sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Habitar peles esfuracadas: dimensões do feminino em A pele que habito¹

de  Pedro H. Mendonça 

É preciso, antes de tudo, começar com honestidade. Se o presente trabalho toma como objeto - de estudo - um filme (a saber, A pele que habito, Almodóvar), a dimensão pulsional de minha escritura o toma mais como alvo ou destino da pulsão que como objeto. Trata-se de um pedaço de contorno através do qual a pulsão em mim se dobra em torno do objeto que lhe/me interessa. E nenhum objeto poderia encarnar mais propriamente o pequeno a, perdido junto do Real, que a mulher - talvez, mais propriamente, o feminino. Trocando em miúdos, sirvo-me das mulheres que habitam as peles de Almodóvar para nomear, a partir de sua montagem enquanto personagens e de suas relações com os homens do filme, aquilo elas denunciam da mulher: ora submetida às lógicas fálicas, como mãe ou como castrada, ora as desafiando no vazio do significante fálico que estrutura o simbólico.

Vale, então, questionar: quem são as mulheres em A pele que habito? É um espetáculo psicanalítico que a primeira a aparecer no filme é a mãe – Marilia –, embora ainda não saibamos deste parentesco, qual um de seus filhos, o cirurgião Robert, não saberá até o fim. A ela, no entanto, retornarei mais adiante, no momento em que importe tratar do lugar em que os homens – ambos seus filhos – têm as mulheres. Além de Marilia, há Gal e Norma, mãe e filha um tanto indistintas por entre o enredo. São, as duas, o grande objeto e a grande sina de Robert. Se o são, porém, como veremos, é sobretudo porque são também seu grande enigma. Como pano de fundo às três gerações que rodeiam Robert, há Vera? Afirmo sob um ponto de interrogação não só por não sabermos o quanto de fato Vera se torna mulher, mas sobretudo porque é ela mesma esta incógnita – provavelmente para o próprio Robert – que se espalha pelo filme sem poder ser precisada exatamente no tempo e no espaço.

Antes de todas estas, no entanto, há outra insígnia (feminina?), outra literalidade psicanalítica atuante não sobre Vera, mas sobre Vicente. Entre todo o mistério com que a personagem de Vera é apresentada, algo começa a se amarrar pela primeira vez depois de 1h15 de filme: Vicente desperta na mesa de cirurgia (com um olhar quase apaixonado para Robert?) para descobrir que sofreu uma vaginoplastia, punição pelo suposto estupro de Norma. Aqui a angústia de castração sequer precisa do órgão feminino no corpo da outra para se atualizar: estão realizadas, no próprio corpo, “as ameaças que provocou contra si, ao brincar com este órgão” (FREUD, 1996 [1933], p. 125). Se tanto se pode dizer, numa perspectiva feminista, contra a inveja do pênis, Almodóvar, já em 2011, denuncia, o mais literalmente possível, o quanto nossa imaginarização do falo no pênis ainda é operante.

É bem verdade que por enquanto não se trata propriamente da questão da mulher – Vicente ainda não é Vera –, mas tão somente do estatuto da vagina tomada enquanto ausência de pênis frente à subjetivação fálica de um homem e ao corpo social que insiste em dar a um órgão imaginário o estatuto que deveria ser próprio de um significante. Que acontece então a Vicente a partir daí? Quando chega, se é que chega, a se tornar Vera?

De fato, um giro estonteante acontece a partir da vaginoplastia. Na primeira hora de filme, Vicente é um homem cativo, acorrentado num porão, punição do crime que supostamente cometeu – supostamente na medida em que o próprio não se lembra se efetuou o ato ou não, e a cena é cortada no momento preciso: se um estupro é o ato sexual que se segue a uma negativa, Almodóvar nos faz saltar direto da negativa para o momento em que o rapaz se retira. Da castração em diante, a figura cada vez mais indefinível Vicente/Vera passa a habitar um quarto, no andar superior, e não só ter satisfeitas suas necessidades básicas, mas mesmo suas demandas mais humanas: do café da manhã aos livros de yoga. É curioso que por um lado Robert leva a cabo seu ato castrador no próprio dia da morte de Norma, mas de outro lado é justamente a partir deste ato que destitui Vicente de seu posto de homem que lhe roubou a filha, para incluí-lo na série das mulheres-objeto a serem desejadas e cuidadas.

Qual é este novo posto? Sob o olhar de Robert, podemos dizer que se trata da mulher que se reveste de significado fálico – e isso menos por ser objeto de sua criação do que por ser significante de seu desejo. Trata-se desta que, dada a impossibilidade do pequeno a, encarna o significante fálico que permite desejar sobre esta falta – refiro-me aqui à feminilidade enquanto semblante (RODRIGUES, 2008). E temos outra vez uma ambiguidade: de um lado, Vera é criatura de Robert, sua própria obra, signo de seu poder; de outro, a partir deste mesmo lugar, ela se torna objeto último de seu desejo, sobrepondo-se na série Marilia/Gal/Norma, apontada por Dombronsky (2013) inclusive em suas semelhanças físicas. Mais do que se sobrepondo, talvez encerrando a série. Afinal, eis em carne sua idealização última. Pergunta Vera:

Ainda tem algo que você queira mudar? — quase ‘ainda falta?’

Não.

Então acabou?

Eis o grande problema: acabou. A criação está feita, o objeto está pronto. Como desejar se nada mais falta? Algo acontece: logo em seguida Vera se faz sedutora, num jogo histérico de produzir desejo, a princípio jogo frustrado. Frustrado? Ainda que por enquanto nada se efetue em ato, ela não deixa passar: “eu sei que você me observa”. Aliás, parece que sempre sabe quando é observada, mas talvez incapaz de distinguir por quem: aos 27 minutos de filme, responde a Zeca pela câmera, indagando-o com os olhos. Pensava ser Robert?

De fato, em meio às seduções, se produz, neste primeiro nível, uma complementariedade no jogo dos sexos: ele a toma como objeto de/para desejo, ela se faz histérica e produz desejo. Trata-se mesmo do jogo dos papéis de gênero com que se desenrola o amor moderno: ele desejante, ela desejada. Aliás, daí em diante, pouco a pouco ela passa a se fazer desejável: entre seduções, roupas, maquiagem (que só surge no final do filme!), focos da câmera num decote e jogos de idas e vindas, os signos sociais da mulher-objeto se fazem cada vez mais presentes, talvez alcançando seu ápice quando Vera sai às compras.


Corto. É preciso questionar: trata-se tão somente disso? Parece que até aqui, no modo como descrevo, incluo Vera-objeto como suprassumo da série Marilia/Gal/Norma. Acontece que já deixei meu prenúncio: há outro aspecto de Vera, aquele que não se insere na continuidade da cadeia de mulheres, mas que se faz seu próprio pano de fundo: Vera-enigma, este feminino insondável que se aguenta em suspenso por todo o filme, sobretudo na sua primeira metade. Há algo aqui que se soma à mulher-objeto e faz dela não só objeto, mas sina. Sina de Robert, anunciada por sua insabida mãe já ao fim do filme: “parece uma criança, sempre te aconteceu igual com as mulheres”.

Mas, para tocar esta sina, é preciso uma pequena digressão que percorra a maternidade de Marilia, seu jogo incestuoso com Zeca, seu segredo quanto a Robert, a perversão de Zeca-Tigre e a (perversão?) de Robert. Quando a bizarra figura de Zeca fantasiado de tigre aparece, o incesto se encarna já de início num quase-beijo. No entanto, muito pouco se nota de uma atitude incestuosa ativa por parte de Marilia. Muito pelo contrário: a mãe nos dá a impressão de que nada pode contra o Tigre, pelo amor ou pelo ódio, pelo incesto ou pela castração. Suas tentativas quase inertes de pará-lo, quando este se determina a ir atrás de Vera, são literalmente amarradas na perversão do filho e caladas por um guardanapo – que “antes te cabía entera”, assim como dois minutos depois, estuprando Vera, que pensava ser Gal, lhe diz (num paralelismo sintático no original espanhol) que “antes te volvía loca”: sobreposição de oralidade e genitalidade, jogando com tamanhos e encaixes?

Se o perverso mantém o incesto ou o incesto produz o perverso é impossível responder pelo próprio filme, a não ser pela hipótese de Marilia: “são de pais diferentes, mas ambos nasceram loucos. São minhas entranhas, a loucura está em minhas entranhas.” De fato, também a Robert, algo da perversão foi transmitido. Ainda assim, se vem das entranhas de Marilia, o segredo sobre sua maternidade parece ter lhe garantido algo, talvez justamente algo da ordem do segredo, do enigma. Se tomarmos a série das mulheres-objeto cronologicamente, Marilia é quem a inaugura, e o faz em segredo. Entre seu desejo e seus lutos, a mulher para Robert se tornou, ela mesma insígnia do enigma, o qual abre a série com Marilia e a encerra com Vera. Não à toa, quando Robert reclama que todas as mulheres que opera fazem Marilia se lembrar de alguém, ela já sabe: não esta, ela é diferente. Profecia?

De todo modo, é esta recorrente denúncia de Marilia que é preciso acentuar, pois se refere precisamente ao cerne do argumento do filme: Vera-enigma. Repetidamente, comentaristas e analistas afirmam Robert como perverso (LA PIEL, 2013; ESTRADA, 2012; CAZALLA, 2014). É certamente inegável que seu grande experimento e sua grande vingança movimentam um gozo absolutamente perverso, e Cazalla demonstra de modo bastante interessante a crítica à própria perversão do discurso científico e técnico tecida por Almodóvar. Mas ao escutar o Tigre, este que é plenamente filho de sua mãe, o contraste com seu meio-irmão faz gritar uma diferença implacável. O Tigre rouba, invade e estupra. O Tigre não tem Outro, ele é a própria Lei desfrutando de seus objetos. Também Robert faz sua própria lei, desafia a bioética, transforma Vicente em “brinquedo” (na descrição do próprio Vicente) e não hesita em matar o Tigre. Mas tomá-lo como perverso é deixar passar em completa ignorância o fato de que, se não hesita em matar o Tigre, hesita sim em matar Vera. Aliás, a certa altura – depois que a obra perversa está acabada e a sedução histérica entra em cena – ele está de novo submetido a seus jogos. É sua sina, é a profecia de Marilia. Logo no início, e sem qualquer explicação no enredo, o leitreiro² “maternidade” ganha enorme foco logo antes da palestra do Dr. Ledgard. De fato, parece que o segredo de sua maternidade criou sua sina, mas também sua salvação: garantiu este ponto de enigma, este mistério Real que a perversão contornará, mas não submeterá.

Assim é que os dois homens apresentam, no filme, duas articulações possíveis do feminino. De um lado, Vera-objeto ora é boneca sexual da perversão de Zeca, ora é, sim, desejante, mas sob o modo histérico de um se fazer mulher para ser desejada por Robert, selando a série Marilia/Gal/Norma/Vera-objeto. De outro lado, Vera-enigma denuncia algo do feminino que transcende o desejo fálico. Trata-se deste pano de fundo, que mal se sabe quem é ao longo de toda a primeira hora de filme, desta personagem ao mesmo tempo destituída de subjetividade, mas também articuladora de toda subjetivação pensável no enredo (para homens e mulheres!). É a mulher enquanto indefinido. Indefinição esta que alcança seu ápice não em Vicente submetido, nem em Vera de maquiagem e salto alto, mas no ponto em que não se pode nomear nenhum dos dois. 1h22: Vicente/Vera, não à toa vestida em sua segunda pele e sua máscara, foge de Robert pela casa, e não escapa. Interessa menos a perseguição em si do que esta figura impensável, que não pode mais ser Vicente, mas ainda não é Vera. Até mesmo sua voz é mais infantil do que masculina ou feminina. É a figura que invoca a indagação que Almodóvar nos impõe acerca de Vera desde o início: quem é ela?

Esta articulação do feminino enquanto enigma parece falar de algo que antecede a própria proposição freudiana de que, a princípio, “a menininha é um homenzinho” (FREUD, 1996 [1933], p. 118) que posteriormente terá de inverter sua relação com o falo para se fazer mulher-desejada já na ordem fálica. Não caberia aqui adentrar as minúcias de um feminino que escapa à própria inscrição do falo, tal como Lacan o desenvolve, mas vale sim notar que, se do lado masculino o desejo se inscreve ao modo fálico, do lado feminino ele sempre pode também se submeter a tal dinâmica, sob a égide da sedução histérica, mas algo restará. Irigaray (2017) nos ajuda com uma distinção fecunda: se a feminista pós-lacaniana busca um modo de falar deste resto como um falar-mulher, também não deixará que este falar-mulher se confunda com um falar histérico. Afinal, a histeria é já o feminino submetido ao fálico, é já Vera-enigma transformada em Vera-objeto, que não fala-mulher. Ao contrário, no falar histérico, “isso fala como sintomas de um ‘isso não pode falar a si nem sobre si’” (IRIGARAY, 2017, p. 156).

Este, sim, é o grande enigma de Robert – provavelmente de todos homens, e da maior parte das mulheres. Enigma que se atualiza e se refaz na série das mulheres-objeto Marilia/Gal/Norma, tal como o falo se faz significante de uma falta, se assenta sobre a perda do objeto a. Mas Vera está além do aprisionamento fálico do gozo, e até o fim deixa sua questão: o assassinato de Robert estabelece a perdição final do médico no feminino ou, ao contrário, a efetuação radical de sua sina e resposta de seu enigma? E, quanto a Vicente/Vera, de fato se tornou Vera? E, se sim, se tornou histérica ou se fez num constante devir-mulher indefinível? E a falicidade de Vera assassina é resto do masculino Vicente ou é apropriação feminina de uma femme fatale, que não seria nova em Almodóvar (Rodrigues, 2008)? O fim reedita este mistério insondável. Dombronsky (2013) vê uma androginia em Vicente já de início, que honestamente não pude encontrar, a não ser quando aparece debaixo da cama para dar fim em Marilia (e encerrar a série de mulheres-objeto). E toda a composição a partir daí será ambígua: ainda que andrógina, mata maquiada. Veste sua jaqueta de couro vermelho, sobre o vestido que desejara para Cristina – chega em casa e se apresenta no masculino: “Sou Vicente, fui raptado”.

E é certo que não se poderia encerrar nem o filme, nem este trabalho a não ser com interrogações:

Lacan dirá que a mulher rejeita uma parte essencial de sua feminilidade na mascarada, já que ela não estaria totalmente assujeitada à função fálica. Em última análise, poderíamos chamar de semblante aquilo que tem função de velar o nada. Nesse sentido, o véu é o primeiro semblante. Temos como testemunho as artes, a história, a antropologia, que revelam uma preocupação de velar, cobrir a mulher. Por que não se pode descobrir a mulher? Ela representa a castração, ou seja, a mulher é velada porque, ao se retirar o véu, encontra-se o nada. (Rodrigues, 2008, p. 95)

Pode ser que se trate realmente deste impasse. Seria mesmo possível libertar a mulher do fálico, seja o fálico da femme fatale, seja o fálico a que está submetida a sedução histérica? Aquilo, amulher (termo de Irigaray, 2017), que não se inscreve no fálico é, propriamente, algo? Ou arrancando qualquer referência falogocêntrica da mulher, encontraríamos simplesmente o nada?

Eis o questionamento que move minha escrita, e provavelmente ainda a moverá por algum tempo. Irigaray (2017) demonstra que definir a mulher como indizível ainda reproduz uma linguagem falogocêntrica (o neologismo é da autora), por mais que a liberte do sintoma histérico. Afinal, quem não pode falar d’amulher, não pode justamente porque fala a partir de uma referência fálica, à qual amulher sempre escapa. Será, então, possível inventar uma linguagem, um modo de simbolizar, que fale-mulher? Irigaray tenta, e nos deixa um vislumbre de que – para além do falo e para além do nada – algo pode nascer Quando nossos lábios se falam³.

¹ Trabalho apresentado como requisito semestral no curso Semiótica psicanalítica: clínica da culutra, COGEAE/PUC-SP.

² Logo na primeira escrita do trabalho, um inconsciente leiteiro se impôs sobre meu letreiro. Faço questão de não o corrigir.

³ Título do último texto publicado em Ce sexe qui n’en est pas unEste sexo que não é só um sexo, na pobre tradução para o português (IRIGARAY, 2017, p. 231-246). Quando nossos lábios se falam é, no fundo, sua grande abertura feminina e consumação de seu falar-mulher.

Referências bibliográficas

CAZALLA, Camilo. Comentario sobre La piel que habito. Conclusiones Analíticas, La Plata, v. 1, n. 1, p. 273-277, 02 set. 2014. Disponível em: http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/39392. Acesso em: 14 jun. 2020.

ESTRADA, Cinthya. La piel que habito y la cuestión de La mujer como enigma. 2012. Disponível em: http://www.nel-mexico.org/articulos/seccion/varite/edicion/Cine-y-Psicoanalisis-una-mirada-hacia-lo-imposible/514/La-piel-que-habito-y-la-cuestion-de-La-mujer-como-enigma. Acesso em: 14 jun. 2020.

FREUD, Sigmund (1933). A feminilidade. In: Obras completas (Edição Standard). Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XXII.

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

IRIGARAY, Luce. Este sexo que não só um sexo: sexualidade e status social da mulher. São Paulo: Senac, 2017.

DOMBRONSKY, María Nélida. La piel que habito I (Almodóvar) – Cine y Psicoanálisis. (2013). (9m43s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=323&v=hShssbGTdAI&feature=emb_logo. Acesso em: 21 jun. 2020.

RODRIGUES, Ana Lucilia. Pedro Almodóvar e a feminilidade. São Paulo: Escuta, 2008.

Pedro H. Mendonça é graduado em Psicologia pela PUC-SP, especializando em Semiótica Psicanálitica pela COGEAE (PUC-SP), com formação teórico-prática em Acompanhamento Terapêutico. Colaborador em Instituto Dasein e membro da Oficina Clínica de Psicanálise.

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