domingo, 21 de abril de 2013

Happiness ou “protect me from what I want”

por Karin de Paula
Desde os primórdios da cultura humana, ser feliz talvez seja a promessa que mais fascine a todos. Em versões muito variadas, factíveis ou não, se não em vida, no post mortem, coisas impressionantes podem ser feitas em nome da expectativa de chegar à felicidade.

O cineasta americano Tood Solondz, em seu filme Happiness (1998), circunscreve a questão da busca pela felicidade de maneira emblemática e polissêmica ao situá-la no cenário do subúrbio de New Jersey, local e situação que ele conhece bem, ao ponto de fazer surgir, através de personagens caricatos, porém prováveis, as armadilhas desse projeto "tão superlativo".

Fato é que nos subúrbios norte-americanos -assim como fora deles- estão todos procurando a felicidade.

Certamente os pensamentos religiosos e filosóficos contribuíram para a discussão sobre a felicidade, pela via da abordagem da consciência. No entanto, tais discursos não esgotaram o problema. A conta da felicidade humana não fechou e acabou por deixar restos, que se tornaram matéria-prima de uma nova forma de pensá-la, desta vez, pela via do inconsciente, tal como Freud o formulou. Freud se interessou desde o começo pelos restos de uma clínica voltada àquilo que não interessava a muitos, pois deixou exposta a existência da dor de existir.

Vieram, então, as concepções que a clínica da histeria rendeu sobre as sobras do projeto humano de felicidade, a abordagem dos sonhos, a da psicopatologia da vida cotidiana e, assim, a produção do que o próprio Freud designou como a terceira ferida narcísica do humano, tendo sido a primeira, a de não ser a terra o centro universo (Copérnico) e a segunda, a do homem não descender diretamente de D’us, mas de símios (Darwin).

Três décadas após, suas primeiras elaborações teóricas e clínicas, Freud debruçou-se mais explicitamente sobre o tema “felicidade”, mais precisamente, num texto chamado “O mal-estar na cultura” (1930). De fato, este texto foi fruto de uma reflexão inicialmente acerca da plenitude do sentimento religioso, estabelecida por um diálogo, iniciado em 1926, que se deu entre Freud e seu amigo Romain Rolland.
Contrariamente ao amigo, Freud pensava que não seria possível reconhecer no "sentimento oceânico" com o mundo, mais do que a ilusão de completude, digamos, de felicidade.

Mas, como o título do mencionado texto freudiano de 1930 anunciava, há uma parcela de mal-estar a ser admitida, por todo aquele que venha a pertencer à comunidade humana.

Nesta perspectiva, segundo a leitura de Freud, o humano estaria envolvido em duas tarefas: a de buscar a felicidade e a de evitar o sofrimento, sendo que esta última, por sua vez, contaria com os métodos da intoxicação, da ilusão e o de tornar-se “homem ativo” no mundo.

Sobre as fontes do sofrimento, Freud acrescenta que estas provêm da iminência das forças da natureza, da fragilidade de nossos próprios corpos, digamos, sua degeneração e, por fim, do outro.

Freud não poderia ser mais acurado. De certo modo, nem Solondz.

Em Hapinness ficamos sob o impacto deste duplo esforço. Esforço que não é do outro, do norte-americano, mas de cada um de nós. Entusiastas e crédulos deste projeto, eles são aqueles que dão voz às nossas próprias ilusões...

Pergunto-me porque queremos tanto ser normais, ou enquadrados, quando nossa solução, que não é a "Solução Final", é a de nos fazermos sob as condições de singularidade que comportamos! Sim, tal medida é trabalhosa, mas... Não é mais trabalhoso cumprir o mandato?

Nesse cenário, o nosso é o da moldura da cultura que insistente e quer fazer com que todos caibam na forma?

Bom, então, este filme é sobre as sobras. Sobre tudo aquilo que não cabe no projeto de FELICIDADE/HAPPINESS.

É, então, que na sociedade americana, no subúrbio norte-americano, para o diretor deste filme, que lá nasceu e se criou, tais motivos se tornam oportunidade de questão...À todos.
Os personagens que nos são apresentados nos fazem pensar? Muito provavelmente, já que acompanhamos lá, os micros e os macros das violências que são feitas em nome da FELICIDADE.
No filme, a irmã perfeita só o pode ser, à custa da irmã fracassada, pois a imagem da segunda é o que confirma a da primeira, a irmã feliz. É como sair com alguém que julga feio, para parecer bonito. Que todos fiquem onde estão para manutenção da ordem e do progresso, para a permanência da ORDEM MUNDIAL.
E é assim que estão todos buscando os pares ideais, as situações ideais, os rendimentos, os proventos ideais, enfim, o gozo ideal.

Ao assistir Happiness, ficamos sob o impacto da frustração que este filme não inventa. Sabemos da nossa própria farsa, de nossos esforços na busca da tal FELICIDADE e na evitação do sofrimento. Reconhecemo-nos aí.

Lembremos: lembrar de algo é estar com este algo.

Happiness faz pensar: o que temos feito e faremos com nossas sobras, com nossos restos humanos, que não cabem no projeto de felicidade?

Tarefa árdua e necessária e que, me parece, a psicanálise acolhe prioritariamente. Mas não em condições de dourar a pílula. A condição é fazer o caminho, sem a propaganda de que exista um pote de ouro no final do arco-íris.

Se neste sentido como em outros, o barato sai caro, neste caso, o investimento pode valer o quanto pesa?
Não seria a psicanálise o lugar disposto ao I-MUNDO, como inventou Lacan, ao nosso lixo humano?

A despeito da tirania que sempre resta nas vozes do supereu, podemos inventar o possível. Fazer com as pulsões e com a imponência do Real, eis o derradeiro desafio.

Vemos em Happiness, como a violência pode ser efeito da melhor intenção, aliás, que leva tantos ao inferno. Ainda não tenho opinião formada sobre o inferno, mas me atenho ao nosso inferno, tal como Godard o filmou em Notre Musique (2005).
Narcisismo das pequenas diferenças? Nazismo homeopático?
É, Melancholia (2011) é um planeta que existe, nos fez ver Lars Von Trier...

A sétima arte está aí para nos fazer pensar. E pensar não é o mesmo que racionalizar. Racionalizar passa por tentar fazer caber o corpo na versão e Isso não é possível.

Bem ao contrário, pensar, como nos ensinou Freud (1911), e colocado sob minha interpretação, é transformar corpo em palavra.
Recortar, cifrar o inapreensível de nossa vida do dia-a-dia, caminho este que uma análise deve percorrer.
Não é pouca coisa. Não é linear. Não encerra a questão, e por vezes, nem se quer é suficiente. Mas é efetivo.

Então, o que há, sim, é a possibilidade de, como disse certa vez François Leguil (1993), que o gozo se torne amigo do desejo, tornando viável, para cada um, querer o que deseja e prezar a viagem –advertidos de que a condição do desejo é a falta do objeto que o encerre.
São Paulo, abril 2013
Trailer

Karin de Paula é Psicanalista, Mestre e Doutora pela PUC-SP,  Pós-doutoranda na Sorbonne Paris Diderot (Paris 7), professora na universidade e em curso de formação de psicanalistas. Membro fundadora do umLugar – Psicanálise e Transmissão. Autora dos livros “$em – sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise”, Ed. Casa do Psicólogo  Do espírito da coisa - um cálculo de graça”, Ed. Escuta.

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