Um tecido vermelho
pulsante, volátil que enche a tela, suave em seu movimento, que sugere a
intimidade do feminino desejante, a sensualidade e as entranhas da dor marcada
pelo sangue, pela paixão e pelos afetos. Assim começa o filme.
Julieta é uma
história de dor crônica, a dor que se põe como entrave à existência, dor de uma
ausência sempre presente... uma história
sustentada pela ausência de trilha sonora que induz o telespectador a entrar em
contato com o vazio de Julieta, com a presença constante da ausência de Antía
(Blanca Parés), sua filha. Um silêncio incapaz de passar despercebido, que vai
mostrando ao longo do filme, uma sucessão de objetos e elementos que se fazem
captar num segundo plano e na expressão corporal dos personagens o que já é
conhecido e pensado. Cores como vermelho, azul e preto que aparecem em
distintos objetos constroem um outro tipo de comunicação sem palavras.
Uma trama de
personagens que interagem de forma complexa criando vínculos que além de
necessários para a sobrevivência física e emocional, tem o governo soberano do
desejo, ainda que este apareça sempre em falta.
Julieta (Adriana
Ugarte e Emma Suárez) carrega o peso de suas perdas, culpas e luto durante todo
o filme. A culpa pela falta de atenção dada à um estranho em um vagão de trem,
que se suicida durante uma viagem; a perda inesperada de Xoan (Daniel Grao), o
marido e a partida voluntária e não avisada da filha. Segundo Nasio: “Se a
pessoa do amado não está mais aqui, então falta a excitação que escandia o
ritmo do meu desejo”. Vive uma vida sem entusiasmo, cheia de lembranças da
filha e esperanças do seu retorno, uma vida que se consome entre afastar-se e
aproximar-se da dor, estagnando-lhe a vida e estabelecendo seu gozo.
A dor pela ausência
de Antía valida e ressignifica todas as dores e perdas anteriores.
Para Freud, “O
luto leva o eu a renunciar o objeto (desaparecido), declarando o objeto morto”,
entretanto a falta de Antía é permanentemente sustentada pela incerteza de sua
volta, um luto que não pode avançar na sua elaboração pela esperança que se faz
de um possível retorno.
A devastação de
Julieta aparece de forma ritualistica ao comprar bolos de aniversário para a
filha, ano após ano e atirá-los no lixo. A cada ano, a esperança do retorno e a
fúria pela expectativa contrariada dão significado à cena do bolo de
aniversário e refaz o ciclo de dor do personagem central. A dor de Julieta é
uma condição de vida, é a forma que experimenta o mundo.
No começo do filme,
Julieta escolhe o livro “O amor” de Marguerite Duras para levar na sua mudança
para outro país. As mudanças e deslocamentos no espaço físico são constantes no
filme como tentativas de se livrar de sua dor, a dor do amor que leva consigo
simbolizada no livro de Duras.
O encontro com Bea
(Michelle Jenner), amiga de infância de Antía, faz emergir aquilo que deveria
estar esquecido, a partida de Antía, provocando uma decisão radical de
permanecer em Madrid. Convictamente afirma, na esperança de que o vento leve
suas palavras até a filha: -Aqui estoy e aqui estaré!
Após decidir
permanecer em Madrid, na esperança de um reencontro, Julieta tenta estabelecer
um diálogo imaginário com a filha, escrevendo-lhe uma carta na qual vai
desvelando toda a sua história e consequentemente, a de Antía, tentando dar
continuidade ao seu trabalho de luto que nunca se concluiu.
Curiosamente, o
título inicial para esse filme era “Silêncio”. Nada mais justo para uma
trama onde os personagens são encarcerados pelo silêncio, a ele são submetidos,
nada perguntam e pouco dizem. O silêncio que se faz na escrita da carta para a
filha contando-lhe sua vida, o que só pode ser dito fazendo letra.
“Cada silêncio é um
indicador em negativo da existência de
uma palavra possível” cita Anna Aromi. O silêncio e a espera são o gozo de
Julieta. Escrever para Antía é a forma de aproximação do seu gozo. Para Julieta, falar da perda é entrar em
contato com a dor, com a morte em vida, é perder algo que a constitui, assim o
silêncio é a manutenção do gozo, uma vez que “A palavra mata a coisa”.
O primeiro contato
com Xoan acontece na viagem de trem, numa experiência de dor, culpa e incerteza
frente ao testemunho de um suicídio. A partir dai, Julieta e Xoan já estarão
conectados pela concepção de Antía.
Após conhecer Xoan
e ameaçada de perder seu emprego, Julieta decide buscá-lo para falar de sua
gravidêz. Chega no dia da morte de Ana, a esposa em coma. Para algo nascer, é
preciso que algo morra... e é
confrontada por um feminino amargo, de caráter territorial, invejoso e
hiperrealista de Marian (Rossy de Palma). Um feminino que faz uma oposição ao
feminino de Julieta. Uma das características dos filmes de Almodóvar é
justamente fazer emergir os aspectos mais profundos da alma feminina.
Após o nascimento
de Antía, Julieta se aproxima dos pais e se depara com a enfermidade de Sara
(Susi Sánchez), sua mãe, enclausurada no quarto acometida de Alzheimer, tráz no
olhar a tristeza, o desamor, o esquecimento e a melancolia. O pai, envolvido
com uma serviçal vive sua vida independente e afastado emocionalmente da
esposa. Julieta passa a funcionar como um ego auxiliar para a mãe durante os
dias que permanece com os pais. A mãe vive antecipadamente o que Julieta viverá
no futuro, a dor do abandono traduzida no sintoma do esquecimento do Alzheimer.
O silêncio devastador e a depressão será o sintoma de Julieta para sua dor.
Uma tempestade
estar por vir... é anunciada e conhecida...se faz à mostra pela ravia de Marian
ao ser despedida e questionada por Julieta e se concretiza na morte de Xoan, de
forma inesperada, em alto mar. Julieta e Antía são inundadas pela tristeza e
pela culpa.
Um relógio quebrado
junto ao corpo de Xoan nos sugere a suspensão da tempo cronológico. A partir da
sua morte, o tempo pára... vai e volta numa tentativa de dar conta de uma dor
sem fim, instalando o gozo do silêncio e da expectativa, mesclando passado e
presente num só registro que parece excluir o futuro, a cessação da dor e do
conflito psíquico.
- Por qué Papá
salió a pescar si había estallado la tormenta? - indaga Antía ao
tomar conhecimento da morte do pai. De que tormenta fala Antía? Do que queria o
pai livrar-se buscando a morte no mar?
E assim, quando
completa dezoito anos, diante da partida da amiga Bea, Antía perde o sentido da
vida. Ao lado da mãe, está em contato direto com a dor que assola a ambas e a
morte que não conseguem superar. Parte para um retiro espiritual em busca do
sentido perdido e não mais retorna.
Entre idas e
vindas, a história de Julieta vai se construindo e tem como eixo central as
perdas, especialmente a perda da Antía que a mantém num estado de suspensão, do
qual não pode voltar e nem tampouco
seguir adiante, a ausência da filha preenche sua vida e a destrói por completo.
Antía não quer
contato com Julieta, mas lhe impõe o conhecimento de que está presente na sua
ausência através dos envelopes vazios que manda para a mãe, como se quisesse
apenas pontuar que ainda existe, que ainda está viva.
E Ava? Um
personagem secundário, mas não menos importante. Funciona como um receptáculo
de afetos, os quais canaliza em suas esculturas. Tem em Xoan, com quem mantém
encontros esporádicos, a inspiração para sua arte, esculturas vermelhas por
fora e de sólido metal por dentro. É à
Ava que Julieta conta em primeira mão sobre sua gravidêz. Sempre presente em
momentos importantes, acompanha Julieta para derramar as cinzas de Xoan sobre o
mar. É também quem preenche as lacunas de informações para Julieta sobre a
profunda mágoa de Antía acerca do conflito do casal que precedeu a morte do
pai. Ava é um catalizador, um elo de ligação entre Xoan, Julieta e Antía. Mais
uma faceta feminina que Almodóvar tráz em cena, um feminino dócil,
aparentemente frágil, porém forte como o metal interno de suas esculturas.
Mas o que separa
pode também unir. Diante da perda do filho mais velho, Antía recorre à Julieta
que vai ao seu encontro. A morte do pai e marido as separou e ficou a cargo da
morte de um filho e neto uní-las.
Poderíamos pensar
num final feliz, mas a vida não é felicidade... uma mescla de momentos de
prazer, os quais chamamos felicidade, contrastado com momentos de angústia...
assim vivemos, assim ratificamos nosso gozo. O gozo de Julieta é ratificado
quando diz à Lorenzo (Dario Grandinetti), a caminho do encontro com a filha:
-”No voy a preguntarle nada”. - segue o ciclo do silêncio, daquilo que não tem
nome, que não pode ser compreendido e nem representado, do Real da vida que
opera fora da nossa consciência e desejo e que pode levar-nos a construir ou
destruir nossas vidas.
Assim, eu assisti
“Julieta”, saí da sala de exibição em silêncio e com muitas perguntas sem
respostas, embalado pela voz de Isabel Vargas na canção “Si no te vas”,
que permeia a última cena.
Referências bibliográficas:
- Aromi, A. Palabra y silêncio em Psicoanálisis. 1ª CONVERSACION DE LA ELP. NOVIEMBRE 2000. BARCELONA. "ENTRE
PALABRA Y SILENCIO"
- Freud, S. Luto e melancolia, in Edições Standarts das obras completas
de Sigmund Freud, vol. 12. São Paulo: Cia. Das Letras, 2010
- Nasio, J.-D. A dor de amar. Rio de Janeiro: Zahar, 2005
Olivan Liger é psicanalista, presidente do ILPC - Instituto Latino americano de Psicanálise Contemporânea, analista e supervisor institucional. Autor da obra: "Um olhar psicanalítico sobre a contemporaneidade e suas emergências" - Ed. Livre Expressão, RJ.
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2 comentários:
Obrigada pela leitura sensível e atenta. Muito boa!
Só gratidão a sua sensibilidade
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