Certamente,
um belo filme de Buñuel, que revela toda a sua relação com o
movimento surrealista. O movimento formado por artistas que propunham
uma maneira diferente de ver o mundo, uma vanguarda artística que
transcende a arte. Uma ampliação da consciência, uma liberdade de
expressão, sem exigência da lógica e da razão, assim, como o
mundo dos sonhos.
No sonho, sabemos, é a satisfação de desejo embora o desejo só se
realiza e não poucas vezes, ás custas do próprio eu. Ele irrompe,
chega sem avisar, nos surpreende e entra sem ser convidado. As
formações do inconsciente, como os atos falhos, sonhos, lapsos,
sintomas, são paradigmas freudianos que nos ensinam sobre o caráter
essencial do desejo. Mas que desejo é esse, de Mathieu e Conchita?
Buñuel
constrói e desconstrói, na ficção, um dos mecanismos mais caros
da teoria de Freud. Vamos então, á nossa viagem de trem para
Sevilha construindo as cenas.
No
trem, um comportamento inesperado do protagonista, chama a atenção
de seus amigos de viagem, e ele procura explica-lo, narrando os
motivos que o levaram a tal ato, aparentemente, sem a menor censura.
Mathieu,
um homem de meia idade, burguês e solitário, se apaixona
desesperadamente por Conchita, uma jovem de 18 anos, meiga, doce,
insolente e virgem.
E
então se faz aparecer um jogo erótico, de pura sedução, onde pode
se perguntar: o que quer a mulher? Qual o desejo de Conchita? E
Mathieu, o que espera da mulher? Ele espera que ela lhe dê o que lhe
pede, o objeto sexual.
Ele
fica siderado por essa mulher, de um certo desejo, desejo do ato
sexual.
Mas,
Conchita oferece a Mathieu, apenas partes de seu corpo para que ele
goze .”Assim, como a histérica, quer deixar insatisfeito o gozo
do outro, quer um “mais-ser”, ser alguma coisa para o outro, não
um objeto de gozo, mas um objeto precioso que vá sustentar o desejo
e o amor. (Colette Soler)
“Se
eu lhe der o que me pede, não vai me querer mais”. Ela quer o
amor.
Freud
em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, diz que: “O que se
coloca em lugar do objeto sexual é alguma parte do corpo (tal como o
pé, ou os cabelos) que é, em geral, muito inapropriada para
finalidades sexuais”. E, Conchita oferece a Mathieu, apenas partes
de seu corpo para que ele goze.
Como
explicar a atração entre os sexos se existe apenas as pulsões
parciais?
Bem,
sabemos que as pulsões parciais em si, ignoram a diferença sexual.
A orientação do desejo sexuado, é que é passível de ser
explicado.
Colette
Soler, em seu livro, “O que Lacan dizia das mulheres” pergunta:
Como explicar a relação sexual? O que é uma norma heterossexual?
Se o macho não basta para constituir o homem, nem a fêmea, a
mulher?
Podemos
tentar responder então, a partir do Édipo e da descoberta do
inconsciente.
“Freud
descobriu que, no inconsciente, a diferença anatômica é
transformada em significante : ter o falo. E a partir do Édipo,
responde a esta pergunta: como pode um homem amar sexualmente uma
mulher? Através da renuncia ao objeto primordial, a mãe, e ao gozo
referido a ela e através da castração do gozo. Já do lado
feminino Freud reconheceu o fracasso de suas tentativas de explicar e
daí surgiu o seu famoso: ”que quer a mulher? E conclui que o édipo
produz o homem, não produz a mulher”.
Conchita
nos demonstra em vários momentos, essa posição de ter e não ter o
falo. Ela oscila entre a “Mulher Pobre” que é “aquela que é
desprovida de todos os objetos da serie fálica”, mas rica de
outros bens, (boa filha, meiga, virgem) que como diz Lacan: nada pede
á fantasia do homem. Ela não está preocupada em satisfazer as
fantasias, o desejo de Mathieu.
Conchita pobre de amor, mas rica de outra coisa que é o gozo. E
entre a “mulher abstinente”, que é aquela mulher que renuncia a
sexualidade, permanecendo “virgem”, e a relação com o gozo do
outro, fica indeterminada.
Ela
quer apenas gozar na sedução. Serei sua amante. - Quando? Hoje?
-Não, depois de amanhã. Em outro momento, ele pede:- Beije-me, ela
não permite, diz:- depois. E adia mais uma vez, a se entregar como
objeto causa de um desejo.
A
quem são endereçadas as perguntas de Mathieu, então? Podemos dizer
que á fantasia, á imagem e ao objeto
Conchita
não fez a travessia para o feminino, ela recusa a verificar-se numa
posição subjetiva da castração. Ser “castrada”, é, de onde
parte a feminilidade da mulher que é aquela cuja falta fálica a
incita a voltar para o amor de um homem. Primeiro o pai, depois o
marido..
“Ao
se descobrir privada do pênis, a menina torna-se mulher quando
espera o falo- ou seja, o pênis simbolizado daquele que o tem”
C.Soler.
Mas
deixa seu rastro, embora, não quer saber de nada disso. E Mathieu
sempre a encontra, obsessivamente, e ela, sempre recua frente ao seu
pedido.
Bem,
se olharmos o que acontece nas cenas em que Conchita faz jogo da
separação/retorno, presença/ausência, podemos pensar em Freud, em
Além do Principio do Prazer, onde aponta a brincadeira do fort-da.
Desenvolvida
por uma criança, que fazia desaparecer e aparecer o objeto, um
brinquedo, que significava o “ trazer de volta, a mãe”
A
criança antecipava a satisfação de um desejo- a mãe poderia estar
ausente sem fazer grandes reboliços.
Jogar
fora um objeto e trazê-lo de volta, era o que Conchita fazia em sua
fantasia de satisfação. O mesmo mecanismo controlador, ilustrando
uma ausência a ser buscada por Mathieu. Volta para ele, pra não
ter a presença negada e assim continuar o jogo de gato e rato,
prazerosamente controlando a situação com promessas que faz e não
cumpre.
Investe
em uma sensualidade infantil, fala de seus princípios, de seus
valores, tendo a mãe como sua aliada, ao mesmo tempo apresenta uma
liberdade estranha, dança em cabaré nua para os homens, aceita
certas caricias de Mathieu.
Com
essa posição, não querendo mais ser criança, mas também não
querendo ser adulta, que é uma conveniência, para manter um outro
jogo, que é o “negocio amoroso”, Mathieu passa a ser mais um
“tesouro” que a fascina do que um objeto de amor a ser possuído.
E esse se coloca nesse lugar.
O
filme, rico em detalhes e enigmas, como por exemplo: a ratoeira em
uma casa de classe alta, mosca no copo, um saco que eventualmente
Matthieu carrega nas costas, são detalhes que sugerem uma outra
narrativa, um outro momento do filme. As cenas de explosões e de
terrorismo, sugerindo um suposto envolvimento de Conchita, mas que
parece passar despercebido a Mathieu, são apenas sugeridas,
indiciadas sem nenhuma explicação. Ou quem sabe, o explosivo
movimento do desejo?
E
no final, uma mulher dentro de uma vitrine, tira de um saco, varias
camisolas, talvez simbolizando as recusas de Conchita, sugere o mesmo
saco que Mathieu carregava, começa a remendar uma camisola suja de
sangue. O desejo do ato sexual consumado? Pega suas memórias, suas
bagagens, seus desejos e constrói a historia, ou repete a história?
Belo Horizonte, 06/04/2013
Belo Horizonte, 06/04/2013
link para assistir o filme completo: http://vimeo.com/35092020
Leila de Oliveira é psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano- BH /MG
7 comentários:
Gosto muito dessa interface Psicanálise e Cinema. Este trabalho é muito importante, pois coloca a psicanálise de uma forma mais acessível.
Winnicott nos diz que quando o bebê no estágio de desenvolvimento inicial primitivo de integração, devido a uma falha no meio ambiente, não consegue integrar determinado fato em seu desenvolvimento primário devido a uma ligação entre a realização do desejo e a morte da fantasia que lhe dá forma, vai desenvolver, na adultice, uma relação entre a realização do desejo e morte. Assim Conchita, ao fantasiar um "tesouro" em Mathieu não podia realizar um desejo que mataria uma fantasia fantastica em sua vida... a de ter um falo poderoso, que sua mãe fálica não lhe deu.
A troca de personagem, (atriz) no papel de Conchita, esta tambem associada as indas e vindas do objeto de desejo?
Texto excelente! Sem ser pedante, em fácil leitura, informa e desvela o que nos faz melhor apreciar o filme.
Sucesso pra vc!
Edith Sarmento Dutra
Nossa essa análise me acrescentou muito. Achei muito intrigante o nome do filme e adorei assistir, um clássico!
Pensei em algo relacionado com o que a Maria Cristina comentou, sobre a mudança de personagens. Parabéns Leila, pelo texto, realmente muito bom.
Eu também fiquei reflexivo quanto à troca de atores que personalizam a Conchita. Qual o significado desta troca? Porque a narrativa está sendo construída a partir da visão de Mathiu. O que isso representa?
Mas afinal, no final, o Fernando Rey conseguiu consumar a relação sexual com Conchita?
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