de Silvia Marina M. Paiva
Falemos um pouco do diretor. Joachim Lafosse é um
jovem diretor Belga que tem se tornado especialista em denunciar as mazelas da
família contemporânea, sua marca segue, filme após filme, provocando o seu
público através de processos identificatórios que mantem em suspensão uma
inquietação, um incomodo em seu espectador. Parte-se do que poderia ser o que
restou da família tradicional burguesa e toda sorte de coisas pode surgir e
surpreender.
O que provoca a angústia no espectador é o fato de
tudo se passar com pessoas “como outras quaisquer”, ou seja, se assim foi com
tal personagem, que era alguém tão “normal” também estou sujeito a viver a
mesma coisa! Em geral, seus filmes mostram o cotidiano de pessoas “comuns”,
muitas vezes, de qualquer família, seus afetos e seus desafetos, seus ditos e
seus não ditos, olhares e tensões que ficam em suspensão inquietante até que
seus desfechos denunciem o que não estava declarado e o drama se apresenta. De
modo escrachado ou em surdina, as questões familiares vão se descortinando em
diferentes presenças, diferentes ausências, desamparos e abandonos, em falas e
em silêncios, em amores claustrofóbicos ou ódios libertários!
“Aos nossos limites”: Essa é a dedicatória de
Lafosse, nos preparando para os testes a que pretende nos submeter.
O diretor prioriza as cenas em ambientes fechados,
trazendo o aprisionamento de seus personagens às relações cotidianas e banais
da vida. Com um uso bastante criativo da câmera torna o espectador cúmplice dos
momentos cotidianos dolorosos, tensos e de ressentimentos em seus personagens,
gerando um profundo desconforto em sua assistência, que é todo o tempo
convocada a fazer um juízo próprio, colocando em xeque seus valores, sua moral
familiar e sua própria história. Ele não propõe nada muito pronto e aposta na
capacidade do público em inferir e decidir sobre a moral da história, mas
avisa: ”Aos nossos limites”.
Antes
de pensarmos no filme propriamente dito, pensemos no seu título: afinal, o que
quer dizer “Propriedade Privada”?
Sabemos que propriedade
privada é a expressão que se usa para dizer de algo, como imóvel, terras etc.
que não pertence ao poder público.
Mas,
segundo o dicionário temos que:
Propriedade, entre outras coisas,
significa a coisa possuída; a coisa cuja posse pertence por direito a alguém.
Também significa qualidade do que é próprio ou aquilo que é próprio de alguma
coisa, que a distingue de outra. Qualidade especial ou virtude particular;
caráter. Ação, comportamento etc. apropriado para determinado fim ou
determinada situação. Na química é característica de uma substância que lhe
confere uma particularidade.
Privada quer dizer vaso sanitário.
Mas como feminino de privado é um
adjetivo que quer dizer a quem se privou de algo ou a quem falta
algo; despojado, desprovido, destituído; que pertence a um indivíduo
particular; que é pessoal e não diz respeito ao público em geral; que é secreto
e confidencial, também se diz de lugar calmo, sem muitas pessoas, que não é
permitido a todos, que somente um número pequeno de pessoas tem acesso.
Como
também sabemos que falamos de Lafosse, e ele não usa qualquer expressão para
qualquer coisa, entre o público e o privado de Lafosse estamos certamente
falando da ordem do que é íntimo e reservado e do que pode ou não ser mostrado,
nesse sentido o eu e o outro, o que é próprio e o que não é, isso tudo se
mistura com a casa em questão no filme.
A casa, claro, é um significante maior, representa a “estrutura”, é
através da casa que Lafosse denuncia o que há de mortífero numa estrutura de
relações onde a intimidade é confundida com a invasão, onde o eu e o outro se
atravessam, se misturam e se invadem, impossibilitando a configuração
identitária e anulando cada indivíduo como sujeito de seu próprio eu e de seu
próprio desejo.
O que poderia parecer excesso de intimidade, na verdade revela a falta
de limite entre um e outro. Isso aparece nas cenas do entra e sai de um banheiro
que não parece ter porta, nos jantares silenciosos, na cena em que Thierry
revira a bolsa da mãe e ela reage como se fosse muito normal, na vida que
Pascale planeja para os filhos sem que eles próprios saibam. (Quando diz a
François que ele vai arranjar um emprego e o irmão vai acabar os estudos e
assim por diante).
O
filme gira em torno da tal a casa, à beira de um lago, no interior da Bélgica,
onde tudo parece muito calmo e onde nosso imaginário diz que não se pode ser
infeliz ali. Nela moram Pascale (Isabelle Huppert) e seus dois filhos gêmeos,
Thierry e François. Esses dois se recusam a sair da adolescência, em especial
Thierry, mantendo uma simbiose entre ambos e os dois, cada um a seu modo,
colados com a própria mãe.
O pai
dos meninos está separado da mãe, aparece como provedor e só, na maior parte
das vezes entra com o dinheiro, tem pouca relação afetiva significativa com os
meninos e se apresenta também como invasivo a tal propriedade, quando Pascale o
proíbe de ir à casa e diz que se quiser ver os meninos eles é que tem que ir à
casa dele. Depois disso só aparece duas vezes dentro da casa, uma quando
encontra Pascale deprimida no quarto e ela o expulsa mais uma vez, e depois, só
nas cenas finais do filme. Decididamente, ele está fora dessas relações.
No início do filme é para François
Que a mãe pergunta sobre a roupa
e o sutiã que está experimentando. Thierry a critica e entra reparação, sua
ambivalência aparece entre “parece uma puta ou ficou bonita”.
Em seguida a isso é que aparece o pai e é expulso da relação entre eles:
“só faça a transferência do dinheiro” e “você pode vê-los, mas não aqui”, diz
Pascale, sinalizando claramente que o homem não esteja entre eles. E o homem
denuncia: “Sua mãe quer vocês só para ela!”. Ela o manda procurar um terapeuta,
eu me perguntei qual deles mais precisaria de um.
Pascale começa a namorar Jan, um vizinho. Inicialmente
os gêmeos riem da mãe, tornam grotesca a possibilidade dela ter algum interesse
em sexo ou em outra pessoa que não eles. A ambivalência entre intimidade e
invasão é denunciada nas brincadeiras dos gêmeos.
Mas
essa relação vai desviando o seu olhar dos meninos e investindo sua libido em
si mesma e nessa nova relação, começa a comprar roupas, arrumar o cabelo.
Cobrada pelo namorado, ela tenta entender que os filhos cresceram e começa a
planejar uma vida com Jan longe dali, cogita vender a casa para abrir uma
pousada em outro lugar.
Se no
início os meninos não se importavam com o namoro e até brincavam com isso, com
a proposta de venda da casa, junto com o fato da mãe pensar em ter uma vida
própria, eles começam a senti-lo como uma ameaça que os separaria dela. Na
verdade, o que não aguentam é o fato de ela existir para além deles, Thierry se
revolta e reage com violência, François resolve a questão dizendo que iria com
ela. Neste ponto começam as contradições entre os eles.
Thierry
tenta incluir o pai na problemática, buscar refúgio na garantia que ela não
possa mudar as coisas. Mas sempre que o pai é inquerido pelos filhos ou por
Pascale para que assuma a função paterna, ele se isenta de qualquer posição,
parece que nunca acaba de se vingar por Pascale tê-lo deixado. Deixa isso bem
claro quando disse que ela tinha escolhido a separação, agora que arcasse com
as consequências.
O que
é inquietante no filme é que o diretor registra as relações familiares e o
cotidiano dessa família, através de gestos e olhares, com uma tensão suspensa
no ar, onde os não ditos são mais determinantes do que as palavras. Na verdade,
na maior parte do tempo, as comunicações mais importantes entre eles estão
nestes gestos e olhares, ou que no que está para além do discurso disfarçado de
superficial ou nos berros do seu dia a dia. Os não ditos denunciam que entramos
num terreno movediço, onde falta a palavra.
E onde a palavra não é dita, é o silêncio que comunica o que deveria estar
escondido, mas transborda com uma força destruidora e denunciadora. É assim que
Lafosse denuncia a falência da família tradicional burguesa, nada mais pode ser
como antes, não é a separação do casal que está em questão, ao contrário, é a
não separação entre a mãe e os filhos, o que gera a falência da sustentação de
posições subjetivas dos membros da família.
A gemelaridade já levanta questões importantes
quanto à constituição de cada um, mas eles não são gêmeos idênticos, na verdade
é só adiante que descobrimos que são gêmeos. Assim, é na diferença e não na
semelhança que eles se constituem. Quando estão sozinhos, compartilham coisas,
jogam vídeo game, ping-pong, andam de moto juntos, lavam-se um ao outro, matam
os ratos juntos. Mas na presença da mãe a rivalidade se apresenta tensa e
competitiva. Thierry diz que François não queria sair da barriga da mãe, que
foi o primeiro a ser gerado, de vez em quando o manda “voltar para a mamãezinha”.
François se cala sempre, exceto quando precisa proteger a mãe dos excessos do
irmão.
Thierry tem uma namorada, nesta relação descobrimos
um garoto que não sabe postergar, não aguenta o não, é imediatista e não tem
nenhuma resistência à frustração, ao que reage sempre com violência.
François se apresenta reservado, é mais terno com a
mãe, mas sem vida própria, guardando para mais tarde a demonstração de uma
inveja incontrolável da sexualidade ativa do irmão.
Durante um jogo de ping-pong, Thierry anuncia que a sexualidade de
François é solitária. François quer saber do sexo do irmão, Thierry responde
que não pergunta como ele se masturba. “Cale a boca e vamos jogar” é a resposta
para a tentativa de intimidade que acontece ali. Assim, Lafosse deixa bem clara
a diferença entre intimidade e invasão. Aliás, calar-se nessa família é a
modalidade privilegiada de reação a um conflito.
Não sei prestaram atenção, mas não há música até a
cena final, nem nos créditos, e existem poucos ruídos externos neste filme,
tudo de dá de forma compassada e cotidiana. São os ruídos internos e não ditos que geram
uma inquietação que promove e denuncia a tensão entre eles.
Pascale
pede socorro e convida Jan para jantar, eles estão juntos na cozinha (o
que não acontece com os meninos quando ela cozinha), Jan faz piadinhas e os
meninos olham com cara de recriminação, assistindo a mãe existir com Jan, que
lhes diz saber que Pascale faz tudo sozinha, é maravilhosa e deu sua visa por
eles. “Há um momento que os filhos têm que entender que os pais já fizeram tudo
por eles e tem que pensar em si novamente” - Diz Jan.
Thierry se revolta porque a mãe coloca outro entre eles, e recusa. Então
Pascale começa por panos quentes, como sempre.
François permanece quieto, o irmão o intercepta quando é inquerido, ele
apenas obedece à mãe e come.
Jan se retira e devolve o problema para Pascale, percebe que estava
demais ali, não cabe ninguém entre eles.
Pascale,
com o namorado, até tenta espiar o mundo, tenta olhar para fora, mas não
consegue. No lugar de falar, adoece. No lugar de se mexer, deprime. Os
movimentos de Pascale acabam por levar à tentativa do não movimento: “calem-se,
não denunciem nada... não tragam a tona esse ruído!!!” Como na cena em que
tenta impedir que acontecesse uma conversa, que ela mesma tinha pedido, entre
Jan e os meninos, mas no fim fica “pondo panos quentes” e pedindo que todos
comam em paz e quietos.
Ela
demonstra suas tentativas de escapar disso tudo em atitudes esporádicas em seus
movimentos para fora da depressão, delata os anos que passou existindo apenas
para seus filhos e cobra: “Passei quinze anos me anulando por vocês”, diz ela.
O que não se dá conta é o quanto funesta foi a consequência de ter aberto mão de
si mesma por tanto tempo, parece fracassar na tentativa de voltar a ser algo
além de mãe, talvez também tenha fracassado na tentativa de ser boa mãe,
afinal.
Ressentidos
eles cobram dela que faça o que ela sempre exigiu que eles fizessem:
“acomodem-se, não façam nada que promova qualquer mudança, calem-se e mantenham
isso que parecia ser a paz depois da turbulência que antecedeu a separação”.
Eles cobram dela a responsabilidade por fazê-los felizes.
Ressentida,
ela cobra deles que permitam que ela exista para além deles, sem perceber que
construiu sua própria armadilha.
Aliás,
é bem esse o problema, muitas pessoas responsabilizam os demais pela sua
felicidade e por suas mazelas. É assim também que muitas pessoas chegam a um
analista, culpabilizando os outros pelos seus problemas, a primeira pergunta
que faço com meus pacientes, de diferentes formas, é perguntar: “qual a sua
responsabilidade nisso que te faz sofrer”? Quando a pessoa começa a poder
formular essa pergunta a si mesma, então começa a análise, e vamos à busca de
fazer outra coisa com a vida, além de sofrer com ela.
Voltando
ao filme. No jantar, quando se discute a venda da casa para abrir uma pousada. Ela
tenta achar uma saída para sua prisão, Thierry avisa que se ela não quiser
destruir tudo, que deixe tudo como está. – Ela fala de seus traumas de
casamento, os meninos sobre carro e queijo ralado. Pascale parece falar
sozinha, fecha o diálogo dizendo “se vocês ficarem com seu pai, eu me mato”... Depois
disso o vídeo game denuncia a superficialidade com que eles se implicam na
questão.
Ela inicia a avaliação do imóvel, mas não banca seu desejo e adia os
planos quando os filhos chegam. Ela só é senhora de si quando eles não estão.
Mas sabe que se não reagir, morrerá. É o que eles querem: “mate seu desejo”.
Essa é nossa estrutura!
É o pai quem guarda a escritura da casa e decide “não vamos deixar que
ela venda a casa, eu deixei que ela ficasse lá, mas a casa é sua”. Nessa cena,
o pai dá a entender que ainda tem a chave da casa, além da escritura. À distância,
o pai mostra que detém algum poder, claro, pelo dinheiro. Isso já estava claro
quando a mãe diz que está falida e Thierry diz “Você se dá ao luxo de comprar
lingerie, mas quando seus filhos precisam está falida” e apresenta à François o
dinheiro que o pai mandou.
Na hora das tensões, Pascale sempre muda de assunto, imprimindo a marca
da superficialidade, com diálogos como: “passe a salada,” “passe a água”. Mas
não é só ela, quando um deles se coloca, outro diz deixa para lá.
Assim como através do vídeo game do início do filme, os garotos também
silenciam o conflito. Quando, na luta contra a depressão, Pascale anuncia que
vai sair à noite e os meninos perdem a contagem do jogo, mostrando o quanto se
desconcertam quando ela os exclui. Mas logo se unem para matar ratos a tiros.
Mas
esses são conflitos tão comuns. Aparentemente o que se apresenta é uma família
como qualquer outra, com um cotidiano habitual qualquer. A dramaticidade não
está no que é dito, a turbulência vem à surdina e num crescente. Isso em nada
contradiz o que é habitual, às vezes as tensões das relações humanas aparecem
nos barulhos, às vezes nos silêncios.
De
qualquer modo, nos transbordamentos a inquietação do espectador é menor que nos
silêncios longos que se apresentam no filme. Isso acontece porque a maioria das
pessoas costuma preencher os espaços para que o vazio nem se instale. Mas
sabemos que a força dos não ditos familiares é maior e mais determinante que do
que se pensa, toda a cultura familiar se sustenta nisso, apesar de nada estar
verbalmente declarado.
O que
nesse filme Lafosse difere do habitual de outros diretores, é que ele não nos
dá possibilidade de procurar inocentes e culpados, como se isso deixasse de ser
importante. E na verdade, não é mesmo. A impressão que resta é que ninguém é
bom e ninguém é mal, todos podem ser corajosos ou covardes, os pais podem ser
presentes e omissos, nenhum julgamento estanque finaliza ou define ninguém.
Isso
se dá porque Lafosse nos envolve no ponto de vista de cada personagem, e por
cada um podemos ver as consequências das dificuldades financeiras, dos rancores
e das rivalidades crescentes entre os gêmeos, das motivações para a separação
dos pais e de seus ressentimentos. Ninguém é totalmente santo e nem totalmente
carrasco e é sempre possível relativizar as posições afetivas de cada um deles,
todos são agentes e vítimas de sua própria história. Assim, ora nos
identificamos com um, ora com outro e assistimos tudo como se cada personagem
do filme apresentasse um pedaço de nós mesmos.
Essa característica
torna os efeitos psíquicos do filme bem interessantes, no sentido que nada se
apresenta pronto, Lafosse constrói o enredo de modo que ele não te leve para um
ou outro lado, você é quem precisa criar, não há explicações, não há
continuidades e tudo se passa dentro dos ambientes banais da vida. Na vida
privada dessas pessoas, não aparece o trabalho, o estudo, ou outras coisas que
tanto disfarçam as tensões das intimidades, ficam só os recortes, os
intervalos.
Por
isso volto a dizer que quando a coisa gira em torno da venda da casa, não é
propriamente pelo imóvel que os conflitos se apresentam, é que a possibilidade
da venda da casa denuncia que o que há de doentio no privado, no íntimo, na
estrutura constituinte de relações afetivas e cheias de rusgas dessa família. É
como se ameaçassem retirar a moldura de um espelho quebrado, ele se
estilhaçaria em cacos. E os cacos, de fato aparecem no final do filme.
Em
todas as famílias temos questões semelhantes, o que torna essa família doente,
em especial, é justamente o fato de tudo ser colocado de lado, disfarçado,
silenciado. É isso que provoca as explosões.
O
filme parece trazer uma história completa, mas não traz, há sempre a
possibilidade do equívoco, nada se tem da história prévia, não se tem alusão de
futuro, o filme promove uma ruptura com o simbólico, no fundo nada se apresenta
pronto. Embora não pareça, não há começo, meio e fim. Nada se passa “como se”, as coisas apenas se
sucedem e pronto. Isso nos joga num registro imaginário dominado pela cena, o
problema é que a cena é a doméstica e é comum todos nós. É isso que provoca os
processos de identificação, ao sermos jogados de um para o outro o que vem a
tona são sentimentos totalmente ambivalentes, e isso gera angústia.
O
cinema, muitas vezes, gera um “como se”, “como seria se fosse” e a fantasia, da
ordem do registro simbólico, se encarrega de preencher as pequenas lacunas para
ligar uma coisa à outra. Estamos
acostumados com filmes que apresentam um acumulo de imagens, sons e cenas
completas. Não é o que propõe Lafosse, ele vai apresentando as cenas
vagarosamente e provocando seus resultados.
Lafosse
não apresenta a fantasia, ele apresenta a vida crua, em imagens, no fundo, ele
apresenta apenas as lacunas. Não há como
ligar uma coisa à outra, porque não há uma coisa e outra coisa, há o intervalo
entre elas, o espaço, o vazio, a falta. É assim que consegue filmar o
indizível, os não ditos e os afetos inomináveis.
Existem
pouquíssimos sons nas cenas, o que ouvimos são os passos, as portas, o ranger das
madeiras, notem que além de não haver música, existem muitas cenas nas quais as
pessoas estão caladas, tudo é feito de modo que os ruídos internos e os
sons das relações se apresentem, as cenas silenciosas conseguem
expressar mais de condição existencial dos membros dessa família do que quando
falam. É impressionante como em imagens, Lafosse mostra que o silêncio fala
mais do que as palavras. Nas pausas ou em alguns transbordamentos
explosivos aparece o jogo das tensões, como os gritos de Thierry, o momento que
ela lhe dá uns tapas, ou quando François o manda calar-se. Logo depois dessas
situações, o silêncio imediatamente se reinstala.
Também nossos próprios silêncios são convocados quando assistimos ao
filme, Lafosse consegue isso evitando cenas muito explicitas e diálogos muito
completos, ele deixa muitos subentendidos, deixando a tarefa de completá-lo ao
espectador.
Lafosse, assim, nos implica no filme, nos impondo algumas perspectivas
pelo ângulo de filmagem. Na cena do banheiro, quando Thierry escova os dentes
olhando pelo espelho a mãe tomando banho, por exemplo, nós somos o espelho.
Chama
a atenção que as coisas mais profundas apareçam mais nos gestos e nos olhares
de cada um do que nas palavras. Ela sai sem despedir, eles entram sem cumprimentar,
eles comem disfarçando as tensões com cortes em falas superficiais, do tipo me
passa a salada.
Como
Lafosse quase não mostra a vida lá fora, fica como se as coisas não existissem,
o mundo fora da propriedade fica representado apenas pelo namorado da mãe, que
apresenta a ela o fato de que se pode ter um sonho, um projeto de vida, (quando
lhe propõe abrir uma pousada); apresenta o prazer no belo (quando, juntos,
organizam os pratos do jantar), na comida, no passeio e nos amigos. Ele poderia
ser um isnoquel para que ela respirasse, para que saísse do sufocamento, tenta
tirá-la desse afogamento em amores e cenas familiares mortíferos, e não sabemos
se foi assim, afinal. Não fica claro. Quando, no final, ele pergunta à Pascale
se ela quer que ele fique, ela dá de ombros.
Em
dado momento, Pascale resolve deixar os filhos sozinhos, eles estão entregues
às suas rivalidades e ela se vai para uma casa que não sabemos bem de quem ou
que tipo de relação tem com ela. Mas, não sem antes atestar a infantilização dos
garotos através da solicitação de que o pai, afinal, tente cumprir sua função e
cuide deles; mas ele não faz parte daquela dinâmica e não tem ideia que o
crescimento dos gêmeos esteve impedido pela simbiose mortífera da qual ele
próprio fora excluído anos antes. Assim, ele também lhe devolve o problema.
Mas o
pai erra na aposta, eles não estão crescidos como ele pensou e tampouco podem
se virar sozinhos como declarou.
No
início, a mãe garantia alguma ancoragem, que foi perdendo efeito de contenção
dos afetos familiares, ela perde também essa posição subjetiva e resolve ir
embora.
Enquanto Pascale assiste outra relação de mãe/filho sem pai, na ausência
dela, Thierry se mostra um pouco mais autônomo e tenta se virar sem a mãe,
aparecem fazendo coisas, mas sempre separados ou brigando, apesar das
tentativas de tocar a vida, a convivência deles na casa vai cada vez mais se
desorganizando.
Quando a namorada de Thierry diz que eles devem ser superunidos, eles se
calam, já não tem a resposta. Ela comenta sobre eles se parecerem com os pais:
Thierry é mais o pai, François mais mãe, eles constatam.
Mas em casa, e na ausência da mãe, Thierry tenta ter relações com a
namorada e François se faz presente, interrompendo os amantes com barulhos da
moto.
De manhã, François conversa animadamente com a namorada do irmão, mas
Thierry chega e instala o mau humor, provocando a saída de François. No sofá,
Thierry tenta seduzir a namorada que o repele, François pergunta se ele precisa
de uma mão. O ciúme é deflagrado, há outra mulher na disputa.
A garota se vai e François tira sarro do irmão, dando início a uma briga
física, isso não era incomum, mas essa foi sem precedentes. Na briga Thierry
empurra o irmão contra uma mesa de vidro e ele cai, inerte. Não se sabe se
morre, porque até a morte fica em suspensão, nada sobre ela pode ser dito, nada
em relação à morte pode ser feito.
Thierry comunica o acidente ao pai e foge da cena, também ele se
transformou em cacos.
O que
acontece é que na ausência total da âncora, o silêncio se transformou em uma
explosão e fez transbordar o drama familiar que esteve em suspenção. A
rivalidade entre eles que era crescente, antes pela mãe, agora na ausência da
mãe, explode.
Assim,
a história se apresenta contando a história banal, de uma família comum, que
pelos afetos represados e sem possibilidade de simbolização através da palavra,
provoca um desfecho incomum e nada banal, uma passagem ao ato! O
transbordamento!
Mais tarde, pai não fala nada a respeito com Thierry, mas a mãe o agride
fortemente, ele grita e a xinga muito.
Nesta altura, o pai parece ter conseguido elaborar alguma coisa da
separação do casal, entra em defesa de Pascale gritando: “Basta! Sua mãe não é
uma puta, e ninguém acabou ferrado!” e mudando o tom para uma voz serena,
declara “apenas tentamos e não deu certo!” É assim que cala Thierry.
Na tragédia, os pais se unem, no hospital, na volta para casa,
recolhendo os cacos da mesa.
Encerra
o filme mostrando literalmente os cacos do que sobrou, nesta
hora aparece a única música do filme, eles juntam os cacos entre as letras das
revistas, como numa tentativa cúmplice e silenciosa de dar algum sentido,
alguma palavra para o estilhaçamento da família.
O
filme poderia ter acabado assim, poderia não ter sobrado nada, mas não foi
assim, o que sobra é a casa vazia.
Quem está indo embora? Quem está olhando para a casa e a estrada que
estão ficando para trás?
Cabe a
nós decidirmos se ficaremos com o nada, com o vazio ou com a falta.
De um vazio pode aparecer a
falta. Se falta algo, pode renascer o desejo. Mas com o nada, nada é possível
ser feito... Não sobra nem o estilhaço.
SILVIA MARINA M. PAIVA é Psicóloga,
Psicanalista e com especialização
em Psicossomática Psicanalítica e em Especificidades da Clínica da
Drogadependência. É docente do CEP - Centro de Estudo
Psicanalíticos – SP. Co-autora do livro "Diálogos sobre a formação e a transmissão em
Psicanálise" (2016).
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