de Leila Oliveira
Vagas
estrelas da Ursa/ Não acreditava voltar a contemplá-las/
Cintilantes, no jardim paterno/ Nem refletir com vocês das janelas
desta morada/ Onde morei quando criança e vi findar minhas alegrias.
Versos
do poema La Ricordanze (As Lembranças) de Giácomo Leopardi, poeta
italiano, ensaísta e filósofo. ((1798-1837) inspiraram Luchino
Visconti a dar o título a este belíssimo e intenso filme.
O
filme aponta em movimento um mergulho na memória em todos os
sentidos, inclusive histórico, pois faz referência ao nazismo, á
perseguição aos judeus, daí para a tragédia grega, evocando
Electra e Oreste como, também referências ás civilizações
antigas.
Esse
duro, difícil e melancólico mergulho no passado desta família
começa em uma festa da burguesia em Genebra. Uma pequena babel.
Fala-se em francês, em inglês, alemão, italiano e etc... Um mundo
moderno e cosmopolita de um filme feito em 1965, em suntuoso preto e
branco. Sandra cuidando de tudo, como uma boa anfitriã. De repente,
seu marido Andrew, percebe, que ela ficou subitamente alheia ao que
se passava ao seu redor. Aproxima-se dela, pergunta se está tudo
bem, ela fala da música, que não gosta, ele a leva para perto do
piano. Vê-se claramente as expressões de tristeza em Sandra. Um
senhor idoso toca no piano o Preludio Coral e Fuga de Cesar Frank.
(1822-1890)
A
tragicidade da música parece conduzir a narrativa. Em vários
momentos, nos mais tensos ela é ouvida. Eu a considerei como um
personagem também.
A
festa termina, estão exaustos e preparam para a viagem do dia
seguinte.
Da
Genebra, cidade grande, para Volterra, uma pequena e milenar cidade,
parada no tempo, onde ainda há vestígios da civilização etrusca,
período pré-Império Romano, vive uma sociedade interiorana,
provinciana. O caminho é como uma mudança da cidade para o campo,
do presente para o passado.
O
casal vai de carro a Volterra,, a câmera acompanha esse trajeto do
carro por estradas, tuneis e paisagens.
Estava
sendo preparada uma homenagem ao pai de Sandra, um cientista judeu,
que morrera no campo de concentração em Auschwitz, durante a
segunda Guerra Mundial. A homenagem era uma inauguração de uma
estátua do pai, nos jardins da casa. Este pai que está sempre sendo
mencionado não aparece em nada,, até seu rosto não é mostrado,
sua estátua coberta por um pano, ele, o pai, existe apenas como
nome, função e ausência...
Andrew
e Sandra hospedam-se no palácio da família dela. Uma casa imensa,
gigantesca, onde ela nasceu e cresceu.
Sandra
entra na casa, passeia pelos cômodos, toca nos móveis, retorna ao
cenário de sua infância. Quando Fosca, a velha empregada da
família, e a única pessoa que está na casa, diz ter preparado para
ela e o marido o quarto de hóspedes. Ela prefere dormir no seu
quarto de solteira e sozinha. Trancado, o quarto da mãe permanece
intacto, como se o tempo houvesse parado, como parado está o relógio
de Eros e Psiquê que lá existe; nele, um bilhete do irmão, assim,
como quando eram crianças.
Seu
marido lê o bilhete, mostra para Sandra, ela não diz a verdade para
o marido, diz que esse bilhete estáva lá há muito tempo, mas vai
ao encontro do irmão.
No
momento em que Fosca diz que Giani, que vive em Londres, de vez em
quando, vem visitar Volterra,, Sandra nega, garante que a empregada
está enganada.
A
menção a Giani deixa Sandra assustada, quase em pânico e ao mesmo
tempo fascinada e excitada.
Sandra
faz o que Freud chamou de “A Negação”, que é um modo de tomar
conhecimento do recalcado, quando no fundo já há uma suspensão do
recalque, mas na verdade nenhuma aceitação dele” Seria então,
tomar conhecimento por suspensão, sem aceitação. (tradução de
Eduardo Vidal).”
Ela
insiste em negar seu passado, mas os desejos suprimidos, proibidos,
aparecem através do desejo incontestável de exílio de sua infância
que são capazes de ganhar a consciência. A negação como suspensão
do recalque presentifica a divisão do sujeito, neste caso Sandra
sofre, padece no campo do outro, mas sem aceitar essa sujeição. Ela
se nega como objeto, para excluir-se do campo do outro.
O
mesmo não acontece com Giani, que insiste nas lembranças e na
sedução a Sandra .demonstrando, uma estrutura talvez perversa, que
parece não residir em alguma prática incestuosa cometida na
juventude com a irmã, mas em se encapsular nesse passado e se
recusar a aceitar a nova vida de Sandra; Um passado do qual Sandra
insiste em se afastar. Giani se encontra preso neste círculo vicioso
dessas lembranças, fora das quais é incapaz de divisar um horizonte
de expectativa... Algo que não cessa de não se inscrever
Sabemos
que o que repete é o mais arcaico, e que a repetição é
característica própria da pulsão.A pulsão tende a um retorno, ao
anterior e estranho. Embora a repetição seja percebida como
estranho, é o estranho mais familiar, aquilo que de tão intimo é
tão .
Citando
Freud em ‘Além do Principio do Prazer (p52), As manifestações de
uma compulsão a repetição, que descrevemos como ocorrendo nas
primeiras atividades da vida mental infantil, bem como entre os
eventos do tratamento psicanalítico, apresentam alto grau de um
caráter pulsional e quando atuam em oposição ao princípio do
prazer, dão a aparência de alguma força “demoníaca em ação”.
E vai dar fundamento para a explicação da pulsão de morte.
Esse
movimento de repetição, de retorno quando sai do presente para o
passado se instaura, também já no início do poema, na
requisição das estrelas como interlocutoras:
O
sentimento de Giani é similar ao expresso em um verso do poema: A
Nerina! No meu peito o amor antigo reina.
A
cumplicidade entre Sandra e Giani se faz presente em uma intimidade
física, em uma dependência emocional, em um passado impronunciável
que insiste em se fazer ouvir à superfície. Os encontros entre eles
acontecem todo o tempo, sempre velados e cheios de ambiguidades.
Visconti,
talvez viu uma possibilidade de relação incestuosa entre os dois,
mas tomou o cuidado de preservar sua ambiguidade.
Quando
nos jardins da casa, aos pés da estátua do pai, Giani, encontra com
sua irmã como se encontrasse com a namorada proibida, a cena é
muito bonita. Aquele jardim mostrado em um nebuloso preto e branco,
com luzes realçando o chale branco de Sandra e o vento parecendo
querer abraçara o encontro dos dois. Esse encontro é apenas o
primeiro entre tantos, sempre escondidos mas que aos poucos vão
desvelando o mistério que envolve a família.
Uma
semelhança ao mito grego fica clara nesta cena, em que Electra ao
visitar a tumba de Agamêmnon, encontra Orestes. Sandra quer vingar a
morte do pai –da qual julga culpada a mãe e seu amante.
Uma
relação do filme com a tragédia grega, na qual Sandra seria a
Eletra, a mãe Climenestra, Giani Orestes e Gilardini, Egisto.
São aproximação e não uma transcrição da peça de Sófocles.
”Uma comodidade narrativa”, como disse o próprio Viconti.
Com
a ajuda de seu namorado na adolescência, Sandra visita a mãe,
enlouquecida, vítima de transtornos mentais. Sandra não a perdoô,
nem ao seu amante, nem as pessoas da cidade, pois acha que todos são
suspeitos de serem os delatores de seu Pai.
Andrew,
o marido de Sandra, é quem carrega os principais signos de abertura
ao futuro: por ser estrangeiro, manipula novas tecnologias –filma
Sandra em sua casa, o carro esporte–etc
Andrew
busca uma explicação lógica para tudo que é vivenciado em
Volterra, mas fica chocado com um mundo dominado pelas contradições
e paixões inexplicáveis.
Ele
procura tirar Sandra de uma ordem familiar para localizá-la em outra
posição: sair da posição de filha e irmã, para mulher e mãe.
Ela fica dividida, pede ao marido para morar em Volterra, mas ao
mesmo tempo não quer dar continuidade a certos hábitos do passado.
Quando
Giani ,revela a Sandra que deseja publicar o livro,
que conta a história da família, Sandra não aceita que o
publique, pois já há rumores a cerca da suposta relação
incestuosa que os dois mantinham quando jovens, a qual serve de tema
ao livro que ele escreveu .e que seria mais um escândalo.
Neste
momento, Giani, desesperado, dá nome ao seu livro “Vagas Estrelas
da Ursa” queima-o e em seguida, faz uma passagem ao ato. Ele sai de
cena, como atesta a própria maneira de morrer. Ele se suicida,
tomando altas doses de remédio, um salto no vazio.
Então
vemos que a destruição do livro, é também uma destruição de si
mesmo, que culmina com o fim do filme.
Um
filme sobre amor e morte, cheio de mistérios e busca da verdade, de
destruição e mitos, de encontros e separações, onde ninguém saiu
ileso.
trailer do filme
Leila de Oliveira é psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano- BH /MG
3 comentários:
amor e morte... mistérios!
gostei muito de encontrar seu blog, coloquei-o entre os favoritos para tê-lo em meus endereços, e assim, mais fácil de abrir. Muito obrigada, você é muito generoso.
Maravilhoso e dissecante estudo sobre As vagas estrela da Ursa, de Visconti, feito por Leila Oliveira. Um dos mais belos filmes já vistos por mim, onde o genial Visconti fere sem se aprofundar no cerne da dor, deixando ao leitor o benefício da escolha. Assim o fez em Morte em Veneza, e na discreta covardia de Rocco, e também na fragilidade do Conde, em O Leopardo, de enfrentar a juventude perdida. Bravos ao belo comentário da doutora Leila.
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