de Nilson
Perissé
Após a emblemática deserção de Jean-Paul Sartre da produção de “Freud, Além da Alma” (Freud: the Secret Passion), de 1962, os riscos de que a saga freudiana, transformada em filme, sofresse deturpações e reduzisse a psicanálise a uma caricatura se tornaram maiores. O que veio a seguir intensificou esse temor. A inexperiência do diretor John Huston com o referencial psicanalítico, as Influências da censura e a intervenção dos atores na revisão de suas falas alterariam o legado de Sartre e levariam a produção a enfrentar perigos imprevistos. Com base em ampla pesquisa bibliográfica, esta resenha em três partes propõe-se a refletir sobre os desafios da proposta psicanalítica e a forma como é apropriada por aqueles que dela se aproximam.
Freud no cinema americano: a peste que insiste em incomodar
Capítulo II: No que se transformou o “Projeto Freud”
Segundo o psicanalista e filósofo francês Jean-Bertrand Pontalis, a proposta que o diretor norte-americano John Huston fez a Sartre para a escrita de um roteiro sobre a vida e a obra de Sigmund Freud estipulava que a trama deveria estar centrada, “segundo uma tradição muito hollywoodiana, sobre o tempo ‘heróico’ da descoberta, aquele ‘tempo forte’ em que Freud, renunciando à hipnose, inventa, progressivamente, dolorosamente, a psicanálise”(2). Mal comparando, fosse o diretor um Spielberg, o filme seria algo como um “Indiana Freud”. Como se tratava de Huston, diretor de “O Falcão Maltês” (The Maltese Falcon, 1941), consagrado filme “de detetives” adaptado de um romance noir de Dashiell Hammett, a saga freudiana deveria retratar, no mínimo, uma trama de mistério. “A ideia básica, a de Freud aventureiro, é minha”, diria Huston em entrevista. “Eu queria me concentrar nesse episódio à maneira de uma história policial”(3).
Após a emblemática deserção de Jean-Paul Sartre da produção de “Freud, Além da Alma” (Freud: the Secret Passion), de 1962, os riscos de que a saga freudiana, transformada em filme, sofresse deturpações e reduzisse a psicanálise a uma caricatura se tornaram maiores. O que veio a seguir intensificou esse temor. A inexperiência do diretor John Huston com o referencial psicanalítico, as Influências da censura e a intervenção dos atores na revisão de suas falas alterariam o legado de Sartre e levariam a produção a enfrentar perigos imprevistos. Com base em ampla pesquisa bibliográfica, esta resenha em três partes propõe-se a refletir sobre os desafios da proposta psicanalítica e a forma como é apropriada por aqueles que dela se aproximam.
Freud no cinema americano: a peste que insiste em incomodar
Capítulo II: No que se transformou o “Projeto Freud”
Segundo o psicanalista e filósofo francês Jean-Bertrand Pontalis, a proposta que o diretor norte-americano John Huston fez a Sartre para a escrita de um roteiro sobre a vida e a obra de Sigmund Freud estipulava que a trama deveria estar centrada, “segundo uma tradição muito hollywoodiana, sobre o tempo ‘heróico’ da descoberta, aquele ‘tempo forte’ em que Freud, renunciando à hipnose, inventa, progressivamente, dolorosamente, a psicanálise”(2). Mal comparando, fosse o diretor um Spielberg, o filme seria algo como um “Indiana Freud”. Como se tratava de Huston, diretor de “O Falcão Maltês” (The Maltese Falcon, 1941), consagrado filme “de detetives” adaptado de um romance noir de Dashiell Hammett, a saga freudiana deveria retratar, no mínimo, uma trama de mistério. “A ideia básica, a de Freud aventureiro, é minha”, diria Huston em entrevista. “Eu queria me concentrar nesse episódio à maneira de uma história policial”(3).
É natural que a
perspectiva de Sartre levasse a narrativa mais na direção de um
filme de ideias do que de uma obra de entretenimento. Mas haviam
pontos em comum. Elisabeth Roudinesco comenta: “Ambos desejavam
ilustrar o momento inovador quando um cientista dá o passo que irá
torná-lo o fundador de uma nova ciência”(4).
Essa convergência foi o laço possível para o que poderia ser uma
obra conjunta de dois homens tão diferentes.
O laço, porém,
mostrou-se frágil, pois a forma como cada um pretendia narrar essa
saga caminhava para direções diferentes. Na verdade, o “projeto
Freud”
poderia ilustrar, com rara precisão, a premissa lacaniana de que a
comunicação se faz no mal entendido: se Huston vislumbrava um
requintado filme de suspense psicológico associado a um retumbante
sucesso comercial, Sartre visualizava “um filme de arte monumental
de valor duradouro” (5).
Assim, após a saída do filósofo francês do projeto, Huston e
Reinhardt viram-se às voltas com um farto material que precisaria
ser editado e ajustado a um filme de aproximadamente duas horas, que
mantivesse o espírito de aventura proposto por Huston e ao mesmo
tempo não representasse um perigo junto à censura americana.
“Wolfgang e eu
começamos então a trabalhar”, conta Huston. “Wolfgang (...) não
sabia escrever muito bem uma cena, mas conhecia profundamente a obra
de Freud e a psicanálise em geral. Gastava um tempo enorme
trabalhando o dia inteiro no roteiro de Sartre, cortando, podando,
sintetizando. Aos poucos ia entregando o que já estava pronto para
Gladys Hill datilografar em inglês correto, fazer sugestões e
passar para mim, que revisava tudo de novo. Desse modo levamos quase
seis meses para redigir a versão definitiva de Freud”
(6).
O resultado final
foi um roteiro de 190 páginas, ainda sujeito a sofrer mudanças.
Huston conta que o estúdio continuava pressionando por uma versão
menor, e além disso ele sentia-se desconfortável com algumas
questões conceituais. Ele admite: “O roteiro ainda tinha coisas
mal-resolvidas. Por exemplo, como demonstrar o mecanismo psíquico da
repressão? Uma coisa é compreender e outra, bem diferente, é
conseguir mostrar isso de maneira convincente para a plateia”(7).
Reinhardt relata o episódio sob outra perspectiva: “John ficava me
dizendo que tudo aquilo parecia uma falácia e contestava o que
Sartre e eu falávamos sobre a vida de Freud e suas teorias. Eu tinha
lido todos os livros de Freud, mas John não, e isso levou a reuniões
improdutivas. Ele ficava me perguntando ‘O que significa
repressão?’ toda hora. Mesmo quando estávamos filmando, ele
perguntaria na frente dos atores como se não tivéssemos conversado
sobre isso”(8).
Havia, portanto, a dificuldade de Huston em lidar com um material
cujo domínio conceitual não possuía, mas a isso seria acrescentado
outro problema, caracterizado pelo difícil manejo do elenco
principal e pela exigência dos atores em reescrever suas falas - o
que contribuiu para que o texto original de Sartre fosse sendo
alterado incessantemente.
Huston
contava com dois artistas de filmes anteriores seus para os
personagens principais: Montgomery Clift para o papel de Freud e
Marilyn Monroe para o de Cecily. Marilyn havia sido uma sugestão do
próprio Sartre. Convidada, manifestou-se honrada com o convite,
especialmente pelo fato de que ela própria encontrava-se em análise
desde 1954. Entretanto, sua analista na ocasião era Marianne Kris,
amiga de Anna Freud, que desde o início se manifestara contrária ao
projeto do filme. Elisabeth Roudinesco afirma que Anna teria falado
de seu desagrado à amiga Kris, que teria influenciado Marilyn a
desistir do projeto (9).
Em seu lugar, Huston escalou uma jovem Susannah York, atriz britânica
então com 22 anos, que logo imporia desconcertantes exigências em
relação ao roteiro. Invariavelmente, segundo Huston, ela
recusava-se a atuar em várias cenas da forma como estavam escritas,
exigindo que lhes fosse dada uma nova redação. Ele conta que ela
“tinha tudo para personificar a ignorância arrogante da juventude.
Não demorou muito (...) para ficar convencida de que tinha o direito
de emitir opiniões científicas a respeito de um assunto do qual não
entendia absolutamente nada”
(10).
Mas York não estava
sozinha. O ator principal, Montgomery Clift, também impactaria o
texto já tão mexido por várias mãos. Ele estivera em análise por
cerca de dez anos e tinha suas próprias ideias sobre Freud e sobre a
psicanálise. Queixa-se Huston: “Monty queria participar das nossas
discussões. Fazia análise desde 1950 e se julgava uma autoridade em
matéria de Freud. Entrava na sala, tirava os sapatos e deitava no
chão. Dizia que só assim conseguia se concentrar. Interrompia a
conversa nos momentos mais inoportunos, com comentários simplesmente
incompreensíveis. (...) Não sei como, Monty conseguiu as versões
anteriores do roteiro e, juntando trechos de todas, tentou modificar
as cenas. Me mostrava páginas tão cobertas de rabiscos que se
tornavam completamente indecifráveis para mim e que nem ele podia
ler direito. (...) Os dois (Monty e Susannah) passavam noites
inteiras reescrevendo as cenas de Cecily com Freud e me apresentavam
as alterações propostas cada manhã”
(11).
Mais
adiante, seria a mesa de edição que efetuaria novas alterações no
projeto. É Huston quem conta: “Os diretores-executivos do estúdio
me forçaram a cortar uma cena [integrante da primeira versão do
roteiro de Sartre] que ofendia seus brios morais. Nela, uma moça
hipnotizada contava, na presença do pai, a tentativa de estupro de
que tinha sido vítima por ele mesmo. Eu não devia ter aceito esse
corte; a cena era muito importante para a história porque mostrava
uma das pistas falsas que levaram Freud a enveredar por uma linha
errada de dedução. (...) Mas o corte foi feito...”(12).
Após
todas essas “soluções de compromisso”, é admirável que o
filme tenha preservado minimamente um enredo compreensível. Estão
lá os primeiros anos de atividade profissional de Freud, realçando
alguns pontos marcantes que fizeram parte do processo de descoberta:
1) a relação com o psiquiatra e anatomista cerebral Theodor
Meynert, do Hospital Geral de Viena (1883-1886), com quem Freud viria
a polemizar por conta de pontos de vista distintos acerca da hipnose
e da histeria; 2) o entusiasmo com as práticas de Jean Martin
Charcot (entre 1885 e 1886), com quem concorda que, “de modo geral,
a anatomia concluiu seu trabalho e pode-se dizer que a teoria das
doenças orgânicas está completa; agora chegou o tempo das
neuroses”(13);
3) a convivência com Josef Breuer - a quem em várias ocasiões
atribuiria o papel de descobridor da psicanálise – e a descoberta
da “terapia da fala” estabelecida por aquele com a paciente Anna
O. e que daria sustentação ao método catártico, 4) a utilização
da técnica da associação livre (1892), 5) a elaboração da teoria
da sedução e a abdicação dela (1895-1897), 6) alguns elementos
que levaram ao conceito do Complexo de Édipo (1897); 7)
considerações sobre os sonhos (1900), e 8) a defesa do conceito de
sexualidade infantil (1905).
O
que ficou do material de Sartre faz um vínculo significativo entre a
vida pessoal de Freud e a formulação da psicanálise, buscando
reforçar que a exploração da neurose alheia tinha estreita ligação
com a busca de cura da própria neurose. Pontalis testemunha um
significativo comentário de Sartre, quando este entra em contato com
a biografia de Freud escrita por Ernest Jones: “Cá ente nós,
diga-me, o seu Freud era neurótico até a medula”(14).
Pontalis analisa que, a partir dessa leitura, Sartre iria ver, “na
sucessão das hipóteses formuladas, na modificação às vezes
drástica da teoria (basta lembrar o abandono da teoria da sedução),
algo inteiramente diferente de um exercício puramente intelectual ou
do resultado empírico de uma recensão minuciosa dos fatos:
tratava-se antes do próprio movimento de uma cura de que Freud,
assim como os neuróticos que ele tratava como podia, e somente como
podia, era o objeto. Freud, médico doente, teria quase a contragosto
descoberto a psicanálise – ao mesmo tempo, o método e seus
objetos – para curar a si mesmo, para resolver os próprios
conflitos”
(15).
Elisabeth
Roudinesco, deixando à parte inconsistências do roteiro original e
do filme, opinou que, apesar das fragilidades do roteiro, “o Freud
de Sartre foi ao mesmo tempo mais fiel à vida real e menos ficcional
que o Freud em parte autoritário e em parte um tranquilo pai de
família retratado nas páginas de Ernest Jones”(16).
Na visão dessa autora, Freud foi apresentado no roteiro de Sartre
como um cientista ao estilo de Fausto, uma criatura de luz e sombras,
assombrado por desejo e sexualidade e em guerra contra a ordem
estabelecida.
Huston
respeitou uma solução que Sartre propôs ao condensar os diversos
sintomas histéricos de pacientes diferentes em uma única
personagem, batizada de Cecily. Simplificando assim o que seriam
intermináveis cenas de Freud no contato com as histéricas em seu
consultório, Sartre concentrou nessa fictícia personagem as
experiências de Breuer com Anna O. e as de Freud com Elisabeth von
R. (com quem iria desenvolver o processo de associação livre) e
outras. Fez o mesmo com outro personagem fictício, Carl von
Schlossen, compósito de vários pacientes que contribuíram para o
desenvolvimento da teoria do Complexo de Édipo. Trata-se de um
recurso funcional e, poderia se dizer, de inspiração psicanalítica.
Freud, em sua “Interpretação dos Sonhos” (1899) explica que “a
construção de figuras coletivas e compostas é um dos principais
métodos por que a condensação atua nos sonhos”(17).
O mesmo recurso seria utilizado por Sartre na segunda versão do
roteiro - no caso, o personagem de Wilhelm Fliess, interlocutor
fundamental de Freud em suas investigações preliminares, some e tem
suas falas principais incorporadas ao personagem de Breuer. Assim,
Breuer-Fliess, como um único homem, tem a participação ampliada,
atuando no filme como um dos principais coadjuvantes de Freud.
É possível dizer
que Freud, além da alma retrata o conjunto de forças –
contraditórias entre si - que o geraram: o tom de mistério
pretendido por Huston pode ser notado através de uma trilha sonora
de suspense e pelo uso caprichado do contraste entre branco e preto
da fotografia; as ideias principais de Sartre podem ser apreciadas
nos diálogos densos e numa narrativa cuidadosa que preserva os
principais fatos históricos do período coberto pelo filme; as
preocupações do estúdio com o apelo popular podem ser
identificados em detalhes como, por exemplo, o processo de divulgação
- o filme, que no lançamento era simplesmente “Freud”,
rapidamente foi rebatizado como “Freud: the secret passion”.
No cartaz promocional pode ser lido: “Ele se atreveu a buscar além
da carne...sabendo que a verdade chocante poderia arruinar sua
carreira... e destruir seu casamento”. Um segundo texto trazia uma
fala de Martha para Freud: “Quando você está em seu consultório
eu tapo os ouvidos para os segredos íntimos que você deve
compartilhar”...
Por
tudo isso, é certo que “Freud, além da alma” não pode ser
visto como uma biografia fiel. O crítico Norman Holland (18)
observa que no filme jamais são mencionados os seis filhos de Freud
e Martha no período coberto pela trama; suas pesquisas sobre a
cocaína são ignoradas; foi Brücke e não Breuer quem influenciou
Freud ao atendimento clínico particular ao invés da atuação em
pesquisa; Anna O., representada em grande parte na personagem Cecily,
jamais foi paciente de Freud; o uso do simbolismo na interpretação
não era comum até 1910, período não abrangido pelo filme; a cena
final em que Freud é humilhado diante de seus colegas médicos é
uma ficção; o amigo Fliess e a paciente Dora, embora existam na
primeira versão do roteiro, não estão no filme, tendo sua
importância menosprezada na narrativa sobre Freud. Todas essas
concessões para viabilizar Freud em filme levaram Anna Freud a
confirmar seu repúdio à produção: “Em nossa opinião nem
verdade histórica nem científica sobre a pessoa, Sigmund Freud, ou
seu trabalho, podem ser ou são transmitidas pelo filme, ao contrário
da pretensão de seus produtores”
(19).
Apesar da postura
crítica da herdeira de Freud, o filme refletiria, minimamente, um
emblemático jogo de forças mobilizadas no processo de absorção da
psicanálise pela cultura e – no extremo – teria a capacidade de
despertar na equipe de produção comportamentos inusitados.
A SEGUIR: Freud,
além da alma, deixa marcas na equipe de produção.
Repercussões do filme e reflexões finais.
Freud, além da alma- parte 1, procurar nesse blog pela data: 12 de janeiro de 2013
Freud, além da alma- parte 1, procurar nesse blog pela data: 12 de janeiro de 2013
- parte 3, procurar nesse blog pela data: 17 de fevereiro de 2013
Freud, Além da Alma (Freud: The Secret Passion)
Nilson Perissé é Mestre em Sistemas de Gestão, psicanalista em construção e bacharel em Comunicação Social. É autor da dissertação “A gente já entra se sentindo menor: impactos da terceirização na subjetividade do trabalhador”. No Cinefreudiano, publicou o artigo “O Desejo em Woody Allen”. Para correspondência: nilsonperisse@hotmail.com
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