de
Henrique Senhorini
Neste mês de maio, fui ver a
grande obra de Portinari no Memorial da América Latina...
Foi seu último dia em terra Brasilis antes de percorrer o mundo
e retornar ao seu habitat...a sede das Nações Unidas em NY.
Assim como no MAM doutra vez, eu encontrei Freud. Mas, desta
feita, ele não estava só. No mesmo local, para minha surpresa, estavam reunidos para uma discussão, Freud mais Einstein e - retratando o encontro - o próprio Portinari.
A conversa transitava no entorno do tema da exposição - guerra e paz -
quando, ao aproximar sem ser notado, pude escutar uma questão feita por Einstein, direcionada à Freud, provavelmente suscitada pelos gigantes painéis do artista de Brodowski-SP.
Prezado professor Freud, existe alguma forma de livrar a
humanidade da ameaça de guerra?
Sei que nos escritos do senhor podemos encontrar respostas,
explícitas ou implícitas, a todos os aspectos desse problema urgente e
absorvente. Mas seria da maior utilidade para nós todos que o senhor
apresentasse o problema da paz mundial sob o enfoque das suas mais recentes
descobertas, pois uma tal apresentação bem poderia demarcar o caminho para
novos e frutíferos métodos de ação.
Diante tal questão, resolvi ficar por perto, pois não poderia
viver sem escutar a resposta do mestre. Mas, para não atrapalhar, mantive uma
distância considerável por recomendação dos seguranças do museu, porém o
suficiente para apreender algumas observações, das quais tentarei reproduzir
abaixo:
Prezado professor Einstein, quando soube que o senhor
intencionava convidar-me para um intercâmbio de pontos de vista sobre um
assunto que lhe interessava e que parecia merecer o interesse de outros além do
senhor, aceitei prontamente. Esperava que o senhor escolhesse um problema
situado nas fronteiras daquilo que é atualmente cognoscível, um problema em
relação ao qual cada um de nós, físico e psicólogo, pudesse ter o seu ângulo de
abordagem especial, e no qual pudéssemos nos encontrar, sobre o mesmo terreno,
embora partindo de direções diferentes. O senhor apanhou-me de surpresa, no
entanto, ao perguntar o que pode ser feito para proteger a humanidade da
maldição da guerra...
...Perdoe-me se, nessas considerações que se seguem, eu trilhar
chão familiar e comumente aceito, como se isto fosse novidade; o fio de minhas
argumentações o exige.
É, pois, um princípio geral que os conflitos de interesses entre
os homens são resolvidos pelo uso da violência. É isto o que se passa em todo o
reino animal, do qual o homem não tem motivo por que se excluir. No caso do
homem, sem dúvida ocorrem também conflitos de opinião que podem chegar a
atingir a mais raras nuanças da abstração e que parecem exigir alguma outra
técnica para sua solução. Esta é, contudo, uma complicação a mais. No início,
numa pequena horda humana, era a superioridade da força muscular que decidia
quem tinha a posse das coisas ou quem fazia prevalecer sua vontade. A força
muscular logo foi suplementada e substituída pelo uso de instrumentos: o vencedor
era aquele que tinha as melhores armas ou aquele que tinha a maior habilidade
no seu manejo. A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a
superioridade intelectual já começou a substituir a força muscular bruta; mas o
objetivo final da luta permanecia o mesmo — uma ou outra facção tinha de ser
compelida a abandonar suas pretensões ou suas objeções, por causa do dano que
lhe havia sido infligido e pelo desmantelamento de sua força....
...Vemos, pois, que a solução violenta de conflitos de interesses
não é evitada sequer dentro de uma comunidade. As necessidades cotidianas e os
interesses comuns, inevitáveis ali onde pessoas vivem juntas num lugar, tendem,
contudo, a proporcionar a essas lutas uma conclusão rápida, e, sob tais
condições, existe uma crescente probabilidade de se encontrar uma solução
pacífica...
...O senhor expressa surpresa ante o fato de ser tão fácil
inflamar nos homens o entusiasmo pela guerra, e insere a suspeita,
de que neles exige em atividade alguma coisa — um instinto de ódio e de
destruição — que coopera com os esforços dos mercadores da guerra. Também nisto
apenas posso exprimir meu inteiro acordo. Acreditamos na existência de um
instinto dessa natureza, e durante os últimos anos temo-nos ocupado realmente
em estudar suas manifestações. Permita-me que me sirva dessa oportunidade para
apresentar-lhe uma parte da teoria dos instintos que, depois de muitas
tentativas hesitantes e muitas vacilações de opinião, foi formulada pelos que
trabalham na área da psicanálise?
De acordo com nossa hipótese, os instintos humanos são de apenas
dois tipos: aqueles que tendem a preservar e a unir — que denominamos
‘eróticos’, exatamente no mesmo sentido em que Platão usa a palavra ‘Eros’ em
seu Symposium, ou ‘sexuais’, com uma deliberada ampliação da concepção popular
de ‘sexualidade’ —; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos
como instinto agressivo ou destrutivo. Como o senhor vê, isto não é senão uma
formulação teórica da universalmente conhecida oposição entre amor e ódio, que
talvez possa ter alguma relação básica com a polaridade entre atração e
repulsão, que desempenha um papel na sua área de conhecimentos. Entretanto, não
devemos ser demasiado apressados em introduzir juízos éticos de bem e de mal. Nenhum
desses dois instintos é menos essencial do que o outro;
...os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente
contrária de ambos. Ora, é como se um instinto de um tipo dificilmente pudesse
operar isolado; está sempre acompanhado — ou, como dizemos, amalgamado — por
determinada quantidade do outro lado, que modifica o seu objetivo, ou, em
determinados casos, possibilita a consecução desse objetivo. Assim, por
exemplo, o instinto de autopreservação certamente é de natureza erótica; não obstante,
deve ter à sua disposição a agressividade, para atingir seu propósito. Dessa
forma, também o instinto de amor, quando dirigido a um objeto, necessita de
alguma contribuição do instinto de domínio, para que obtenha a posse desse
objeto.
... quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter
toda uma gama de motivos para se deixarem levar — uns nobres, outros vis,
alguns francamente declarados, outros jamais mencionados. Não há por que
enumerá-los todos. Entre eles está certamente o desejo da agressão e
destruição: as incontáveis crueldades que encontramos na história e em nossa
vida de todos os dias atestam a sua existência e a sua força. A satisfação
desses impulsos destrutivos naturalmente é facilitada por sua mistura com
outros motivos de natureza erótica e idealista. Quando lemos sobre as
atrocidades do passado, amiúde é como se os motivos idealistas servissem apenas
de escusa para os desejos destrutivos; e, às vezes — por exemplo, no caso das
crueldades da Inquisição — é como se os motivos idealistas tivessem assomado a
um primeiro plano na consciência, enquanto os destrutivos lhes emprestassem um
reforço inconsciente. Ambos podem ser verdadeiros.
...Gostaria, não obstante, de deter-me um pouco mais em nosso
instinto destrutivo, cuja popularidade não é de modo algum igual à sua
importância. Como conseqüência de um pouco de especulação, pudemos supor que
esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao
aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada.
Portanto, merece, com toda seriedade, ser denominado instinto de morte, ao
passo que os instintos eróticos representam o esforço de viver. O instinto de
morte torna-se instinto destrutivo quando, com o auxílio de órgãos especiais, é
dirigido para fora, para objetos. O organismo preserva sua própria vida, por
assim dizer, destruindo uma vida alheia.
...Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias uma
espécie de mitologia e, no presente caso, mitologia nada agradável. Todas as
ciências, porém, não chegam, afinal, a uma espécie de mitologia como esta? Não
se pode dizer o mesmo, atualmente, a respeito da sua física?
...Em todo caso, como o senhor mesmo observou, não há maneira de
eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los
num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra.
...Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto
destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista,
Eros. Tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os
homens deve atuar contra a guerra. Esses vínculos podem ser de dois tipos. Em
primeiro lugar, podem ser relações semelhantes àquelas relativas a um objeto
amado, embora não tenham uma finalidade sexual. A psicanálise não tem motivo
porque se envergonhar se nesse ponto fala de amor, pois a própria religião
emprega as mesmas palavras: ‘Ama a teu próximo como a ti mesmo.’ Isto, todavia,
é mais facilmente dito do que praticado. O segundo vínculo emocional é o que
utiliza a identificação. Tudo o que leva os homens a compartilhar de interesses
importantes produz essa comunhão de sentimento, essas identificações. E a
estrutura da sociedade humana se baseia nelas, em grande escala.
...O resultado, como o senhor vê, não é muito frutífero quando
um teórico desinteressado é chamado a opinar sobre um problema prático urgente.
É melhor a pessoa, em qualquer caso especial, dedicar-se a enfrentar o perigo
com todos os meios à mão. Eu gostaria, porém, de discutir mais uma questão que
o senhor não menciona em sua carta, a qual me interessa em especial. Por que o
senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a
guerra? Por que não a aceitamos como mais uma das muitas calamidades da vida?
Afinal, parece ser coisa muito natural, parece ter uma base biológica e ser
dificilmente evitável na prática. Não há motivo para se surpreender com o fato
de eu levantar essa questão. Para o propósito de uma investigação como esta,
poder-se-ia, talvez, permitir-se usar uma máscara de suposto alheamento. A
resposta à minha pergunta será a de que reagimos à guerra dessa maneira, porque
toda pessoa tem o direito à sua própria vida, porque a guerra põe um término a
vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens individualmente a situações
humilhantes, porque os compele, contra a sua vontade, a matar outros homens e
porque destrói objetos materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da
humanidade. Outras razões mais poderiam ser apresentadas, como a de que, na sua
forma atual, a guerra já não é mais uma oportunidade de atingir os velhos
ideais de heroísmo, e a de que, devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos de
destruição, uma guerra futura poderia envolver o extermínio de um dos
antagonistas ou, quem sabe, de ambos. Tudo isso é verdadeiro, e tão
incontestavelmente verdadeiro, que não se pode senão sentir perplexidade ante o
fato de a guerra ainda não ter sido unanimemente repudiada.
... Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a
guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos
obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos. E sendo assim, temos
dificuldade em encontrar argumentos que justifiquem nossa atitude.
Sem dúvida, isto exige alguma explicação. Creio que se trata do
seguinte. Durante períodos de tempo incalculáveis, a humanidade tem passado por
um processo de evolução cultural. (Sei que alguns preferem empregar o termo
‘civilização’). É a esse processo que devemos o melhor daquilo em que nos
tornamos, bem como uma boa parte daquilo de que padecemos. Embora suas causas e
seus começos sejam obscuros e incerto o seu resultado, algumas de suas
características são de fácil percepção. Talvez esse processo esteja levando à
extinção a raça humana, pois em mais de um sentido ele prejudica a função
sexual;
...As modificações psíquicas que acompanham o processo de
civilização são notórias e inequívocas. Consistem num progressivo deslocamento
dos fins instintuais e numa limitação imposta aos impulsos instintuais.
Sensações que para os nossos ancestrais eram agradáveis, tornaram-se
indiferentes ou até mesmo intoleráveis para nós; há motivos orgânicos para as
modificações em nossos ideais éticos e estéticos. Dentre as características
psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais importantes: o
fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida instintual, e
a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas conseqüentes
vantagens e perigos. Ora, a guerra se constitui na mais óbvia oposição à
atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização, e por esse
motivo não podemos evitar de nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos
mais nos conformar com ela. Isto não é apenas um repúdio intelectual e
emocional; nós, os pacifistas, temos uma intolerância constitucional à guerra,
digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau.
...E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da
humanidade também se torne pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser
utópico esperar que esses dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo
das conseqüências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um tempo
previsível, em que se ponha um término à ameaça de guerra. Por quais caminhos
ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa
podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha
simultaneamente contra a guerra.
Espero que o senhor me perdoe se o que eu disse o desapontou.
E assim, finalizou a conversa entre ambos, Freud e Einstein,
visto que a exposição no museu também chegara ao fim e as luzes se apagaram.
PS: Esse encontro nunca ocorreu no Memorial, exceto na minha
imaginação. Entretanto, essa troca se deu em cartas, de Einstein para Freud e de Freud
para Einstein, em 1932.
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