domingo, 20 de maio de 2012

O Édipo Invertido

de Arnaldo Domínguez


Quiçá morramos nesse instante em que nos demos conta, em que admitimos que o mal tem uma estrutura lógica” (Santuário) – Osvaldo Lamborghini, fevereiro, 21, 1983. Carta à César Aira.



A feminilidade insuportável.
Esses amos e seu séqüito obediente!
Não podemos perdoá-los quando não sabem o que dizem.
O fato é que os humanos somos cruéis (nem sempre frios) com relação à fragilidade própria ou dos ditos semelhantes e sofremos de propensão ao bullying. Entretanto, nossa condição temporária na existência – entre o gozo e a dor e, nos extremos fundamentalmente, inter faeces et urinas – é cercada por fragilidade e desamparo, oriundas dos mundos interno e externo intimamente inter-relacionados.
Buscamos o aconchego do outro (Outro) através de vias amorosas e/ou sexuais. Isso também se compra. E, tantas vezes – quando fixados na compulsão à repetição – encontramos a série do sofrimento e da desilusão. Muitos/as gozam disso desabonando o novo que emergir. Dentre os quais, certamente, os fundamentalistas que promovem a fidelidade absoluta do/ao Grande Outro. Amor extático ao morto, pois ele seria o único capaz de cumprir as promessas. Lamentavelmente este Ser mítico – meio touro – nada nos prometeu. Em seus planos criadores não previu a nossa felicidade terrena.
Inqüestionável e obscuro – pela via da negativa e da projeção – exige em sacrifício um humano expiatório. Razões promotoras de transformação de sujeitos em objetos (fóbicos, fetiches, melancólicos, instrumentalizados para o Gozo do Outro).
Convertidos em signos denotativos do mal e da banalidade.

Curto circuito.

A diferença homem – mulher não pode ser inserida no inconsciente, afirmou Freud, ao referir-se à dimensão sádica do coito quando descreveu as teorias sexuais infantis. Entretanto, a saída do Complexo de Édipo se daria pela via da identificação às instâncias parentais (ou substitutas), constituindo o núcleo do super-eu, crítico e imperativo.
Chamou recentemente a minha atenção o relato de muitas analisantes que sucedeu ao último “dia das mães”. Seus maridos “estragaram” a comemoração. Num dos episódios (referidos na clínica), tal situação conflitiva desencadeou a ruptura definitiva da relação.
Pode ocorrer – escreve Freud em Psicologia das Massas – que o pai, numa postura feminina, seja tomado como objeto, do qual as pulsões diretamente sexuais esperam sua satisfação, e assim a identificação com o pai se torna precursora da ligação objetal com o pai. O mesmo vale, com as substituições pertinentes, para a filha pequena”.
O pai: que se gostaria de Ser. Que se gostaria de Ter.
Tal assertiva freudiana é, digo eu, assaz ambígua e contraditória. Penso que Lacan ultrapassou-a ao afirmar: Nem to be nem not to be. Ter (o falo simbólico), a condição adulta para gozar da vida.
Voltando à clínica e sua soberania.
Um homem que sofria de grave sintoma fóbico vinculado à chuva – e que, curiosamente, havia escolhido para morar uma região serrana, chuvosa – quando se 'armava a tormenta', corria ao berço do bebê, seu filho, e encostava sua cabeça no peito do infante. Quem pudesse observar concluiria que esse pai era um herói protetor. Todavia, muito envergonhado, confessou-me que – em verdade – buscava nesse abraço a proteção do filho.
É isso que eu chamo de “Édipo Invertido”. Quando o pai rivaliza com o filho, mesmo que tal abuso monte uma cena terna, equiparando-se e lhe roubando o lugar que ele merece de fato e de direito. “Meu pai me abraça, meu pai me ama”, acreditará. Não só de espancamentos se constituem as perversões.
Há algo desta ordem nos estragos da comemoração materna. E parece mais freqüente do que gostaríamos de admitir, forçando-nos a reatualizar a teoria da sedução abandonada (?) por Freud em 1897.
Quero aproveitar, aqui, para homenagear e agradecer devidamente ao meu pai, quem, nessas datas simbólicas, combinava comigo o secreto com o que eu surpreenderia a minha mãe – afinal, criança e sem mesada... - deixando assim a constância de que o lugar de filho me pertencia. Digamos que corrigiu o estrago narcísico do nome (que demorei a torná-lo próprio). Nem tudo pode dar certo. Porém, eu pude escolher o cartão que tinha inscrita a dinâmica estrutural: “madrecita mía”. Mulher dele.
Dinâmica esta facilitadora da ambivalência afetiva bilateral fundamental ao Complexo e sua dissolução e que me habilitou para amar homens, mulheres, bichos e a terra, planeta água. Claro que não tod@s!
Amar, como disse Rilke aproximadamente, sendo o encontro das fragilidades que em lugar de se hostilizarem, se protegem.
Contudo, há – em todos os pais – um quê de inversão edípica. Experiência revivida em cada nova filiação, assim como os analistas revivemos algo da própria análise em cada atendimento. Contratransferência calculada, digamos. Tem outra, a incalculável.
Que pode tornar-se negativa e daninha. Sobre tudo quando insiste qual interesse exclusivo.
O interesse exclusivo do homem pela mulher também é algo que merece esclarecimento psicanalítico. Como tudo o que for excludente e forçado. Ou, ou.
Sempre pode ocultar algo da ordem do fetichismo para além do investimento parcial embutido no amor. Ou do canibalismo, primeira identificação. Decifra-me ou te devoro! (Uma analisante demandava ameaçadora ao sujeito do suposto saber: decifra-me ou “me” devoro! E eu situei ali o ativo esforço da satisfação masoquista).
Analistas que se “chocam” - ou que temem uma reviravolta em suas cenas primárias quando se deparam com certas montagens fantasmáticas dos analisantes, cada vez mais atuadas no mundo da janela virtual - e que prefeririam envia-los/as para além-mar para ver se encontram por lá – bem longe – seus destinos funestos, como escrevera Freud ao triestiano Weis referindo-se a seu primo irreverente, também inscrevem-se nesta categoria da inversão.
Isso não significa que minha proposta seja a de atingir o extremo (masoquista) de suportarmos qualquer coisa. Risco que sempre corremos com nossa oferta-demanda na posição de objeto.
Há limites! Isto disse uma analista ao expulsar um analisante que, ao depois, concluiu comigo a sua análise. E ali soubemos que os limites dela esbarraram na moral de um curto circuito. O que também representa uma das aporias perigosas deste nosso método nada inofensivo.
Finalizo com uma questão inspirada em Collete Soler e transformada por mim.
Porquê não seria possível, um homem, oferecer-se como objeto para outro – o mesmo vale para uma mulher e outra – sem que com isto se busque o sofrimento?
Será sempre uma perversão?
Não existirá a perspectiva de que o amor seja por outro? Semelhante na falta (duas carências), mas, definitivamente, outro. O que implica em não negar as diferenças.
E então, por fim, tenhamos que chamá-los de “héteros” apesar da famigerada e combatida “homosexualität”. A mais abominável das perversões.
Restará, para nossa sorte, um ponto cego – de hamartia – na psicogênese e no genoma que batem no coração da condição humana, demasiadamente humana.
E com isso tod@s teremos que savoir e faire.
Itaquaciara, Itapecerica da Serra, 19 de maio de 2012.

ARNALDO DOMÍNGUEZ é psicanalista e professor do CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, fundador do PROJETO ETCÉTERA E TAL... Psicanálise e Sociedade, conselheiro da Biblioteca Popular de Itaquaciara D.Nélida, colaborador da Escola da Causa Analítica e integrante do Instituto Tempos Modernos Brasil e Argentina.