Vocês esqueceram a revolução sexual
de Christian Dunker
Um ano depois, Kleber deixou a Fundação para fazer mais cinema,
a Ocupação do cais Estelita obteve vitórias substanciais, apesar da indiferença
da imprensa local, Dilma caiu e eu acabo de sair do cinema, consternado com a
rede de contradições que Aquarius conseguiu formalizar sobre o Brasil,
com seu recuo histórico. Muitos disseram tratar-se de um estudo de personagem,
a arquetípica Sonia Braga, e seus conflitos de elite em torno da intransigência
e da resistência para não deixar “seu lugar”, na praia da Boa Viagem, ser
tomado por uma construtora.
Não é.
Seria o mesmo que dizer que a Fenomenologia do Espírito de Hegel é um romance filosófico
causado pelo impacto de alguém que assistiu a entrada de Napoleão em Jena.
Análogo de afirmar que Memórias Póstumas de Bráz Cubas ou Grande Sertão: Veredas são estudos sobre psicologia de
personagens. Correto desde que se entenda, equivocadamente, que a psicologia é
apenas o estudo de indivíduos típicos e suas generalizações identitárias. Isso
nos levará ao apequenamento de quem só consegue discutir quantos negros,
homossexuais, mulheres ou pobres comporão o banquete universitário de fim de
ano. Verdadeiras pessoas são universos em contradição, não personagens que
valem pelo tipo que representam.Tolice de quem não entende que cinema é
linguagem e pensamento.Seu papel foi crucial para o pouco de reflexão sobre o
Brasil dos anos 1980 ao fim do Lulismo. Aqueles que se demitiram de pensar o
Brasil, que se evadiram dos conceitos e suas práticas, são os mesmos que agora
lamentam que a abstinência política nos levou ao pior.
Aquarius é uma enciclopédia sobre o Brasil que encontra,
literalmente, o universal em seu quintal. Uma aventura filosófico-psicanalítica
de quem nasceu sob a ditadura civil militar e que tinha diante si o projeto de
reconstruir o Brasil sem recursos opulentos, apenas Taiguara, Chico e Caetano e o novo rock de Legião, Titãs e Barão Vermelho. Um filme sobre causas
impossíveis. Um filme diagnóstico, como Invasor, de Beto Brant, Central
do Brasil, de Walter
Sales e Que Horas Ela Volta?,de Ana Muylaert.
O filme começa, com uma tomada dos anos 1980, na festa de
aniversário de 70 anos de Tia Lúcia, mulher “liberal” que tem sua biografia
lida cerimoniosamente pelos sobrinhos. Enquanto eles fazem a tradicional
nobiliarquia familiar, ela relembra tórridas noitadas com o seu amante, casado
e que jamais deixaria sua família, sem por isso deixar de consagrar-se, para
ela, como um grande amor. Nossa memória pertence e depende de lugares. Neste
caso uma espécie de cômoda, em cima da qual ela criava momentos de lúbrico sexo
oral. O móvel antigo faz função inversa ao da máquina de lavar com a qual Maeve
Jinkings, a solitária e narcísica dona de casa de Som ao Redor, se masturba.
Esta lembrança faz Tia Lúcia interromper o tom elegíaco da festa familiar e
lembrar em alto e bom tom seu amante. Um marco que aponta, simbolicamente, que
aquele lugar não pode e não deve ser abandonado. Neste momento diagnóstico, ela
proclama: “Vocês estão esquecendo a revolução sexual”.
Clara, a heroína de Aquarius, não veio do nada. Ela foi
formada por Tia Lúcia, uma destas mulheres que fizeram a revolução sexual,
mostrando em ato o que pode um corpo. Mas uma verdadeira transmissão simbólica,
como diria Lacan, decide-se em três e não em duas gerações. Daí o mal-estar de
Clara diante dos filhos, a quem não carece amor. Seu filho homossexual não
consegue apresentar seu amante para a mãe. Sua filha não consegue desprender-se
do rancor de sua vida instrumental. Seu outro filho parece preso em um ideal
plástico de bom casamento. Em suma, um desejo que fracassou na sua transmissão.
Um sonho esquecido que não criou as condições para realizar seu próprio futuro.
Um sonho que se mantém pela resistência do corpo.
É assim entre gerações, é assim entre brasis. Os jovens
pós-revolucionários, herdeiros dos anos 1970, tornaram-se yuppies nos anos 1990
e criaram uma geração X de normalopatas conformados. Exceção improvável da
namorada de Facebook, estrangeira, que chega do Rio de Janeiro, lembrando que
uma tia, e não só uma mãe, é capaz de transmitir o desejo. No mais, uma tropa
de anestésicos performativos, ocupados e carreiristas.
A revolução sexual dos anos 1960 não foi apenas uma modernização
de costumes, trazendo aumento da tolerância para temas como divórcio,
homossexualidade e padrões de família. Foi uma revolução bovarista, no sentido
de que ela nos mostrou que outro futuro é possível, que podemos ser “outros
para nós mesmos” (como Madame Bovary) e que o futuro começa pela
relação com o corpo e com o desejo. Aquarius é um filme essencial a ser estudado
por aqueles que estão em busca do próximo capítulo, depois do “aquilo deu
nisso”, que vai de Lula e Temer.
Clara não é um ser anacronicamente ligado a uma vida que já
passou. Ela nos fala do futuro possível, feito de um passado imprevisível. O
contraste é brutal com o falso futuro que nos oferece Diego, o empreendedor,
neto do dono da construtora, que quer fazer seu primeiro grande negócio
comprando o último apartamento que falta para criar o “Novo Aquarius”. É um
filme sobre o papel dodesejo,
do corpo e
da memória na história.
Desejo que se transmite e se
repete desde Tia Lúcia, como reconciliação com a experiência de amor que não
terminou com a viuvez. Exemplo. Diante do bacanal contratado por Diego para
perturbá-la noite a fora, em vez de intimidada, chamar a polícia, ela chama o
amante profissional. Resposta exata e inversa ao ódio banal do ressentido, em
vez de acabar com a festa do outro, entrar nela, por seus próprios meios.
Desejo que a faz se afastar dos três filhos para escrever um livro sobre
Villa-Lobos. Desejo que a torna uma Antígona brasileira. Desejo que aparece
sempre na enunciação musical que atravessa o filme de Queen (um marco da
internacionalização brasileira desde o antológico show de 1981) até Altemar
Dutra, Paulinho da Viola e Alcione.
Memória que trabalha tanto no corpo mutilado e sobrevivente do
câncer, como no rico repertório de recriação de experiências que ela construiu
para si em seu apartamento. Sozinha, mas não só. Com ela estão neto, empregada,
salva vidas, amigas, antigos conhecidos de jornal, filhos, sobrinhos e ao final
os próprios capangas da construtora, entre eles o impagável Irandhir Santos. É
isso que Diego, o jovem e impiedoso negociante, com seu MBA feito nos USA,
herdeiro profissional, não consegue entender, pois não consegue lidar com
pessoas que não vivem apenas no presente.
Corpo que nos fala do presente como instante de
sobrevivência e de urgência. Presente que é expresso nos banhos de mar diários,
na maconha vivida com exuberância, no vinho e no sexo sem piedade ou
constrangimento. Clara é o anti-síndico, cura e solução para o que chamei de
vida em forma de condomínio. Ela extrai do corpo algo mais do que o
cultivo narcísico de uma imagem, pois encontra nele um princípio de fidelidade
ao futuro, resistência ao presente e invenção do passado. Por isso, se o filme
começa e termina com Hoje, de Taiguara, sua chave secreta é Universo
no teu Corpo, do mesmo autor. Falecido em 1996, de câncer, aos
cinquenta anos de idade, depois de dois exílios e 68 músicas censuradas pela
ditadura entre elas “o meu pedaço de
universo é no seu corpo”, que sugiro ao leitor escutar enquanto lê
o resto deste texto. Ela começa pelo absolutamente contemporâneo: “Eu desisto, não existe esta manhã que eu perseguia.
Um lugar que me dê trégua ou me sorria. E uma gente que não viva só para si.”
Ou seja, a constatação de que nossas ilusões de transformação do mundo, de
justiça, igualdade e liberdade não são mais do que ilusões. Nada mais atual do
que recomeçar a conversa por: “eu desisto”.
Reconhecimento de que a aposta em outro mundo precisa de nova formulação. Que o
futuro, como universal, pode ser reinventado a partir do pequeno particular que
o nega enquanto tal: o corpo.
Momento de inversão e desilusão. Instante no qual o real bate à
porta mais uma vez, perguntando se “por uns
velhos e vãos motivos, somos cegos e cativos, no deserto sem amor”.
Clara vive um mundo sem ilusões, por isso mesmo sem concessões. Sem
entregar-se ao imperativo instrumental que transforma em dinheiro lembranças,
sonhos e experiências insubstituíveis dos lugares que ela viveu nos anos 1980,
com seus discos de vinil. Portanto, ela não é mais uma destas viúvas da
revolução que tem à mão o modelo prét-à-porter de futuro revolucionário. “Estou morto para este triste mundo antigo”.
Ela vive além dos anos 2010, com suas crises de identidade, suas ofensas
narcísicas e objetivos instrumentais. “Só
encontro gente amarga mergulhada no passado, procurando repartir seu mundo
errado”. Estes são os jovens neoliberais que só pensam em seu
primeiro sucesso, feito de negócios, de estratégias de imagem e de marketing.
São também os jovens ressentidos com um futuro brilhante e fácil que não lhes
foi entregue na realidade. Os jovens como Diego, que não sabem desistir,
portanto não sabem fracassar.
Mas felizmente há outros jovens. Há jovens que ocupam escolas,
como Clara ocupa sua própria casa. No filme de Kleber Mendonça e na canção de
Taiguara eles dizem “vem comigo”.
Não como um apelo grupalizante, mas como endosso de uma atitude de
resistência.Sonia Braga formou-se na herança da pornochanchada, do teatro de
resistência (trabalhou no Hair) e do cinema marginal (a cena do
Opala na praia é uma citação de O Bandido da Luz Vermelha). Consagra-se
como heroína da telenovela nos anos 1980 com os personagens de Jorge Amado, e
nos anos 90, faz sucesso em Hollywood. Aos 66 anos de idade, com um seio a
menos, Sonia é um signo perfeito para representar a transição e a contradição
entre um Brasil fechado em seu próprio atraso dos anos 1980, sua súbita e
impensada internacionalização nos anos 1990 e o desastre daqueles de esqueceram
a revolução sexual. A revolução sexual não era apenas o incremento do direito
das mulheres e a luta por equidade, mas uma forma de ligar desejo, história e
corpo.
Nos anos 2000, Sonia Braga fica sem trabalho no Brasil, mesmo
com suas aparições em Sex and the City (2001), Law and Order (2003) e CSI
Miami (2005). Efeitos
do envelhecimento do corpo ou porque sua corporeidade tornou-se excessivamente
brasileira? Assim como Aquarius não é indicado ao Oscar, pelo
Ministério da Cultura, em uma operação obscena para esconder a brasilidade real
diante a brasilidade imaginária (aquela da qual nos envergonhamos diante do
“estrangeiro”). Por isso também o filme é inicialmente censurado e recomendado
para 18 e não 16 anos, como em outros países, porque afinal nossa brasilidade
deve responder ao olhar do outro, não ao nosso. O fato de seu elenco ter denunciado
o golpe em Cannes é secundário diante da própria mensagem estética do filme. É
ela que não deve aparecer, no regime de censura branca no qual nós
entramos.
Indagada sobre sua própria análise, Sonia Braga disse: “Fazia [psicanálise]. Quando percebi que
o analista já estava melhor, se vestindo direitinho, sorrindo de novo, dei alta
para ele.” Ou seja, a relação de autoridade tradicional, pela qual
supõe-se que o analista é quem dá alta, sendo ele mesmo um paradigma de
normalidade, é invertida, corretamente. É isso que se vê no filme. Todos a
consideram uma louca, mas é ela mesma que nos guia para algum senso de
lucidez.
Ela nos lembra que fomos criados por uma história que nos
antecedeu. Que Temer ou Trump não são acasos fortuitos do passado, mas
invenções de um futuro antigo. Um futuro feito apenas de regras e exceções: sem
corpos, sem memórias e sem desejos. Futuro para o qual devemos estar prontos a
estar mortos de antemão, como Lacan dizia da posição do psicanalista. Contra
ele, o filme traz algumas respostas.
É preciso Maria Bethânia para reencontrar a intensidade da
palavra capaz de causar amor, de verdade. É preciso coragem para mostrar uma
mastectomia radical sem que isso perca seu erotismo. É preciso ternura para
mostrar como alguém que sobrevive ao câncer pode formar uma nova atitude diante
a vida. É preciso democracia para mostrar um baile de negros e brancos, de
ricos e pobres, de velhos e moços. É preciso astúcia para mostrar uma empregada
doméstica branca defender sua patroa morena diante de um síndico educado,
atencioso e canalha. É preciso delicadeza para mostrar um bombeiro-salva-vidas
criar uma exceção à lei e deixar uma velha senhora nadar na zona dos tubarões,
ou invadir um domicílio, se for preciso. É preciso solidariedade para mostrar
dois funcionários, demitidos profissionalmente, reconhecer o bom trato
recebido, pessoalmente, sob condição de desigualdade. É preciso lucidez para
mostrar como uma linhagem de mulheres resistentes pode gerar uma filha
funcional e adaptada, cujo único sonho é a sobrevivência. É preciso
sensibilidade para introduzir em meio às recordações de filhos e netos que nos
auto-realizam, o contraste com a memória do filho morto da empregada,
atropelado sem consequência, sem justiça e sem relevância.
Brasília Teimosa, o bairro que resiste à incorporação
imobiliária em Recife, toca-se dialeticamente com o Edifício Aquarius, onde
Clara resiste solitária contra o bacanal, as igrejas, a insegurança, o
interesse familiar, os princípios de segurança razoável e ao final … os cupins,
que roem por dentro, em silêncio, como o câncer. Os cupins que roem tudo, menos
a cara de pau dos empreiteiros. Lembremos que é um filme profético, feito e
concebido antes da Lava a Jato.
Esquecermos da revolução sexual não significa que nos tornamos
mais caretas, mas que desaprendemos a desobedecer. Pulamos a parte na qual, em
vez de querermos limitar os poderosos, estávamos em busca de mais liberdade
para aqueles que não são poderosos. A parte universal na qual nossos desejos
valiam mais que nossas imagens.
*Publicado originalmente em Revista Brasileiros - 2016 : http://brasileiros.com.br/
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de vários livros, entre eles Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e o finalista do Jabuti 2016 : Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015)
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