Desde
os primórdios da cultura humana, ser feliz talvez seja a promessa
que mais fascine a todos. Em versões muito variadas, factíveis ou
não, se não em vida, no post mortem,
coisas impressionantes podem ser feitas em nome da expectativa de
chegar à felicidade.
O
cineasta americano Tood Solondz, em seu filme Happiness (1998),
circunscreve a questão da busca pela felicidade de maneira
emblemática e polissêmica ao situá-la no cenário do subúrbio de
New Jersey, local e situação que ele conhece bem, ao ponto
de fazer surgir, através de personagens caricatos, porém prováveis,
as armadilhas desse projeto "tão superlativo".
Fato
é que nos subúrbios norte-americanos -assim como fora deles- estão
todos procurando a felicidade.
Certamente
os pensamentos religiosos e filosóficos contribuíram para a
discussão sobre a felicidade, pela via da abordagem da consciência.
No entanto, tais discursos não esgotaram o problema. A conta da
felicidade humana não fechou e acabou por deixar restos, que se
tornaram matéria-prima de uma nova forma de pensá-la, desta vez,
pela via do inconsciente, tal como Freud o formulou. Freud se
interessou desde o começo pelos restos de uma clínica voltada
àquilo que não interessava a muitos, pois deixou exposta a
existência da dor de existir.
Vieram,
então, as concepções que a clínica da histeria rendeu sobre as
sobras do projeto humano de felicidade, a abordagem dos sonhos, a da
psicopatologia da vida cotidiana e, assim, a produção do que o
próprio Freud designou como a terceira ferida narcísica do humano,
tendo sido a primeira, a de não ser a terra o centro universo
(Copérnico) e a segunda, a do homem não descender diretamente de
D’us, mas de símios (Darwin).
Três
décadas após, suas primeiras elaborações teóricas e clínicas,
Freud debruçou-se mais explicitamente sobre o tema “felicidade”,
mais precisamente, num texto chamado “O mal-estar na cultura”
(1930). De fato, este texto foi fruto de uma reflexão inicialmente
acerca da plenitude do sentimento religioso, estabelecida por um
diálogo, iniciado em 1926, que se deu entre Freud e seu amigo Romain
Rolland.
Contrariamente
ao amigo, Freud pensava que não seria possível reconhecer no
"sentimento oceânico" com o mundo, mais do que a ilusão
de completude, digamos, de felicidade.
Mas,
como o título do mencionado texto freudiano de 1930 anunciava, há
uma parcela de mal-estar a ser admitida, por todo aquele que venha a
pertencer à comunidade humana.
Nesta
perspectiva, segundo a leitura de Freud, o humano estaria envolvido
em duas tarefas: a de buscar a felicidade e a de evitar o sofrimento,
sendo que esta última, por sua vez, contaria com os métodos da
intoxicação, da ilusão e o de tornar-se “homem ativo” no
mundo.
Sobre
as fontes do sofrimento, Freud acrescenta que estas provêm da
iminência das forças da natureza, da fragilidade de nossos próprios
corpos, digamos, sua degeneração e, por fim, do outro.
Freud
não poderia ser mais acurado. De certo modo, nem Solondz.
Em
Hapinness ficamos sob o impacto deste duplo esforço. Esforço
que não é do outro, do norte-americano, mas de cada um de nós.
Entusiastas e crédulos deste projeto, eles são aqueles que dão voz
às nossas próprias ilusões...
Pergunto-me
porque queremos tanto ser normais, ou enquadrados, quando nossa
solução, que não é a "Solução Final", é a de nos
fazermos sob as condições de singularidade que comportamos! Sim,
tal medida é trabalhosa, mas... Não é mais trabalhoso cumprir o
mandato?
Nesse
cenário, o nosso é o da moldura da cultura que insistente e quer
fazer com que todos caibam na forma?
Bom,
então, este filme é sobre as sobras. Sobre tudo aquilo que não
cabe no projeto de FELICIDADE/HAPPINESS.
É,
então, que na sociedade americana, no subúrbio norte-americano,
para o diretor deste filme, que lá nasceu e se criou, tais motivos
se tornam oportunidade de questão...À todos.
Os
personagens que nos são apresentados nos fazem pensar? Muito
provavelmente, já que acompanhamos lá, os micros e os macros das
violências que são feitas em nome da FELICIDADE.
No
filme, a irmã perfeita só o pode ser, à custa da irmã fracassada,
pois a imagem da segunda é o que confirma a da primeira, a irmã
feliz. É como sair com alguém que julga feio, para parecer bonito.
Que todos fiquem onde estão para manutenção da ordem e do
progresso, para a permanência da ORDEM MUNDIAL.
E
é assim que estão todos buscando os pares ideais, as situações
ideais, os rendimentos, os proventos ideais, enfim, o gozo ideal.
Ao
assistir Happiness, ficamos sob o impacto da frustração que
este filme não inventa. Sabemos da nossa própria farsa, de nossos
esforços na busca da tal FELICIDADE e na evitação do sofrimento.
Reconhecemo-nos aí.
Lembremos:
lembrar de algo é estar com este algo.
Happiness
faz pensar: o que temos feito e faremos com nossas sobras, com nossos
restos humanos, que não cabem no projeto de felicidade?
Tarefa
árdua e necessária e que, me parece, a psicanálise acolhe
prioritariamente. Mas não em condições de dourar a pílula. A
condição é fazer o caminho, sem a propaganda de que exista um pote
de ouro no final do arco-íris.
Se
neste sentido como em outros, o barato sai caro, neste caso, o
investimento pode valer o quanto pesa?
Não
seria a psicanálise o lugar disposto ao I-MUNDO, como inventou
Lacan, ao nosso lixo humano?
A
despeito da tirania que sempre resta nas vozes do supereu, podemos
inventar o possível. Fazer com as pulsões e com a imponência do
Real, eis o derradeiro desafio.
Vemos
em Happiness, como a violência pode ser efeito da melhor
intenção, aliás, que leva tantos ao inferno. Ainda não tenho
opinião formada sobre o inferno, mas me atenho ao nosso inferno, tal
como Godard o filmou em Notre Musique (2005).
Narcisismo
das pequenas diferenças? Nazismo homeopático?
É,
Melancholia (2011) é um planeta que existe, nos fez ver Lars
Von Trier...
A
sétima arte está aí para nos fazer pensar. E pensar não é o
mesmo que racionalizar. Racionalizar passa por tentar fazer caber o
corpo na versão e Isso não é possível.
Bem
ao contrário, pensar, como nos ensinou Freud (1911), e colocado sob
minha interpretação, é transformar corpo em palavra.
Recortar,
cifrar o inapreensível de nossa vida do dia-a-dia, caminho este que
uma análise deve percorrer.
Não
é pouca coisa. Não é linear. Não encerra a questão, e por vezes,
nem se quer é suficiente. Mas é efetivo.
Então,
o que há, sim, é a possibilidade de, como disse certa vez François
Leguil (1993), que o gozo se torne amigo do desejo, tornando viável,
para cada um, querer o que deseja e prezar a viagem –advertidos de
que a condição do desejo é a falta do objeto que o encerre.
São
Paulo, abril 2013
Trailer
Link para filme completo original
Karin de Paula é Psicanalista, Mestre e Doutora pela PUC-SP, Pós-doutoranda na Sorbonne Paris Diderot (Paris 7), professora na universidade e em curso de formação de psicanalistas. Membro fundadora do umLugar – Psicanálise e Transmissão. Autora dos livros “$em – sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise”, Ed. Casa do Psicólogo e “Do espírito da coisa - um cálculo de graça”, Ed. Escuta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário