
primordial concernido na primeira demanda de amor”, de acordo com
Colette Soler (2012). E quem é o Outro primordial nas nossas
vidas, assim como na vida de Eva? É a mãe. Portanto, o amor é
repetitivo, como demostrou Freud. Nas palavras de Soler, “um amor
repete-se num outro”. E todos nós, no mínimo neuróticos,
passamos por isto.
abre-se
um parênteses aqui
E
sobre os infortúnios da infância, para quem quiser ler mais a
respeito, há uma página dedica ao tema no texto freudiano “Além
do Princípio do Prazer” de 1920.
fecha...
...
Para as Chalottes da vida, os filhos são, também, praticamente invisíveis
ocupando um lugar que eles consideram de menos valia. E,
algumas vezes, essas Charlottes introduzem seus filhos na ordem
simbólica também pela via da devastação, através da rejeição,
dos insultos e até mesmo pelo silêncio, quase do mesmo modo como
assistimos por meio de Eva.
E
como uma das consequências possíveis, a consagração da “crença
inabalável na onipotência de um Outro não castrado, de uma mãe
que escapa à falta da castração” nas palavras de Marie-Hélène
Brousse (2002). Bem, sabemos que esse tipo de consagração, de
tornar sagrado, de se oferecer a divindade Mãe também acontece com
neuróticos e neuróticas, portanto não é uma exclusividade das
meninas. Porém, parece que é aí mesmo - como Freud já havia
indicado em “Feminilidade” de 1933 - nesse período
pré-edipiano da relação com a mãe, que as meninas (algumas),
diferentes dos meninos, tem um encontro com algo do Real (a queda de
um semblante pode provocar esse encontro) que as marcam como sulcos,
como cicatrizes na alma que parecem permanecer por quase toda uma
vida. Cicatrizes estas que uma experiência de análise podem não
removê-las, mas podem transformá-las em cicatrizes de cirurgias
plásticas, com aqueles pontos quase imperceptíveis.
Não
que os meninos não sejam afetados por essas Charlottes também,
porém dão a impressão que absorvem e ou lidam com as marcas de um
jeito diferente. O que os protegem? Talvez, o falo como significante,
a identidade, o traço unário. Mas, as marcas também são
diferentes nas meninas, parecem muita mais profundas, quiçá por não
ter um significante que as represente e as protejam das mães
fálicas, das mães Charlottes.
abrindo
outro parênteses
Em
seu artigo intitulado “Mãe e Filha – Da Devastação E Do
Amor”, Cristina Marcos(2011) sobre isso diz: “É
no romper do semblante que algo do gozo se evoca como um desgaste,
uma erosão que marca um território. É na queda dos semblantes que
a devastação se dá a ver revelando um gozo opaco, refratário à
ordem simbólica. Devastar é tornar deserto, despovoar, remetendo a
uma destruição completa, a um aniquilamento.” E, ainda de acordo
com autora, “a devastação provém de um defeito que tocou a
palavra".
fecha
parênteses
É...
Bem que eu poderia recorrer aos poetas como Freud recomenda, mas
suponho que de forma chistosa, para tentar saber algo mais sobre o
enigma da feminilidade. Pois os meninos não se atrelam, não se
aprisionam da mesma maneira que algumas meninas neste tipo de relação
tão bem representado em Sonata de Outono apesar de alguns, como já
mencionei, passarem por algo próximo das meninas, como o de não
reconhecer seu lugar no desejo da mãe, de uma mãe não-toda
castrada como Charlotte. Ah... e isto não quer dizer que se trata de
uma psicose, pois ela está inserida na ordem simbólica pelo
Complexo de Édipo, pela Lei do Pai, pelo Complexo de Castração,
que tem funções normativas e normalizadoras. São estruturantes do
e no Sujeito. Elas, as Charlottes, também tem a metáfora paterna
como ponto de ancoragem como todos os neuróticos ditos normais.
Entretanto,
algumas meninas - como a representante bergamaniana – sofrem como
Eva e algumas, mais ainda. Não conseguem avançar na vida, além da
vida prática. Conquistam a condição do trabalhar, mas não do
amar. Muitas vezes, dá até a impressão que conseguem ficar aquém
da condição de desejante, presas como objeto do Outro, apreendidas
pela repetição. Para quê? Tentativas que em algum momento a mãe
possa reconhecê-la, nomeá-la, dar-lhe consistência e inscrevê-la
no registro da troca através de um significante que a represente?
Ou, na fantasia, ficam esperando alguém que faça isso, que as
retirem desse lugar marcado pela impossibilidade do
amor? Ou, ainda, aguardam
uma autorização materna para ter acesso ao gozo feminino? Permissão
para amar além de trabalhar (o que não é pouca coisa) ? Ir além
até dessas conquistas?
Bem,
uma mudança de posição subjetiva é a perspectiva de um dos
principais fins da experiência de análise. E o sujeito
desidentificado é um sujeito mais livre das limitações impostas,
pela repetição, as suas escolhas de objeto, possibilitando a
abertura de um leque maior de opções, uma maior “variedade de
encontros”.
Como
diz Colette Soler (1998), “des fins... de l'amour”.
Trailer do Filme
Link para assistir o filme completo:
https://www.youtube.com/watch?v=SGfD4fZFn1w
https://www.youtube.com/watch?v=SGfD4fZFn1w
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