por Arnaldo Domínguez
“Atraso.
Hoje eu acordei tão ontem
que me esqueci. Um amanhã já passou por
aqui”
– Samuel Malentacchi
Os
organizadores da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo gentilmente me
convidaram para falar sobre o tema destacado no título deste artigo.
Eu possuo mais de um atributo que, supostamente, me autorizaria a
tratar do assunto em questão. Fui médico geriatra do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(FMUSP) durante boa parte da década de 1980, em cujo entardecer,
iniciei estudos de Gerontologia Social no Instituto Sedes Sapientiae
e, logo a seguir, Sexualidade Humana no Instituto H. Ellis. Ao mesmo
tempo em que ingressava na formação informal em Psicanálise,
iniciava minha análise pessoal e participava da militância do
Movimento GL de São Paulo, por intermédio de nosso Projeto Etcétera
e Tal, debatendo ativamente em favor daquela sigla que ofereceria
mais visibilidade às lésbicas em vez do anterior Movimento
Brasileiro de Homossexuais, tão “masculino”.
Um
bom lugar para início de conversa.
Movido
por esses estímulos, fui à internet em busca de trabalhos teóricos
a respeito do assunto para poder me atualizar dentro do meu escasso
tempo “disponível.com”. E me surpreendi ao constatar que a
maioria desses estudos trata de temas relacionados à saúde,
contágio do HIV na terceira idade, idosos portugueses que acabam
sendo separados dos parceiros ou das parceiras de longa data quando
necessitam do amparo institucional e se deparam com locais de
discurso oficial homofóbico e heterossexista. Idosos brasileiros que
nem sequer podem contar com essas instituições preconceituosas e,
quando dispõem da possibilidade de consultar um médico, não
revelam sua “orientação sexual”. Dados ainda semelhantes aos de
uma pesquisa que realizei entre 1990 e 1992 e que foi, na ocasião,
amplamente difundida em revistas científicas e outras destinadas ao
público em geral1.
Um
dado significativo de minha pesquisa era que 70% dos médicos
clínicos consideravam a homobissexualidade uma doença, e 50% não
perguntavam nada sobre a sexualidade dos pacientes nas consultas. Os
médicos não perguntam e os pacientes não falam. Silêncio
promissor. “Na escuridão, surge o vaga-lume; NO SILÊNCIO, O
GRILO”, escreveu Júlio Paulo Calvo Marcondes, o Faquir Loquaz, em
publicação póstuma realizada para homenageá-lo, dentre outros,
por sua namorada que foi minha analisante. Ela me presenteou com esse
livro tão encantador.
E
o grilo é: tudo indica que ainda persiste um panorama desalentador
para todos/as os/as velhos/as, independentemente da modalidade de
investimento libidinal de cada um deles. Provavelmente, agravada nos
(ditos) homossexuais, pois, se na atualidade são idosos, certamente,
pertencem a uma geração muito mais oprimida pela intolerância
social e familiar, como revelam os entrevistados por Naélia Forato e
Romulo Osthues, jornalistas que foram a Buenos Aires coletar
depoimentos de casais homoafetivos cujos interesses rondavam a
igualdade pelo direito do casamento civil2.
Cidadãos de primeira, agora – finalmente –, amparados pela lei
que os autorizou a se casar depois de uma parceria de mais de 40
anos.
Em
contrapartida, as agências de turismo contemporâneas oferecem
roteiros gays de maneira pouco discriminatória ou até claramente
destinada aos “coroas”. Os mais velhos, quando conseguem uma boa
colocação profissional, ganham mais e gastam menos com despesas
escolares, médicas em planos de saúde para filhos etc.,
representando uma boa fatia para o “Deus Mercado” poder morder.
Então,
nesse recorte que ora inicio, já tenho como separar dois aspectos da
sexualidade que podemos destacar: o que a nega, considerando que
velhice e sexualidade são critérios antagônicos; e o que a
valoriza, ao apostar nesse público consumidor, que dispõe de bons
recursos. Como disse doutor Casimiro, um obstetra de 94 anos, na
ocasião em que o convidei para falar sobre “sexualidade na
terceira idade” – se eu não me equivoco, em 1989, no Sedes
Sapientiae: “Para se manter sexualmente ativo na minha idade, é
preciso dispor de uma boa aposentadoria!”. Todos riram!
Todavia,
antes de avançar mais nesse raciocínio, vou lhes apresentar uma
rápida noção do que é sexualidade em Psicanálise. E, para
elaborar tal critério, tenho de ir aos primórdios dessa disciplina.
Viagem rápida.
Envelhecer
leva muito tempo, contudo, geralmente, quando percebemos o tempo, que
não para, esse já passou enquanto nos distraíamos em busca do
objeto perdido. Freud concluiu que o objeto está perdido para sempre
quando abordava o discurso da pulsão nos “Três Ensaios sobre a
Teoria da Sexualidade”, publicados em 1905. Sendo sexual por
excelência a pulsão, nisso consiste a diferença fundamental com
respeito ao instinto. A pulsão não ter objeto significa que
qualquer coisa pode ocupar o lugar de “causa do desejo” e, frente
à impossibilidade da “relação sexual”, no sentido de
incompletude narcísica, representar o objeto perdido.
Com
essa descoberta fantástica, Freud elevou à condição de objeto
digno da designação de “erógeno” qualquer segmento do corpo,
qualquer peculiaridade que pode ser transformada em uma significação
fálica: seios, bunda, pênis, beleza, juventude etc. Mas, também,
podem uma ruga, uma estria, uma calvície, uma voz etc., desde o
real, desempenhar essa função imaginária e simbólica. Como o
objeto do desejo é metonímico3
e empurra a pulsão a exercitar múltiplos deslocamentos,
encontraríamos, aqui, uma razão para a poligamia (denominada
promiscuidade em muitos contextos moralistas), para a compulsão
sexual, para o consumo de produtos nos sex shops ou nos mercados do
sexo.
Por
outro lado, diferentemente do instinto que está atrelado sempre aos
ciclos circadianos4
da biologia e, portanto, alienado a uma sobredeterminação
bioquímica pré-datada, a pulsão é atemporal e, em consequência,
não envelhece a despeito do corpo. Eis o trágico da condição
sexuada da humanidade.
Um
freio simbólico a esse eterno deslocamento é o amor. Outro,
imaginário e da ordem da inibição, é o isolamento ou o
adoecimento que aparecem como despedida no famoso tango: “Adiós,
muchachos, compañeros de mi vida, (...) mi cuerpo enfermo no resiste
más”. O amor, quando é por outro, implica em uma renúncia ao
gozo imposto pela pulsão. Se, para Freud, a pulsão era uma
mitologia que funcionava como intermédio entre o biológico e o
psíquico, para Lacan, trata-se de um dos conceitos fundamentais da
Psicanálise destinado a intermediar a articulação entre o corpo e
o significante. Portanto, também, podemos avançar desde o
narcisismo do amor rumo à renuncia desse gozo autoerótico e
privilegiar na estrutura um lugar para a alteridade. Para o “hétero
do amor”, algo tão difícil de imaginar.
Um
dos fins principais da experiência psicanalítica consiste na
perspectiva de mudança na posição subjetiva, digamos, naquilo que
da gramática estávamos atrelados às bordas da pulsão. Freud
apresentou-a ativa, passiva e/ou reflexiva. Por exemplo, do olhar:
ver, ser visto, ver-se. Do sadismo oral, protótipo do amor materno:
comer, ser comido, comer-se. Assim, estabelece-se no fantasma do
sujeito uma posição subjetiva que aprisiona. Mal visto, mal
comido, para pensarmos pela via do pior, que é o mais comum na
clínica. Ou, então, como se diz popularmente, “fodido e mal
pago”, “cagado” etc. Resulta muito difícil e trabalhoso
modificar essa sobredeterminação – psíquica no caso. Tanto
quanto sua oposição ativa e cínica: “Cagando e andando”;
“Perco o amigo, mas não perco a piada”; “apertei a tecla
‘foda-se’”.
A
grande maioria dos falantes quer parar de sofrer (como prometem os
religiosos), mas não topa abrir mão dessa velha e conhecida prisão
gramatical na qual goza. Digamos que são pouquíssimos os fala-seres
(como define Lacan, os “parletres”) que podem tornar-se “hétero”
– permita-me brincar com o sentido desse significante, sem
pretender ofender a nenhuma militância por direitos humanos. Se
hétero indica que haverá um lugar para o outro sexo (a sexualidade
do outro com todos esses meandros) e, assim, na parceria, sejamos
(por fim) dois, será preciso que haja uma renúncia em buscar
“alguém que caiba no meu sonho”, como cantava Cazuza. Eis aqui a
única perspectiva de que o amor seja por outro e de que se torne
possível o encontro amoroso que rompa com a solidão humana cada vez
que ele (o encontro) se produza.
A
grande maioria dos humanos – pertençam à categoria sociológica
que pertencerem – chega à velhice sem ter sequer se questionado a
tal respeito. Nada como acompanhar os (não) submetidos ao público
através das Comissões da Verdade para compreender, perfeitamente,
que os canalhas também envelhecem. Imutáveis.
Pimenta
para os olhos
“Yo
soy como el chile verde, llorona, picante, pero sabroso...”
–
Trecho
da música mexicana “La Llorona”.
Pesquisando
pela internet descobri:
-
A pesquisa de Júlio Assis Simões, “Homossexualidade masculina e
curso de vida: pensando idades e identidades sexuais”, do
Departamento de Antropologia da USP.
-
Andrea Moraes Alves, em “Envelhecimento, trajetórias e
homossexualidade feminina”, pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
-
Siqueira, M. S., em “Arrasando horrores: uma etnografia das
memórias, formas de sociabilidade e itinerários urbanos de
travestis das antigas”, tese de doutorado em Antropologia Social,
Universidade Federal de Santa Catarina. Uma de suas entrevistadas,
Sarita, conta que, pela Cinelândia “andávamos de uma ponta a
outra, desfilando para lá e para cá. Foi quando eu conheci todo
mundo. Fui para a Cinelândia, conheci a Rogéria, a Valéria, a
Eloína e a Veruska, aquela turma da antiga, mesmo. Foi ali que eu me
achei, ver que aquilo ali era o meu ambiente”.
-
O curta-metragem “Depois de Tudo” (2008), dirigido por Rafael
Saar e que tem Nildo Parente e Ney Matogrosso como intérpretes dos
personagens principais. Em síntese, é apresentada uma relação
(pelo visto, longa) de dois homens idosos que se encontram para um
jantar trivial, para assistir ao mesmo filme, “Quando voam as
cegonhas”, pela décima vez, para transar, calmamente, como
corresponde a dois velhos e, depois, separar-se mansamente sem saber
quando se reencontrarão. O velho e conhecido “me liga, tá?”,
que remete ao “olá, como vai?” do “Sinal Fechado”, de Chico
Buarque. Ou que remete aos “Diálogos sobre os prazeres do sexo”,
obra em que o filósofo Michel Foucalt afirma que o melhor momento do
amor (homoerótico) é quando o amante vai-se embora no táxi.
O
filme é bonito, tranquilo. Apresenta sem pudor os corpos
envelhecidos de dois amantes masculinos. Mas também apresenta uma
“comidinha caseira”, insossa, que origina a pergunta: – O que
falta?
– Pimenta!
Responde Ney, depois de provar sem se queimar.
– Tá
bom. Vai tomar seu banho!
E
eu me recordei, mais uma vez, das espanholas de minha infância que
haviam ido tão longe de sua terra natal, negociadas entre os pais e
os viúvos galegos da Patagônia Argentina. Contou-me uma delas, que,
desde Buenos Aires, ao descer do navio, telefonavam para as amigas
que já estavam lá e perguntavam se o candidato a marido (por
procuração) tinha “sal e pimenta”. O que significava,
decodificando, “posses econômicas e potência sexual”. Caso não
os tivesse, era melhor ficar na capital como domésticas, e até nos
lupanares (do amor, onde o coração é o principal proxeneta).
Que
falte pimenta, como sugerido nesse filme, talvez seja revelador do
fim de “A idade viril”, como escreveu Michel Leiris, dedicado a
Georges Bataille. (Ed. Cosac & Naify):
“A
seguir, a ideia de morte, na qual mergulhei pouco a pouco, pensando
no declínio inevitável daquela mulher alguns anos mais velha que
eu. Nunca, antes de ter perdido a virgindade, eu havia me preocupado
a tal ponto com o envelhecimento. Essa obsessão me veio a propósito
do ato erótico que, ao cabo de certo tempo, me pareceu uma derrisão,
pensando na feiura que nossos corpos, capazes até então de serem
vistos sem aversão, acabariam por adquirir. Cheguei assim a uma
espécie de estado místico, condenando – em nome da morte – o
amor físico em geral, sem ousar confessar-me claramente que era de
um amor particular que me cansava. Dessa época datam minhas
primeiras aspirações à poesia, que eu via, propriamente falando,
como um refúgio, um meio de atingir o eterno escapando à velhice, e
de recuperar, ao mesmo tempo, um domínio fechado e exclusivamente
meu, no qual minha parceira não teria como se imiscuir”.
Para
o meu gosto, e aqui vai uma provocação, essas são revelações
absolutamente masculinas, que não permitem que a mulher (o feminino)
venha a se imiscuir, a não ser por meio da poesia. Assim sendo, a
pimenta que falta é a da irrupção da feminilidade na relação. Da
falta em si que abra perspectivas para um universo da criação.
Que
uma relação finalize nesse “acordo de cavalheiros”, sem nunca
uma espelunca, nunca mais blues, nunca mais romance, nunca mais drink
no dancing, nunca mais feliz, me parece absolutamente desolador.
Uma espécie de “estamos conversados”, “passar bem”, sem o
grand finale de um desencontro fundamental – sobre o amor
que se move, escreveu a poeta Hilda Hilst. Da dimensão da
feminilidade que faz transitar o transitório da nossa condição
humana.
Por
fim
“MEU
QUERIDO E AMADO JOVEM ADOLESCENTE, não liga não. Sempre está tarde
demais, sempre é hora de ir embora, mas eu – já são horas de
acabar de ser jovem”
– Júlio
Paulo Calvo Marcondes, em Faquir Loquaz
[Uma
dedicação especial à] todos/as aqueles/as que colaboraram para a
realização oficial do evento de 1995, quando, na Praça Roosevelt,
em Sampa, nós colocamos “triângulos rosas” nos braços dos que
por ali passavam. O sentido era muito sério, mas, por fim, o povo
ria. Transformávamos em comédia a tragédia da vida cotidiana de
tantos/as – não – falantes do que, quase que até então, nem
ousavam dizer seu nome: o amor. Esse célebre informal que,
insistentemente, é aprisionado em campos de concentração.
Afinal,
será o amor, o trabalho ou a velhice que nos farão livres?
Como
disse Rita Lee, “livres outra vez no xadrez”. Shalalá-shalalá..
Itaquaciara, 12 de maio de 2013.
"Depois de Tudo” (2008), de Rafael Saar - com Nildo Parente e Ney Matogrosso
ARNALDO DOMÍNGUEZ é Psicanalista e Professor do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, fundador do PROJETO ETCÉTERA E TAL... Psicanálise e Sociedade, conselheiro da Biblioteca Popular de Itaquaciara D.Nélida
4 comentários:
E por fim amar, continua tão difícil quanto antes? Oxalá nossos ímpetos nos digam que não...
Obrigado ao Arnaldo Domínguez pelo texto que incluiu o "Depois de tudo". Maravilhosa a reflexão sobre a pimenta! Acho que inconscientemente era isso :)
O amor tem que ser por outro, mas isso é mesmo difícil!
Rafael Saar, que ótimo que vc gostou. Eu também adorei teu trabalho. Grandes abraços!
Muito bom
trabalho. Uma realidade passada de forma tão leve. Sonia Pacheco
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