domingo, 30 de agosto de 2020

PANTERA NEGRA - Branca em filme de preto

de Vera Iaconelli

fonte: Folha de S.Paulo - 13.mar.2018 às 2h00*

Como seria criar duas branquelas com capas de revista negras, modelos negras, bonecas negras?

Já faz 20 anos que eu crio duas branquelas. Nada mal quando se vive num país de brancos. Circulamos entre espelhos o tempo todo. Os âncoras de jornais são brancos, as capas de revista são brancas, as top models são brancas, a gigantesca parede de brinquedos é de bonecas brancas, os colegas da escola e os professores são brancos, políticos, atores e atrizes também. É claro que temos a cota racial. Um negro (servindo), um oriental (um tanto deslocado) —e, talvez, um índio?— aqui e acolá. 

Nossa pele clara, nosso cabelo liso, nossos olhos claros. Como somos lindas!

E eis que minha filha chega do cinema radiante, depois de assistir "Pantera Negra" —filme que está dando margem a um movimento político de autoafirmação dos negros estadunidenses. Independentemente da história mirabolante e quase sempre patética dos "blockbusters" do gênero, o filme é um marco: consegue, sem falar de escravidão ou da condição racial, colocar o negro como protagonista de uma história de super-heróis. Questão política de quem vem ocupar seu lugar sem ter que pedir licença. Dentro disso, a estética faz sua marca: os cabelos, os tons de pele, a derme grossa sem defeitos (a celulite tão conhecida da mulher branca), as roupas, lábios, músculos. A beleza é negra! Só faltou dizer, maldito DNA de branco!

Crio, já faz 20 anos, duas branquelas e antes disso fui eu mesma criada entre brancos —num país majoritariamente negro (pode apedrejar)-- onde um filme como esse não era pensável e nem as cotas existiam. 

Invertamos a fita. Como seria tê-las criado com âncoras de jornais negros, capas de revista negras, top models negras, a gigantesca parede de brinquedos de bonecas negras, colegas da escola e os professores negros, políticos, atores e atrizes também? Sim, a beleza seria negra. E sairíamos correndo a encrespar os cabelos, colocar turbantes, torrar no sol (não para parecer que temos acesso a férias num iate, mas em busca da cor certa), aumentaríamos os beiços e alargaríamos o nariz com cirurgias plásticas. Desde que o mundo é mundo, virtudes e vícios são associadas à raça, à condição social e ao gênero —associação repetida à exaustão a cada oportunidade que apareça. Em "Pantera Negra" a virtude, a paixão, o sexo, o poder, a inteligência, a força, a ética, a maternidade, a honra é negra, invertendo o lugar recorrentemente associado às pessoas brancas.

Também fica evidente no filme o lugar da mulher na fictícia e idílica Wakanda, onde se passa a história: a guarda real é feminina e as protagonistas femininas não são secundárias. Bingo outra vez.

Lembramos que o filme não é brasileiro. Porque para realizar tal aposta, há que se ter mais do que uma forte indústria cinematográfica. Há que se admitir que a questão racial está encoberta pela cordialidade e pelo mito da miscigenação espontânea brasileira. Povo mestiço e feliz que estaria sendo envenenado pela ideia de racismo. Teremos que ser super-heróis para encarar e lidar com nossos problemas históricos e sociais?

Quando vemos jovens negros brasileiros paulatinamente assumindo sua beleza, seus cabelos, traços, história e costumes, estamos apenas presenciando uma moda entre outras ou estamos vendo mudar o eixo de nosso velho mundo em nova direção? Façam suas apostas. 

(*postagem autorizada pela autora)

Vera Iaconelli é Psicanalista, Mestre e Doutora em Psicologia pela USP, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro de Fórum do Campo Lacaniano SP, coautora do livro: “Histeria e gênero: o sexo como desencontro” (Editora nVersos, 2014), autora do livro: “Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função” (Annablume, 2015) e “Criar filhos no século XXI” (Contexto, 2020), Diretora do Instituto Gerar, colunista da Folha de São Paulo.

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