O
filme “Freud, Além da Alma” (Freud: the Secret Passion), de
1962, é uma experiência cinematográfica intensa, e ainda hoje uma
referência em festivais de cinema que celebram a psicanálise. Não
tão bem conhecidos são os bastidores da produção e as soluções
encontradas para sintetizar em pouco mais de duas horas os primeiros
tempos da descoberta freudiana. O que essa história tem a nos dizer
sobre a forma como o mundo se apropria da psicanálise e faz dela uma
narrativa ? Com base em elementos colhidos da autobiografia do
realizador John Huston, de uma biografia do ator Montgomery Clift, de
análises de Elisabeth Roudinesco e J.-B. Pontalis, entre outros,
esta resenha em três partes propõe-se a refletir sobre os desafios
da proposta psicanalítica e a forma como é apropriada por aqueles
que dela se aproximam.
Freud no cinema
americano : a peste que insiste em incomodar
Parte I - Bastidores
de um encontro inusitado
Era um trio
inusitado, porém não menos brilhante. Freud, médico vienense,
criador da psicanálise; Sartre, filósofo francês, expoente do
existencialismo; Huston, cineasta americano, diretor de filmes
clássicos de aventura. Esse encontro improvável teve inicio no
final da década de 1950, quando John Huston solicitou a Jean-Paul
Sartre um roteiro sobre a vida e obra de Sigmund Freud. Nessa
ocasião, Freud já havia falecido há quase vinte anos, mas
permanecia vivo - para uns, através da obra; para outros, através
do mito. Huston, famoso realizador de clássicos como “O Falcão
Maltês” (The
Maltese Falcon,
1941), “O Tesouro de Sierra Madre” (The
Treasure of the Sierra Madre,
1948) e “Uma Aventura na África” (The
African Queen, 1951),
fazia parte deste último grupo. Ele olhava a vida de Freud através
do mito, e isso significava para ele um potencial roteiro de
aventura. Afinal, o percurso de idas e vindas, de erros e acertos da
descoberta freudiana não se assemelhava a uma trama investigativa
ou, no limite, a uma boa história de suspense pedindo para ser
filmada? Ele já vinha pensando nessa perspectiva há muitos anos. Em
sua autobiografia conta que, desde 1940, já discutia essa
perspectiva com o produtor e roteirista alemão Wolfgang Reinhardt,
embora só viesse a pensar seriamente na ideia quase vinte anos
depois. “Chegamos à conclusão de que precisava ser algo que
cheirasse a enxofre; a descida de Freud ao inconsciente teria que ser
tão aterradora quanto a de Dante ao Inferno”, conta ele(2).
Por outro lado, a despeito de seu entusiasmo com Freud, Huston não
escondia sua incapacidade de acreditar no conceito do inconsciente.
Em uma carta para Simone de Beauvoir, Sartre alega ter ouvido Huston
dizer: “No meu (inconsciente) não há nada!”(3).
Mais
que isso: Huston tinha críticas ao tratamento psicanalítico: “O
consultório de um psicanalista competente vive com as horas tomadas
por pessoas entediadas e filhos problemáticos de gente rica. O preço
das sessões é exorbitante e o tratamento, em geral, leva vários
anos. As pessoas muito ocupadas ou ativas não têm tempo para isso e
as que mais precisam de orientação psiquiátrica são exatamente as
que não se podem dar ao luxo de tê-la”(4).
Sartre e Huston |
Com a restrição de
ambos ao conceito de inconsciente – basilar para a psicanálise - o
que fez laço entre Huston e Sartre em torno de Freud?
Huston havia
dirigido em 1946 uma montagem de “Entre Quatro Paredes” do
filósofo francês, e guardava a impressão de que Sartre “entendia
de psicologia a fundo, conhecia intimamente a obra freudiana, que nas
mãos dele receberia um tratamento objetivo e lógico”(7).
Roudinesco dá um crédito a Huston por essa escolha. Segundo ela, no
final dos anos 1950 a psicanálise já havia sido americanizada numa
versão corrompida, adaptativa e medicalizada, sendo Hollywood, ao
contrário, um reduto onde ainda se fazia crítica ao
american-way-of-life.
Daí, segundo ela, Huston ter optado por um Freud europeu e
anti-americano e por conta disso ter escolhido a parceria com Sartre,
“um homem de esquerda e um filósofo da liberdade”(8).
O escritor Robert LaGuardia, que publicou uma biografia do ator
Montgomery Clift (intérprete de Freud no filme) traz uma versão
menos favorável ao diretor. Ele conta que Huston não sabia em que
estava se envolvendo e que Sartre, ao ser convidado para a elaboração
do roteiro e após as primeiras conversas com o diretor americano a
respeito do projeto, ficou surpreso pelo fato de aquele não ter
ideia de que o sexo era um ingrediente importante na formulação da
psicanálise. Meses mais tarde, quando Huston teria acesso à
primeira versão do roteiro e às cenas envolvendo homossexualismo,
incesto, masturbação, prostituição e aberrações sexuais,
ficaria absolutamente perplexo, pois não fazia a menor ideia do
terreno onde estava começando a pisar(9).
Quanto a Sartre, que
de fato conhecia melhor o trabalho de Freud (embora tivesse suas
próprias objeções), que fator teria levado em consideração para
aceitar os riscos daquele projeto? Ele mesmo admite: o interesse
financeiro. Roudinesco reproduz os argumentos que ele utilizou ao ser
questionado se alguma vez havia escrito algo por dinheiro: “Foi o
roteiro sobre Freud que escrevi para Huston. Eu acabara de me dar
conta de que não tinha mais dinheiro. Acho que foi quando minha mãe
havia me dado doze milhões de francos antigos para pagar minhas
dívidas. Elas foram pagas, e eu não tinha mais dívidas, mas acho
que não tinha mais um tostão. Justamente quando eu soube que Huston
queria me ver. Ele chegou uma manhã e disse ‘Eu estou oferecendo a
você 25 milhões para colaborar num filme sobre Freud’. Eu disse
sim e consegui os 25 milhões”(10).
O que teria dito
Freud sobre um projeto construído por realizadores com interesses
tão ambíguos? Talvez repetisse argumentos que deixou registrados ao
longo de seus escritos. Em uma de suas cartas, ele opinava: “Ninguém
pode se fazer biógrafo sem se comprometer com a mentira, a
dissimulação, a hipocrisia, a bajulação, sem contar a obrigação
de mascarar a própria incompreensão. A verdade biográfica é
inacessível. Ainda que pudesse ser atingida, não poderia ser
declarada”(11).
Em seu “Estudo Autobiográfico”, de 1925, insistirá: “O
público não tem o direito de saber mais sobre meus assuntos
pessoais – minhas lutas, meus desapontamentos e meus êxitos”(12).
Talvez por isso Anna Freud, associada aos pensamentos do pai, tenha
sido, desde o início, contrária à realização do projeto que,
ainda assim, caminhou.
O ano de 1958
mostrou-se propício para colher material biográfico sobre o pai da
psicanálise: Jean-Bertrand Pontalis, que dedicou um artigo aos
bastidores do filme de Huston(13),
conta que nessa ocasião fora publicado em francês o primeiro volume
com a biografia oficial de Freud escrita por Ernest Jones. Dois anos
antes, já era de conhecimento público parte da correspondência
trocada com Wilhelm Fliess, trazendo à tona um Freud íntimo até
então jamais visto (o conjunto dessas informações inéditas
constituiria o que seria jocosamente considerado o “making-of” da
psicanálise). Com base nesse material, o esforço inicial de Sartre
gerou uma sinopse de 95 páginas, rapidamente aprovada por Huston. O
desenvolvimento dessas ideias se transformaria num roteiro que viria
à luz no ano seguinte e, com ele, as insuperáveis divergências com
o cineasta americano.
Era um roteiro de
300 páginas e, conforme as palavras de Huston, “da largura de
minha coxa”(14).
Se filmado na íntegra, geraria um filme de aproximadamente cinco
horas. Além disso, o conteúdo inflamável repleto de temas
arriscados para a censura moralista americana do início da década
de 1960 ameaçaria o financiamento da produção pela Universal.
Naquela época, sem o selo de aprovação da censura, seria quase
impensável uma distribuição ampla em território americano. Huston
não titubeou: escreveu a Sartre sobre a necessidade de burilar o
conteúdo e reduzi-lo, e a resposta que recebeu foi irônica:
“Pode-se fazer um filme de quatro horas quando se trata de Ben Hur,
mas o público do Texas não suportaria quatro horas de
complexos”(15).
A reação de Sartre
demonstrava uma indignação que não deve ter sido compreendida por
Huston, embora uma leitura atenta do roteiro inicial já indicasse
suas razões. Está tudo ali: uma história construída com muitas
nuances, ganchos claros costurando as cenas, soluções criativas
para narrar uma aventura subjetiva e, subjacente a tudo isso, uma
dedicação de seu autor que se justifica exclusivamente pela
hipótese de que Sartre se apaixonara pela história que se propusera
a contar. Se o dinheiro havia sido a matriz original de sua decisão,
é certo que ele se empolgou pelo projeto e conseguiu reproduzir um
Freud vivo e ambíguo, cheio de falhas, ambições e genialidade.
Tudo no roteiro é de grande delicadeza e apuro: as relações
familiares bastante presentes nas duas primeiras partes da narrativa,
a forma como descreveu Martha Bernays – inteligente, apaixonada e
cheia de matizes -, as falas apuradas e elegantes de Meynert, os
traços precisos com que pintou Fliess e Breuer – tudo evidencia
uma pesquisa apurada e elaborações sofisticadas.
Huston talvez não
tenha entendido, mas ainda assim, farejando encrenca, convidou Sartre
para passar duas semanas do mês de janeiro de 1960(16)
em
sua casa, na Irlanda, onde fariam reuniões diárias para o
aprimoramento do roteiro. Aparentemente, a julgar pelos testemunhos
de ambos - posteriormente divulgados na imprensa, na correspondência
entre Sartre e Simone de Beauvoir e na autobiografia de Huston -,
haviam barreiras culturais intransponíveis: Sartre reagia a cada
proposta de mudança de seu roteiro utilizando-se de argumentos
inesgotáveis que irritavam Huston; vestia-se de forma impecável com
seu terno cinza e não saía da formalidade. Huston, por sua vez,
cansou-se facilmente da verborragia de Sartre, era econômico em suas
argumentações, tinha uma perspectiva influenciada pelas demandas da
indústria de cinema e, num momento de descontração, tentou mostrar
a Sartre – sem sucesso – que poderia hipnotizá-lo. Esse e outros
comportamentos eram vistos por Sartre com desprezo: “literalmente
incapaz de conversar com aqueles que convidou”, escreveu ele sobre
Huston, acrescentando ainda: “ele é vazio, exceto em seus momentos
de vaidade infantil” (17).
Huston, de sua parte, também via Sartre como alguém, no mínimo,
pitoresco, o que teria aumentado o curto-circuito já presente na
explosiva relação. Para Elizabeth Roudinesco, o encontro
transformou-se num pugilismo intelectual: “incapazes de um
entendimento ou respeito mútuo, os dois homens, tão parecidos e tão
diferentes, tentaram dominar um ao outro, até que veio à luz o
produto final do mal-entendido: um roteiro soberbo mas infilmável, e
o fascinante fracasso de um filme”
(18).
Sem acordos ou
consensos claros, Sartre voltou a Paris com o compromisso de eliminar
do roteiro algumas partes sinalizadas por Huston. Mas quando, por
fim, chegou à versão final, encaminhou para os Estados Unidos um
roteiro com 700 páginas, mais que o dobro da versão anterior.
Foi a gota final.
Huston decidiu colocar as próprias mãos sobre as elaborações de
Sartre. Amparou-se com o auxílio de um roteirista profissional,
Charlie Kaufman, famoso por cine-biografias, além de Reinhardt, com
quem chegou a um roteiro de 190 páginas. Huston conta que parte do
trabalho de revisão implicou em reduzir as conotações sexuais do
roteiro de Sartre. Ele já havia recebido uma sinalização positiva
quanto ao financiamento do filme, desde que fosse conseguida a
aprovação da Igreja Católica: “A Igreja não podia nos impedir
de levar avante o projeto, mas podia prejudicar o lançamento dos
cinemas proibindo os fiéis de assistir ao filme. Me reuni com dois
padres e uma mulher leiga para discutir minuciosamente o roteiro. A
oposição dos três se baseava em princípios éticos: a filosofia
de Freud, segundo eles, não admite a existência do Bem e do Mal. Só
um padre tem o direito de sondar a alma humana. A mera sugestão de
sexualidade infantil lhes repugnava. É lógico que eu não podia
modificar Freud
para
satisfazer esses preconceitos católicos sem destruir completamente o
filme – sem falar no freudianismo – e o máximo que eu podia
esperar era chegar a um meio-termo”
(19).
Essas concessões
foram inaceitáveis para Sartre. Enfim ele caía em si que Huston não
pretendia fazer um filme independente, de arte, voltado para um
público erudito, mas apenas fazer cinema popular. Impaciente,
ordenou que seu nome fosse tirado dos créditos do filme e abandonou
o projeto. Quando Huston, incapaz de entender as reações de Sartre,
pediu a Reinhardt que o procurasse em Paris em busca de uma
explicação, Sartre não poupou o diretor americano de acusações e
sarcasmo - sentou-se e compôs um texto de 16 páginas sobre suas
motivações, acusando Huston de vender os altos ideais do projeto.
Ao ler a carta, Huston supersimplificou a questão e explodiu com
Reinhardt: “Por que você me traz algo como isso? Está tentando
arruinar meu filme?”
(20).
Foi o fim da
participação de Sartre no projeto de Freud. Mas, para Huston e para
o Freud ficcional que estava em jogo, os tropeços estavam ainda e
apenas no começo.
A SEGUIR: NO QUE SE TRANSFORMOU O “PROJETO FREUD” - procurar pela data: 27/01/2013
A SEGUIR: NO QUE SE TRANSFORMOU O “PROJETO FREUD” - procurar pela data: 27/01/2013
Freud, Além da Alma (Freud: The Secret Passion)
Nilson Perissé é Mestre em Sistemas de Gestão, psicanalista em construção e bacharel em Comunicação Social. É autor da dissertação “A gente já entra se sentindo menor: impactos da terceirização na subjetividade do trabalhador”. No Cinefreudiano, publicou o artigo “O Desejo em Woody Allen”. Para correspondência: nilsonperisse@hotmail.com
Um comentário:
O filme ainda assistirei, mas o texto é irretocável, despertando, até em quem desconhece o trabalho dos envolvidos, uma grande curiosidade em assistir o filme. Nunca imaginei a relação entre Freud e Sartre... temos, por hábito pseudo-acadêmico, analisar biografias, obras e citações de forma quase isolada. Não o acadêmico de fato! Meu caso é bem mais simples... rs... paixão pelo tema e flertes eternos com o saber. Abç.
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