sábado, 16 de junho de 2012

O Conto Chinês contra a Árvore da Melancolia

de Christian Ingo Lenz Dunker



Recentemente a crítica semi-especializada de cinema dividiu-se entre os partidários de Melancolia, de Lars Von Trier e os inclinados pela Árvore da Vida, de Terrence Malik. Os amantes da bílis negra advogavam a riqueza e a intensificação de experiências que se pode obter com uma visão realista do mundo, na qual a falta de sentido, expressa pela finitude, pela morte e pelo vazio que move as relações humanas, é o grande real que precisa ser reconhecido, admitido ou suportado. Os acólitos da natureza arborescente insistiam no fato de que se olharmos bem perto ou de muito longe, ou seja, se mudarmos os parâmetros de nosso olhar, gradualmente a ausência de sentido cederá lugar à verdade imanente de um sentido escondido. Sentido mais simples, mais sóbrio, mas não obstante suficientemente orientador pra nossos sonhos e decisões. Os depressivos-realistas acham que a felicidade é uma quimera e que deve ser substituída pelo tema da “interessância-desinteressada” da vida. Os paranoicos-idealistas, ao contrário, querem contabilizar a felicidade, como fator biopolítico, mesmo que seja sob a forma invertida do desamparo, do desespero e da miséria da condição humana.

            Por minha parte, quero crer que entre a sobriedade norueguesa e o otimismo americano deveríamos introduzir a poesia latino-americana de Um Conto Chinês. Seu ponto de partida é quase impensável para as duas posições anteriores. Entre escolher se o passado nos oferece uma fonte soberana de significação, mesmo que seja o passado biológico da espécie, e saber se o futuro será mesmo uma catástrofe que devastará nossa capacidade de sonhar, o filme de Sebastián Borensztein, nos mostra que a verdadeira falta de sentido já está aqui e está sendo vivida como impasse de linguagem, de instituições e de atos de reconhecimento.

            Ricardo Darín, o herói de Conto Chinês, retoma aqui uma espécie de arqui-personagem que se transforma mantendo um traço unário, pelo qual se pode reencontrar a cada cena, o mesmo tipo de solidão compartilhada ao qual fomos apresentados em O Filho da Noiva (Juan José Campanella, 2001) e no sensacional O Segredo de seus Olhos (Eduardo Sacheri, 2009). Desta vez trata-se de um pequeno comerciante de uma loja de ferragens que a cada vez conta os parafusos recebidos constatando que a fábrica entregou cinco ou seis a menos do que devia. Cultivando a memória de seus pais ele vive em uma espécie de santuário, sem mudanças significativas, com pequenos e grandes rituais, que ao final nos conduziriam ao juízo de que se trata de uma vida ordinária e vazia. Sem mulher, sem grandes amigos ou amores, apenas clientes e fornecedores tão ou mais bizarros do que ele. Mas neste cenário aparentemente desértico ele carinhosamente cultiva os seu passado, assim como coleciona recortes de jornais com notícias incríveis ou inverossímeis. Ou seja, acreditando você ou não o real acontece. E este real pode ser uma vaca que despenca sob a cabeça da noiva, o encontro com um estrangeiro, um planeta que se choca com a terra, ou a perda de um filho. Mas ao contrário de Melancolia, não há traço algum de depressão. Não há autocomiseração, nem Ideais descumpridos, á exceção dos pequenos disfuncionamentos “institucionais” como é o caso dos parafusos a menos. Ao contrário de Árvore da Vida, não há nenhum resíduo de esperança, nem a mais fácil que poderia dar origem a um novo amor. Há apenas desencontros recorrentes, com outros, que tal como ele, tornam detalhes irrelevantes, por exemplo, em torno da cor de uma dobradiça, a pequena diferença que parece dar sentido à vida. Uma vida na qual tudo o que havia para acontecer já aconteceu e aparentemente não foi muito bom. Alguém poderia dizer que a pobreza de sua experiência é tamanha que ele nem mesmo consegue se queixar de si.  Sua alienação avançou ao ponto no qual não há mais espaço para indignação, revolta ou angústia, á exceção das pequenas diferenças narcísicas representadas por parafusos a menos ou dobradiças a mais. Como diria Fernando Pessoa: “Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha consciência”.

            Este é o cenário para o que se poderia chamar de um encontro insólito. Um imigrante chinês, que não fala uma palavra em espanhol, entra em sua vida, transformando-a radicalmente. Este estrangeiro é a ocasião para um ótimo retrato do caráter típico de nossas instituições: a polícia que sempre faz algo a mais ou algo a menos do que deveria e a embaixada, dominada pelo descaso e pelo sem-sentido, criam este sentimento de que se ele mesmo não fizer alguma coisa a responsabilidade será sua mesmo. E é este ato sem sentido que dá sentido a todo o resto. Espero que o leitor verifique por si mesmo esta hipótese assistindo o filme. Ora, o que esta forma, quiçá típica, de sofrimento desencontrado, composta pela mistura entre precariedade institucional e desalento experiencial nos mostra é que há algo faltando no diagnóstico que opõe Melancolia à Árvore da Vida. Estes dois filmes falam do que se pode chamar de sofrimento de determinação, ou seja, o sofrimento presente em formas de vida marcadas pelo excesso de experiências improdutivas de determinação: casamentos calculados, rituais vazios, teatro cínico de vivências administradas, famílias inautênticas, consumo predatório. No interior de tais formas de vida a saída que se pode imaginar passa por um grande evento grandioso e impensável, como a passagem de um cometa, uma perda imprevista, uma paixão devastadora. Tais eventos funcionariam como uma espécie de “lei maior” capaz de suspender a relação de excesso e falta, em torno da qual giram a economia ordinária da melancolia-paranóia. O excesso de determinação, de controle, de segurança, gera vidas economicamente produtivas, porém destituídas de sentido. Vidas que se perguntam “para que tudo isso” ? levando-nos assim á falsa antinomia entre felicidade e interesse, entre melancolia real e esperança vital, entre consumo luxurioso e frugalidade naturalista.

            O que a produção fílmica recente da argentina, como a de Lucrécia Martel, por exemplo, tem nos mostrado, assim como os melhores filmes de Beto Brant, Walter Sales e Fernando Meireles, aqui no Brasil, é a existência de outra diagnóstica social do sofrimento. Não se trata apenas de pensar as formas mais ou menos opressivas, mais ou menos precárias, das determinações jurídicas, econômicas e morais. É preciso admitir que o sofrimento pode ter outra origem que não a falta ou excesso de determinação, a falta ou excesso de sentido. Esta origem alternativa, mas não excludente, residiria na ausência ou raridade de experiências produtiva de indeterminação.

Assim como em Lost in Traslation (Encontros e Desencontros, Sophia Coppola, 2003), o Conto Chinês mostra como o desencontro linguístico pode ser uma experiência produtiva não apenas para a determinação de planos e objetivos, de ideais e soluções, mas de verdadeiros novos problemas e de inusitados questionamentos. Nem toda indeterminação é apenas falta de determinação, ou seja, falta de lei, falta de ordem, falta de regramento. Há certas modalidades de indeterminação, como as que caracterizam as certas produções latino-americanas (e no mais o novo cinema terceiro mundista), que são extremamente produtivas. Nem toda anomia é perigosa e deve ser restaurada. Algumas delas, particularmente quando incidem em uma vida excessivamente repleta de sentido ou de falta de sentido, que geralmente se combinam como Melancolia e Árvore da Vida, são extremamente produtivas. Difícil pensar esta forma de mal estar, que por natureza seria refratária à determinação de processo e protocolos de tratamento, controle e administração. Mas mais difícil ainda seria uma vida que simplesmente abolisse esta possibilidade. 
Christian Dunker é Psicanalista, Professor Livre Docente do Depto de Psicologia Clínica-IPUSP, Analista Membro de Escola da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Doutorado (IPUSP) e Pós-Doutorado pela Manchester Metropolitan University (UK). Autor dos livros: “Lacan e a Clínica da Interpretação” (ed. Hacker, 1996), “O Cálculo Neurótico do Gozo” (ed. Escuta, 2002) e do vencedor do Prêmio Jabuti 2012: “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (ed. Annablume, 2011), 


Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente análise. O filme é ótimo mesmo, mostrando como a solidão pode ser domesticada com a oresença de um outro... ainda que esse outro seja em contos, nos tocando e transformando o vazio com a atividade criativa da imaginação!!! Lembra muito os fenômenos transicionais de Winiccott. Bela reflexão do blog!!!!