No
contexto dos anos 60 se definiu política e culturalmente o
redimensionamento das muitas identidades. Visível em movimentos
sociopolíticoculturais de contestação, a ruptura com os cânones
hegemônicos ocidentais se marcou especialmente pelo episódio
estudantil de maio de 1968 na França, as manifestações da
contracultura em Woodstock nos Estados Unidos, as ditaduras na
América do sul e a Revolução Tranquila de Quebec/ Canadá.
Ao
testemunhar divisões e contradições internas que identificam
particularmente o ethos quebequense, a Revolução Tranquila abalou
instituições e expressou mudanças em estruturas éticas, culturais
e ideológicas. Na seara em que ela se fez, a identificação
etnocultural do cidadão quebequense como canadense-francês se
destacou como uma das mais importantes questões do debate político
em Quebec. O ato de reivindicação da cidadania quebequense tinha o
estatuto de proposta ideológica e referendava a assunção de novas
práticas de engendramento desenvolvidas principalmente ao longo do
período em que se rompiam representações culturais
neocolonialistas da ex-metrópole francesa, do Canadá anglófono e
dos Estados Unidos, a nova metrópole pós-colonial.
A
Revolução Tranquila se constituiu como o mito fundador de uma nova
sociedade quebequense.
A
crítica à cultura dominante e a leitura das formações discursivas
culturais e sociais dos anos 1960 e 1970 em Quebec têm uma de suas
expressões mais autênticas no escritor Réjean Ducharme. Definindo
sua vontade política no sentido de uma ruptura com os modelos de
organização política e cultural impostos pelos paradigmas
neoliberais, Ducharme, em seus romances, critica e rejeita todas as
formas de dominação, controle social, violência, alienação,
servidão, escravidão e manipulações ideológicas que subsistem na
sociedade contemporânea ocidental como produto do capitalismo
mercantilista global.
Em
um de seus romances, Le
nez qui voque,
elaborado durante as profundas rupturas com as formas estruturais de
poder, Ducharme, ao articular identidade e extraterritorialidade na
leitura da prática crescente de uma hibridização intercultural
definida pelo nomadismo de imaginários diversos e complexos em
trânsito em uma escrita também migrante, dá visibilidade a
especificidades culturais de Quebec.
Considera-se
a recuperação dos danos da fragmentação cultural e a
revitalização do modelo original como um produto híbrido,
resultante de uma pluralidade de representações simultâneas que
reivindicam o direito a um novo estatuto de verdade.
Autor
de inúmeros romances, peças de teatro, roteiros de filmes e
composições musicais, Ducharme é também artista plástico, cujas
montagens apresentam a mesma prática do assemblage que identifica
seus romances. Suas peças, assinadas sob o pseudônimo de Roch
Plante
(Semeador de Pedras), são elaboradas com material sucateado e
reciclado em composições complexas, e inscrevem no estatuto
diferenciado do objeto artístico a ressignificação de conceitos e
construções culturais esvaziados e imobilizados em paradigmas
ideológicos hegemônicos. Pode-se ler ainda, em uma
intertextualidade semiótica, esse jogo de traduções que
referenciam a pluralidade da identidade artística de Ducharme na
figura cinematográfica do dompteur de vers em Léolo, de Jean Claude
Lauzon.
Em
Léolo, o romance L’Avalée
des avalés (Os devorados pelos devoradores) aparece como elemento
Reunião e reciclagem de diferentes peças de sucata que resultam na
montagem de novos objetos com múltiplas significações.
Denotativamente, Dompter
de Vers
é pessoa que se apropria de resíduos ou construtos culturais,
conceitos, textos, composições, objetos artísticos preexistentes e
subverte seu sentido, ao reciclar o material apropriado.
Doma-dor
de versos; o que recicla, repara, recupera versos e sucata; bricoleur
de versos e de sucata. A polissemia da palavra vers
(poesia, versos, vermes, insetos, verdades, versões...) dá ao
sintagma um sentido ambíguo explorado pelo autor no jogo da
narrativa.
No
filme, em cujo roteiro o diretor Jean-Claude Lauzon reduplica a
reciclagem metafórica das narrativas de Ducharme, Léolo se aplica
no exercício de uma escrita jamais concluída de versos que ele joga
no lixo. Lauzon introduz na trama da narrativa cinematográfica a
figura do dompteur de vers, que reproduz as práticas de Roch Plante
em sua errância noturna pelas ruelas dos subúrbios de Montreal. O
dompteur, dissimulado na figura de um catador de papéis, recolhe
também os versos de Léolo, que, descobertos no anonimato do lixo,
são submetidos à reciclagem do bricoleur, que os recompõe e
re-identifica na narrativa afinal construída. Ao ficcionalizar a
realidade cotidiana, Roch Plante atua ainda como bricoleur na
reciclagem de material trash que perdeu sua funcionalidade junto à
sociedade consumista submissa às ideologias do ter e à acumulação
mercantilista.
A
prática de recolher, nas calçadas, sarjetas e latas de lixo, cacos,
pedaços e restos de objetos danificados ou simplesmente rejeitados,
como braços de bonecas, super-heróis de brinquedo e guimbas de
cigarro, levou-o algumas vezes a ser identificado
como
mendigo. A ambivalência do sintagma dompteur de vers
sugere
a aproximação metafórica entre o personagem do filme de Lauzon e o
artista plástico Roch
Plante.
Além da sucata, no saco do catador Roch Plante, encontram-se pedaços
de papel de todo o tipo, como textos de revistas e jornais rasgados,
bilhetes de teatro e cinema. Como o dompteur, ele os emenda e cola,
realizando no bricolage de seus assemblages plásticos a prática
narrativa do escritor Ducharme, outro duplo que ele vitaliza,
negando-o. Uma das práticas de Roch
Plante
é a de cobrir a base de concreto de alguns de seus assemblages, como
Skin, com jornais que veiculam comentários e artigos sobre sua obra,
ressignificando a crítica em suas criações plásticas, ou usando
da ironia no exercício paródico, ao lhe dar a função de embrulhar
o lixo artístico.
NA
ÚLTIMA FRASE DO FILME, LÉOLO DECLARA: “E EU REPOUSEI MINHA CABEÇA
ENTRE DUAS PALAVRAS NO ‘L’AVALÉE
DES AVALÉS’.
O
FILME COMEÇA COM A NARRATIVA DE LÉOLO SOBRE O QUE DIZEM SER SEU
NOME, SUA NACIONALIDADE, SUA FILIAÇÃO...OU SEJA, “ELE”. ...
DIANTE DO QUE DECLARA: “PORQUE EU SONHO, EU NÃO O
SOU”
“PORQUE
EU SONHO, EU NÃO O
SOU” É TAMBÉM A FRASE DE ABERTURA DO LIVRO DE DUCHARME
“L’AVALÉE DES AVALÉS”
ONDE, POR FIM, LÉOLO REPOUSA ENTRE DUAS PALAVRAS;
CORPO
E PALAVRA: CONDIÇÃO PARA A EQUAÇÃO
- LÉOLO TEM UM SONHO/DELÍRIO SOBRE SUA ORIGEM:
UM
ESPERMA, ESTRANGEIRO SEM FACE, FECUNDA SUA MÃE POR VIA DE UM TOMATE
“CONTAMINADO”.
- DIZ ELE: “DEPOIS DESTE SONHO, LÉOLO LOZONE”
- A TENTATIVA DE INSCRIÇÃO DE UM NOME PRÓPRIO, QUE LHE RENDA UMLUGAR/CONTORNO/DELIMITAÇÃO;
- LAUZON, LEO LOZON, LÉOLO LOZON, LÉOLO LOZONE ( Jean Claude Lauzon);
- ONDE LÉOLO BUSCOU AS PALAVRAS PARA DAR-LHE CONTORNO, POSSIBILIDADE DE REPRESENTAÇÃO DE SUA CONDIÇÃO SEXUADA E MORTAL: O LIVRO
- ONDE LÉOLO TENTOU VIVER: NAS PALAVRAS
- ONDE LÉOLO CAPITULOU: JÁ SABEMOS. Entre duas palavras de “l’avalée des avalés”...
O
CATADOR DE VERSOS: PERSONAGEM EMBLEMÉTICO, QUE CATAVA-DOR-DE- VERSOS
E, MAIS EMBLEMÁTICO AINDA SE PENSARMOS EM DUCHARME, AUTOR DO LIVRO
E, PORTANTO, DA FRASE “PORQUE EU SONHO, EU NÃO O SOU;
A
FIGURA DO DOMPTEUR DES VERS: COMO DITO, SÍMILE DO PSEUDÔNIMO DE
DUCHARME, ROCH PLANTE,
ARTISTA DA BRICOLAGEM, DO “ASSEMBLAGE”.
ROCH
PLANTE (SEMEADOR DE PEDRAS?) É
AQUELE QUE PROCURA INSCREVER UM ETHOS
OUTSIDER ; BRICOLEUR, COLHE MATERIAIS
DESCARTADOS NAS CIDADES PARA REALIZAR SUA OBRA DE ASSEMBLAGE,
DE CATA-DOR;
O
termo assemblage
é
incorporado às artes em 1953, para fazer referência a trabalhos
que "vão além das colagens".
O princípio que orienta a feitura de assemblages
é a "estética da acumulação": todo e qualquer tipo de
material pode ser incorporado à obra de arte. O trabalho
artístico visa romper definitivamente as fronteiras entre arte
e vida cotidiana; ruptura já ensaiada pelo dadaísmo.
Menos que síntese, trata-se de justaposição de elementos, em
que é possível identificar cada peça no interior do conjunto mais
amplo. Nas artes visuais, a prática de articulação de materiais
diversos numa só obra leva a esse procedimento técnico específico,
que se incorpora à arte do século XX com o cubismo
de Pablo Picasso (1881 - 1973). Ao abrigar no espaço do quadro
elementos retirados da realidade - pedaços de jornal, papéis de
todo tipo, tecidos, madeiras, objetos etc. -, a colagem liberta o
artista de certas limitações da superfície.
- DA MESMA FORMA, O CATA-DOR DE VERSOS/VERMES DO FILME DE LAUZON, PASSA RECOLHENDO A DOR DE TODOS QUE TENTAM DESCARTÁ-LA...
- LÉOLO DESCARTAVA SUA ESCRITA. NUNCA TINHA VISTO ALGUÉM LER OU ESCREVER EM SUA CASA;
- O LIVRO DE DUCHARME É O ÚNICO LIVRO QUE LHE CHEGA VIA O DOMPTER;
- O TEXTO DE DUCHARME SE MISTURA AO DA NARRATIVA DE DIÁRIO DE LÉOLO/LAUZON NO MELHOR ESTILO DE ASSEMBLAGE;
- O livro de DUCHARME, artista plástico e escritor conterrâneo de Jean Claude Lauzon, levado pelo DOMA-DOR DE VERSOS à casa de Léolo, imiscuido lá como calço de mesa da cozinha DA MÃE de Léolo, era lido e relido por Léolo, com muita insistência,.
- No filme onde podemos reconhecer o texto de DUCHARME e várias passagens que me parecem bem significativas:
- O primeiro já mencionado, e quase elemento central na construção do ritmo do filme, é a frase:
“Porque
eu sonho, eu não o
sou/estou”.
Já
disse, esta frase se encontra na ABERTURA do livro de Ducharme.
- Num outro trecho no filme,vou sublinhar aquele colocado como declaração de Léolo sobre sua relação com os livros. Diz ele: “Não tento lembrar as coisas que ocorrem nos livros.O único que peço a um livro é que me inspire energia e valor. Que me diga que há mais vida da que posso abarcar. Que me recorde a urgência de agir”.
- Léolo declara ter decidido “tomar o caminho mais curto”, “ que voltar dos sonhos ao cotidiano era brutal” para ele;
- Léolo tentava fazer valer a dica do CATA-DOR/CATA-DOR DE VERSOS de que havia um segredo nas palavras colocadas juntas... mas colocou seu próprio corpo neste espaço, “ repousou a cabeça entre duas palavras do L´avalée des avalés...;
Ainda
sob a pena de Ducharme no filme de Lauzon, há um parágrafo grifado
no exemplar do livro em poder de Léolo, que é mostrado em close.
Este é indicado por Léolo/Lauzon como o caminho do início de sua
leitura, por onde ele começará a ler este livro. É a partir da
narrativa deste trecho de Ducharme que, declarando sua decisão de
ler repetidamente o que fôra sublinhado por outro, mesmo não
entendendo o que quer dizer, que Léolo começa a escrever sobre sua
vida/história, tornando-se ele próprio escritor.
- A RELAÇÃO DE LÉOLO COM O LIVRO SE DEU, SEGUNDO ELE PRÓPRIO, APESAR DE NÃO HAVER FIGURAS, APENAS LETRAS APÓS LETRAS... MAS HAVIA UM OUTRO OBJETO COLOCADO EM CENA DE ASSEMBLAGE, RETIRADO DO LIXO,UM OUTRO TIPO DE REGISTRO DE SONS, QUEBRADO E GUARDADO, EMBORA NÃO PUDESSE SER ESCUTADO, E JUSTAMENTE PELA IMAGEM QUE EXIBIA: O DISCO/LP DE JACQUES BRIEL;
- MOMENTOS ANTES DE LÉOLO CAPITULAR/SE RENDER AO “ PORQUE EU NÃO SONHO, EU SOU” , A “DESCANSAR SUA CABEÇA ENTRE DUAS PALAVRAS DE ‘ l´AVALÉE DES AVALÉS’ ” , JUNTAR-SE À LINHAGEM DA LOUCURA FAMILIAR, SEGUNDO ELE FUNDADA POR SEU AVÔ, CAI DO LIVRO O PEDAÇO DE VINIL QUE COMPLETARIA A CIRCUNFERÊNCIA DO LP DE BRIEL. LÉOLO O COLA, COMPLETA-O.
“A
palavra Canadá teria nascido dos espanhóis aca e nada que
significam: nada aqui [...].
A
busca do significado etimológico de Canadá – ACA NADA-,leva
Ducharme a usar um de seus recursos narrativos produtores de
paródias, o humor cáustico que desconstroi as formações
estratificadas e indica pistas para a reciclagem A PARTIR DOS RESTOS.
Trata-se da necessidade latente de se reinventar em um outro país, o
da metaficção artística, e de reinvenção do país próprio.
Para
a pergunta “ o que se espera de uma análise?”
Minha
resposta é: a provocação do porvir de um CATA-DOR / DOMA-DOR de
VERSOS ( ou diversos) , SEMEADOR DE PEDRAS advertido e decidido...
Karin de Paula é Psicanalista, Mestre e Doutora pela PUC-SP, Pós-doutoranda na Sorbonne Paris Diderot (Paris 7), professora na universidade e em curso de formação de psicanalistas. Membro fundadora do umLugar – Psicanálise e Transmissão. Autora dos livros “$em – sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise”, Ed. Casa do Psicólogo e “Do espírito da coisa - um cálculo de graça”, Ed. Escuta.
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