de Marcus do Rio Teixeira
O filme de zumbi, tal como o
conhecemos hoje, é um gênero ou subgênero do cinema de terror criado no final
dos anos 60 por George Romero. Seu filme A
Noite dos Mortos-Vivos (1968) é cultuado como o inaugurador do gênero e
inspiração para dezenas de obras. O enredo, que é mantido praticamente
inalterado nos filmes atuais, é bastante simples: os mortos voltam à vida por
motivos inexplicáveis (ou com explicações diversas: radiação, armas químicas,
vírus, etc.), devoram ou contaminam os humanos com suas mordidas e instauram o
caos, obrigando os sobreviventes a se refugiarem. Inicialmente, os discípulos
de Romero optaram pelo grotesco que a premissa básica do gênero possibilita:
produções precárias, recheadas com cenas de carnificina explícita, realizadas
com efeitos especiais sofríveis, contribuíram para aumentar a extensa lista dos
filmes B (para alegria dos fãs). Porém, nos últimos anos, a popularidade do
filme de zumbi cresceu tanto que ele despertou o interesse de diretores com
maiores recursos e se tornou mais sutil, mesclando-se a outros gêneros.
Assim, Madrugada dos Mortos (Zack Snyder, 2004) é um remake do filme dirigido por Romero em 1978, cujo roteiro, baseado
no texto original, mantém o enredo do primeiro filme (os personagens sitiados no
shopping center, um espaço que faz
parte do cotidiano das grandes cidades), porém com atores profissionais,
capazes de explorar melhor as possibilidades da situação. Resident Evil (Paul Anderson, 2002), que mais tarde se tornou uma
franquia descontrolada, cruza elementos de ficção-científica com o cinema de
terror. Já em Extermínio (Danny Boyle, 2002), o roteiro alterna cenas de ação com
longos intervalos em que os personagens tentam adaptar-se à nova realidade de
um mundo despovoado, assombrado por mortos-vivos. O contraste entre os
diferentes ritmos da narrativa é realçado pela câmera – frenética e acelerada,
gerando imagens entrecortadas e em close
nas cenas dos ataques; mais lenta, com planos mais amplos, até mesmo
panorâmicos, nas cenas do dia a dia dos sobreviventes. A bela fotografia de uma
Londres deserta realça a sensação de vazio e solidão dos personagens.
Esse estilo reflexivo fez
escola: na maior parte do tempo dos episódios da série de TV The Walking Dead (2011-2013...), a ação
cede lugar à exploração da intimidade dos personagens, seus conflitos, suas
dúvidas e seus medos. É surpreendente ver surgir essa tendência, mais
característica do filme de autor, numa época em que o cinema mainstream praticamente aboliu o enredo
e conseguiu transformar até um modelo de introspecção como Sherlock Holmes num
personagem hiperativo e lutador de UFC. Há, porém, um limite para essa
abordagem realista de um tema fantástico, conforme comentei em outro lugar1.
A série TWD me parece bordejar esse limite com que se defronta o cinema dito de
entretenimento quando almeja ser reconhecido como “sério”.
Terra
dos Mortos (2005) ilustra essa pretensão de seriedade. Aqui, temos o
retorno de Romero na direção, com um roteiro que retrata a oposição entre
zumbis e humanos de uma forma menos simplista, mostrando o surgimento de uma
consciência nos zumbis, até então representados como seres sem pensamento. Além
disso, atenua o maniqueísmo característico do gênero ao revelar o lado sombrio
dos sobreviventes, que constituem uma casta que explora os seus semelhantes.
Segundo o próprio Romero, os zumbis são uma metáfora da classe trabalhadora,
enquanto os humanos encastelados em prédios luxuosos representam a burguesia. O
filme, contudo, passa muito bem sem essa explicação, trazendo bons atores e, de
quebra, uma das últimas atuações de Dennis Hopper.
Em que medida, esses filmes
interessam a um psicanalista? Freud2 reconhecia no artista a
capacidade de representar as fantasias que movem os sujeitos, “[...] graças a
um talento especial para moldar suas fantasias em realidades de um novo tipo,
aceitas pelas pessoas como imagens valiosas da realidade”. Diferentes épocas e
lugares privilegiam certas fantasias, ainda que, para cada sujeito, elas
possuam um sentido singular. Mantendo o espírito freudiano, reconhecemos nesse
gênero cinematográfico alguns temas cruciais em nossos dias.
Para o psicanalista Mário Corso3,
os filmes de zumbi trazem de volta o tema da morte: banida das representações
contemporâneas e mantida à distância no ambiente asséptico das UTIs, ela
retorna triunfante para nos lembrar da nossa finitude, denegada pela tecnologia.
“Se não houver reflexão sobre o tema [da morte],
ele voltará para nós como sonho e pesadelo”. Assim como a morte, os zumbis
também representam a velhice: “Se a morte nos aguarda, na melhor das hipóteses
esse pesadelo vem junto com outro: ficar velho, com o corpo corrompido pelos
anos.” O autor acrescenta que o mito comporta múltiplos significados. Sendo
assim, ao mesmo tempo em que representam o
temor da degradação, os zumbis também representam uma reação ao culto do corpo:
“ [...] o corpo zumbi é a recusa do corpo disciplinado e diz que seguimos vivos
se não o temos. O zumbi é o protesto contra nossa vaidade excessiva e o
culto a saúde”.
Considero essa
leitura muito pertinente, porém pretendo abordar aqui não os zumbis, mas os
humanos que fogem deles. Como o espectador geralmente se identifica com os
personagens humanos, interessa pensar qual a atitude e a motivação de tais
personagens, como eles se situam no mundo. Em primeiro lugar, qual o ambiente do filme de zumbi? Trata-se
essencialmente de um mundo devastado, caótico, onde as instituições e a
civilização mesma desmoronaram e os humanos remanescentes lutam pela sobrevivência,
cada um por si ou em pequenos bandos, sem lei e sem princípios. Esse cenário
pós-apocalíptico, porém, não é exclusivo do filme de zumbi – na verdade, é
muito comum na ficção científica. Curiosamente, os filmes pós-apocalípticos, em
sua esmagadora maioria, não propiciam um humor depressivo. Ao contrário do que
se poderia esperar, os personagens, que viram tudo o que conheciam ruir e
assistiram à morte
dos seus entes queridos, parecem mais propensos à mania, dispostos a praticar
atos de coragem e heroísmo.
Seria
esse tipo de enredo uma representação ingênua e irrealista?
Talvez não. Contardo Calligaris4, falando sobre os membros das
milícias norte-americanas, que treinam para sobreviver num mundo
pós-apocalíptico, estocando alimentos e armas automáticas de grosso calibre,
observa que para esses milicianos a expectativa do fim do mundo não é algo melancólico
ou amedrontador. Ao contrário, eles se preparam para o apocalipse fazendo
treinamento militar e estocando alimentos com um visível entusiasmo. Podemos
dizer que para eles o apocalipse é uma fantasia que organiza imaginariamente o
seu desejo. Como diz Calligaris:
Em todos os fins do mundo que povoam
os devaneios modernos, alguns ou muitos sobrevivem (entre eles, obviamente, o
sonhador), mas o que sempre sucumbe é a ordem social. A catástrofe, seja ela
qual for, serve para garantir que não haverá mais Estado, condado, município,
lei, polícia, nação ou condomínio. Nenhum tipo de coletividade instituída
sobreviverá ao fim do mundo. Nele (e graças a ele) perderá sua força e seu
valor qualquer obrigação que emane da coletividade e, em geral, dos outros: seremos,
como nunca fomos, indivíduos, dependendo unicamente de nós mesmos.
Esse é o desejo dos sonhos do fim do
mundo: o fim de qualquer primazia da vida coletiva sobre nossas escolhas
particulares. O que nos parece justo, em nosso foro íntimo, sempre tentará
prevalecer sobre o que, em outros tempos, teria sido ou não conforme a lei.
O enredo dessa
fantasia é o mesmo que encontramos nos filmes pós-apocalípticos: a ideia de que
pessoas comuns, cuja vida se divide entre o trabalho cansativo e a rotina entediante,
encontram no fim do mundo a chance de
iniciar uma vida nova, diferente e emocionante. Para tais sujeitos, o mundo
devastado pela guerra nuclear ou por um ataque de zumbis não é um cenário
depressivo, e sim entusiasmante. Afinal, onde aquele que se considera
tolhido pelas convenções, normas e instituições
encontraria um melhor lugar para realizar os seus desejos senão num mundo
pós-apocalíptico, sem Estado, sem Lei e sem instituições? Eis por que os
personagens de filmes pós-apocalípticos, de zumbi ou não, longe de ser
melancólicos, costumam ser tomados pela elação. Daí para os filmes de zumbi assumirem
definitivamente a devastação como algo desejado e se alinharem do lado da comédia,
faltava apenas um passo.
Esse passo foi dado por Zumbilândia (Rubben Fleischer, 2009).
Nele estamos em plena comédia. A morte não deixa de estar à espreita, mas isso
não impede ninguém de se divertir. Esse mundo devastado, habitado por
mortos-vivos que querem devorar os últimos humanos, parece um lugar onde “não
precisa de dinheiro [...] é alegria o tempo inteiro”, como na canção do
Cachorro Grande. Os personagens saqueiam supermercados e destroem carros e
lojas num clima festivo, numa espécie de último e definitivo potlatch.
Como convém àqueles que
deixaram suas identidades para trás, junto com tudo que findou, eles não têm
nomes e sobrenomes*, mas são identificados por nomes de cidades. Assim, Columbus (Jessie Eisenberg), o
personagem principal e narrador, adquire o nome da cidade para onde se dirige,
tentando encontrar seus pais; Tallahassee
(Woody Harrelson) é um caipira urbano que ele encontra no caminho; Wichita e Little Rock, as duas irmãs que se juntam a eles. Charles Melman5
lembra que o quadro de esquecimento do nome próprio é comumente associado a um
estado de euforia:
O
esquecimento do nome próprio concerne evidentemente ao que em patologia [...] se
traduz por amnésia de identidade. Os
senhores se recordam desse tipo de júbilo às vezes um pouco maníaco de certo
número de sujeitos recolhidos nas estações ou nos aeroportos ou então errantes
pelas ruas e que simplesmente perderam, esqueceram, de onde vêm, quais são seus
laços, suas famílias, se são ou não casados, se têm filhos ou não. Estão, desse
modo, livres.
Os novos nomes que os
personagens assimilam funcionam de certa forma como suas descrições: Columbus tem algo de nerd; Tallahassee soa como Cahulawassee, o rio
fictício de Deliverance (John
Boorman, 1972), que é citado no solo de banjo tocado pelo personagem. Quanto a Wichita, é um nome indígena bem apropriado
para uma Emma Stone morena; e Little Rock
[pedrinha] cai bem para sua irmã caçula (Abigail Breslin).
O enredo explora as diferenças
entre os personagens para criar situações cômicas, mas, além disso, tais
diferenças dizem muito de cada um e da forma como lida com a realidade do fim
dos tempos, ou seja, do seu sinthoma,
para usar o termo de Lacan. Assim, Columbus, um jovem tímido que sobrevive
isolado e coleciona sintomas obsessivos e fóbicos, conta que, mesmo antes do
apocalipse zumbi, já evitava as pessoas. No mundo deserto, ele busca uma
namorada. Seu objetivo de encontrar uma gata não é simplesmente um recurso
cômico a mais no enredo. Na verdade, ao contrário do que poderia parecer à
primeira vista, o ambiente dos filmes de terror é propício a um clima erótico –
antes dos críticos de cinema, os casais de namorados sabem que as cenas
aterrorizantes servem para aproximar mais os corpos. Falando sobre a fobia,
Melman6 comenta que há uma típica brincadeira infantil, na qual um
casal de crianças se esconde num recinto fechado, imaginando a presença externa
de um ser ameaçador que justifica a proximidade física do casal. Além disso, o
tema do casal – Adão encontra sua Eva – faz parte da fantasia pós-apocalíptica,
como lembra Calligaris.
Já Tallahassee, um caubói
urbano machão, parece fazer da matança de zumbis um esporte sádico, mas se
torna uma criança quando busca desesperadamente uma marca de doce
industrializado (essa é a sua forma de resgatar um passado conhecido e estável,
interpreta Columbus). Little Rock, por sua vez, não chegou a viver uma infância
“normal” (“É difícil crescer em Zumbilândia” – mais uma tirada de Columbus), e quer
passar uma temporada num parque de diversões. Já sua irmã mais velha prega a
ausência de outros objetivos além da sobrevivência.
A ironia do filme é que, ao
contrário do que prevê a fantasia pós-apocalíptica, o fim do mundo não garante
o fim do sintoma. Pelo menos, não no caso de Columbus, para quem a
sobrevivência só é possível seguindo rigidamente um minucioso manual de regras
obsessivas. É somente a perspectiva de alcançar o que busca que o fará
transgredir seu manual. Porém é a própria inserção em um grupo, ainda que
heterogêneo – ou justamente por isso – que muda o sintoma de todos, porquanto
eles encontram no grupo a realização daquilo que perderam ou nunca tiveram: uma
família. Mesmo viajando para reencontrar a sua, Columbus admite que nunca foi
muito próximo da família. Wichita e Little Rock aparentemente viviam sozinhas
no mundo pré-apocalíptico e Tallahassee guarda uma história trágica. Curioso: o
fim do mundo e das instituições inspira a recriação da família.
* Com exceção de Wichita
e das celebridades citadas, nenhum personagem tem seu nome revelado no filme.
Notas:
1-TEIXEIRA, M. R. Todos na
torre de vigia: sobre Watchmen, 2012,
p. 42-52.
2-FREUD, S. Formulações sobre os dois princípios
do acontecer psíquico, 2004, v.1, p.69.
3-CORSO, M. A invasão zumbi: Zumbi, você ainda vai ser
um... na melhor das hipóteses.
4-CALLIGARIS, C. O mundo não acabou. 27/12/2012.
5-MELMAN, C. Para introduzir a psicanálise nos dias de
hoje, 2009, p.59.
6-MELMAN, C. O nó borromeu
na fobia, 1992, p.111.
Referências:
CALLIGARIS, C. O mundo não acabou. 27/12/2012. Disponível em: < http://
www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/1206756-o-mundo-nao-acabou.shtml
>. Acesso em: 10 ago. 2013.
CORSO, M. A invasão zumbi: Zumbi, você ainda vai ser um... na melhor das
hipóteses. Disponível em: < www.marioedianacorso.com.
> Acesso em: 10 ago. 2013.
FREUD, S. Formulações sobre os dois
princípios do acontecer psíquico. In:_______. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 2004. v. 1:
Escritos sobre a psicologia do inconsciente,
p. 63-77.
MELMAN, C. O nó borromeu na fobia. Trimestre Psychanalytique [edição em
português], A Fobia, Paris,
p.111-125, 1992.
MELMAN, C. Para introduzir a psicanálise nos dias de hoje. Porto Alegre: CMC,
2009.
TEIXEIRA, M. R. Todos na torre de vigia:
sobre Watchmen. In: ______. O espectador ingênuo: psicanálise, cinema,
literatura e música. Salvador: Ágalma, 2012. p. 42-52.
Marcus do Rio Teixeira – Psicanalista, diretor da editora Ágalma. Autor de O espectador ingênuo – Psicanálise, cinema, literatura e música (2012) e Vestígios do gozo (2014), entre outros.
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